Reza pro chão — II

Marina Maia
Revista Negra Trama
3 min readApr 17, 2022

Um alvoroço se fez quando os ignorantes donos das terras passaram a se incomodar com o culto às entidades do povo de Obá. A água que refrescara as cabeças naquele dia de sol era um passe indesejado para cultuar um deus estático, inanimado. Ninguém dançava para ele e as músicas oferecidas eram como um clamor. Ainda assim, todos foram obrigados, dia após dia, a aprender a amar esse deus dessemelhante. Eram coagidos a irem a missas quase intermináveis e decorar inúmeras orações que não diziam respeito a eles.

Ao mesmo tempo, do igbá de sua mãe — único resquício de si que ela conseguiu manter na travessia — Obá foi obrigada a se distanciar. Por receio de que destruíssem também ele, e o escondeu mata adentro onde só ela poderia voltar algum dia.

Após diversas tentativas de continuar cultuando seus ancestrais, os açoites constantes tornaram aquilo sempre mais difícil. Sua comunidade passou a frequentar cada vez mais as igrejas, enquanto seus pés tocavam menos o chão e seus corpos quase não se movimentavam. Aos domingos, Obá sentava num dos bancos de madeira e tentava encontrar-se naquele espaço. Envolta por aquela alvenaria — que seus irmãos mesmo haviam construído, mas que não os abrigava — notava sua alma cada vez mais fria. Ela procurava a si naquele espaço reduzido, em vão. As peles brancas das imagens que a olhavam fixas, refletidas nas mesmas peles dos sacerdotes e fiéis lembravam à Obá da falta que fazia ter um lar.

Em um dos domingos, enquanto Obá observava, naquele mesmo último banco da igreja, a missa acontecer, notou que uma senhora passou certo tempo de joelhos, olhando atentamente para a imagem de uma santa. Depois dela, percebeu que outras pessoas também faziam aquilo com bastante afinco. A oração não a comovia, mas o movimento de se aproximar do chão foi o primeiro fator de comunhão entre aqueles povos; para Obá era a possibilidade mínima de reencontro.

Nos dias que se seguiram ela preparou o terreno; copiou os movimentos daquelas fieis mulheres brancas e aos poucos aproximou-se das imagens que a olhavam, passou a encará-las de volta, ainda sem reconhecer aquela tez, ainda sem compaixão. Ao passo que Obá frequentava a igreja mais vezes e repetia mais aqueles movimentos, os castigos físicos cessaram e a relação conflituosa entre ela e os donos na fazenda foi amenizada.

Manhã se fez em que ela foi presenteada com a imagem brilhante de eu uma santa de nome estranho, de pele quase perolada e envolta em panos longos e claros. Foi a primeira vez que algo tão estranhamente branco adentrou a passagem de uma senzala. Obá colocou a imagem no chão, ao lado de um buraco ainda superficial que ela havia começa a cavar há poucos dias.

Mais tarde, estando a lua já iluminando os caminhos que só ela conhecia, Obá seguiu a trilha até sua mãe, com o caminhar suave de quem caça a si. Encontrou o igbá no mesmo lugar, agradeceu aos povos das matas por terem a conservado e voltou em passou seguros. Adentrou ao espaço reservado ao seu povo se certificando de que ninguém alheio a tivesse seguido, caminhou até a cavidade, agora perfeitamente compatível e acomodou ternamente quem a havia mantido viva até aquele momento.

Obá nivelou a terra por cima, colocou a imagem sacra por sobre o sagrado e se pôs de frente a ela. Sentindo finalmente seu sangue correr depois de muitos amanheceres, fechou os olhos, deixou os joelhos em contato com a terra, que agora vibrava, encostou a anca direita no chão, seguida da esquerda, depois aproximou seu orí o máximo que pôde da santa a sua frente, buscando o que, abaixo, agora se fazia presente entre seu povo.

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Marina Maia
Revista Negra Trama

Negra-vida — Cearense, professora de muita coisa, em constante formação; amante das literaturas que me falam.