SE POUPE DAS DEFESAS A MONTEIRO LOBATO; ME POUPE QUE EU LHE GRITE RACISTA

Marina Maia
Revista Negra Trama
6 min readSep 24, 2019

Vi recentemente um vídeo em que a poetisa e professora Lívia Natália fala sobre ser Tiradentes (MG) uma “cidade fetiche”, por preservar o período colonial e os processos de escravidão como grandes pontos turísticos, sem sugerir um debate a altura do necessário, mas, pelo contrário, fazer desses fatos motivos de louvor e glória. Trago isso para a literatura quando me deparo com a persistência das leituras de alguns cânones brasileiros, mais especificamente de alguns escritos de Monteiro Lobato. Ainda hoje temos suas publicações como leituras obrigatórias por se tratar, supostamente, de um dos maiores intelectuais do Brasil.

Em um país que nunca sequer pretendeu resolver seus problemas raciais ou mesmo admitir a existência deles, a forma com que o tão renomado escritor fala sobre o povo negro contribui invariavelmente para a manutenção de inúmeros estereótipos racistas que ainda persistem. Venho apresentar três exemplos (dentre tantos outros que poderia ter selecionado) de contos que trabalham fortemente para esse fenômeno. São eles “Negrinha”, “Bocatorta” e “O Jardineiro Timóteo”; escritos que, se lidos pela população branca, reforçam os ideias racistas de sua cultura (iremos retornar a essa ponto), e se por negros, não contribuem de modo algum para a criação de uma identidade positiva para esse povo, apesar de serem protagonizados por pessoas pretas. Sendo assim, podemos considerar que os escritos de Lobato servem positivamente a um só povo.

É de uma inocência duvidável dizer que o escritor, com suas histórias sobre personagens negros, tenha pretendido denunciar o problema do racismo. Ora, logo o mesmo que mantinha contato direto com personalidades ligadas à Ku Klux Klan e ao Nazismo e era de família com estreita herança escravocrata. A forma com que ele retratava o sofrimento pelo qual passavam os negros de suas obras aparentava menos uma forma de contrição e/ou compadecimento às situações vividas, do que seu forte desejo que reproduzir e mostrar às claras (KKK) os métodos de tortura de que seu Brasil se muniu por tanto tempo.

Conhecendo bem o público defensor deste “grande intelectual” (mesmo reconhecendo que para um racista, nenhuma tese basta) trago às provas, de início, a personagem “Negrinha”, de seu conto e livro homônimos. É uma menina negra que vive sob a tutela de uma senhora branca, dona de uma fazenda. A história se constrói sucintamente demonstrando a responsabilidade que tem D. Inácia sobre Negrinha. Sim, esse é o nome da personagem…

aqui abro um diálogo sobre o problema que tem Lobato em dar nomes a suas personagens negras e negros: A primeira, de quem já falei, tem como vocativo sua origem e a cor de sua pele. Isso não é positivo visto a forma depreciativa como a menina é tratada. A segunda personagem, de quem ainda trataremos, é “Bocatorta”; nesse caso, a letra maiúscula representa o problema físico que mais caracteriza a personalidade do mesmo. Veremos depois sua construção imensamente animalesca. Por fim (no texto, não na obra de Lobato), teremos “O Jardineiro Timóteo”, o único dentre os três com nome próprio, mas que recebe o nome de sua profissão antes do seu. Sabemos, portanto, de onde e de quem se origina o mecanismo de tirar os nomes das pessoas e é disso que o “grande escritor” muito se utiliza, digo que com claros propósitos.

Retornando a Negrinha, o escritor inicia apresentando a orfandade da personagem, pois a menina vivia naquele local por não ter para onde ir. Desse modo, D. Inácia era extremamente bondosa por permitir a estadia da menina alí. Ao decorrer da narrativa, Lobato faz questão de dar detalhes de como a velha fazia sofrer a menina. Alguns benevolentes leitores podem alegar que os relatos serviam como forma de comoção e mea culpa pelos brancos que tinham acesso aos contos. Aparentemente Lobato pretendia fazê-los se sentir mal diante daquela cruel relação.

Quero agora que vocês, leitores atentos, reflitam se mecanismos de tortura como colocar um ovo quente na boca de uma criança (e de antemão aviso sobre o gatilho que é a leitura dos três contos citados), realmente iria incomodar uma sociedade leitora que recentemente ainda escravizava os mesmo corpos negros. Deixo as conclusões pra vocês e acrescento: ao fim do conto, Negrinha “Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono.”, tendo como sua última imagem “O delírio” que “rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos… E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.”. Quero que por hora fiquem com essa primeira imagem. Como ela nos serve?

Passando ao segundo ponto, trago a imagem de Bocatorta, leitura que particularmente mais me repugna até o presente momento. No conto de mesmo nome, Monteiro Lobato apresenta uma de suas construções mais irresponsáveis. Bocatorta representa a imagem de um homem negro completamente deformado, que vive em um pântano, isolado da civilização, por ninguém aceitar sua presença. Dentre tantas interpretações sobre o prejuízo disso, explicito que segundo os moradores da casa grande o homem “come crianças, que é bruxo, que tem parte com o demo”. Ele mantém um apreço doentio por Cristina, personagem feminina branca que morre após a “visita” que fazem ao local onde mora o monstro.

O conto desenvolve um núcleo branco que nutre uma angustiante aversão pelo personagem negro. Não estivesse satisfeito, Lobato reitera a psicopatia de Bocatorta quando este finda por desenterrar Cristina para dar-lhe um beijo, indicando que o amor da mulher fora o único objetivo de sua vida. Nesse segundo momento, peço que relacionem a imagem de Bocatorta com a imagem negativa construída sobre os homens pretos na sociedade brasileira. Quem é responsável por isso? Entre brancos e negros, quem é digno de medo e quem de compaixão? Trago que também o fim de Bocatorta não é diferente dos de homens pretos aterrorizantes e facilmente confundidos com bandidos. Como isso nos serve?

Por último, mas não menos assustador, trago o protagonista do conto “O Jardineiro Timóteo”, que muito me recorda o desenho feito de Tio Barnabé, personagem mais conhecido, do mesmo escritor. Timóteo é a representação do escravo doméstico, que convive bem com a família de senhores, mas que mais do que isso, vive exclusivamente para os serviços prestados a ela. É “um preto branco por dentro”. Segundo o que se sabe das condutas políticas de Lobato, temos em Timóteo a tradução do preto perfeito. No entanto, o velho não é poupado de fim igual ao de seus semelhantes já citados.

O homem foi, durante toda a sua vida, responsável por cuidar do jardim da casa de seus donos. Esse era seu maior orgulho e a razão pela qual ele ainda se arrastava todas as manhãs. A partir dos processos de modernização do país, a casa é vendida e a nova família que ali se instala não vê mais necessidade de manter aquele espaço. Sendo assim, Timóteo também torna-se obsoleto, afinal, o velho negro tinha como único objetivo de sua vida cuidar das flores que gostava de oferecer aos seus brancos. [Pretos, fiquem atentos a quem vocês doam as flores que cultivam]. A construção dessa personagem subalterna é aterradora quando percebemos que a única ação do jardineiro, já ao fim do conto, é a de repetir um “Deixa estar” em tom de ameaça contra os novos donos da casa e “morrer lá na porteira como um cachorro fiel”. Como isso nos serve?

Alguns leitores ainda são capazes de defender o criador dessas personagens sugerindo que precisamos notar “o que ele quis dizer com tudo isso”, mas rebato e digo que é importante discutir sobre o impacto desse tipo de representação porque, nesses casos, o que está escrito diz mais alto do que “o que ele quis dizer/mostrar”. O que está escrito é o que será lido e apreendido. Por isso não pretendo me intimidar pelas denúncias de anacronismo; isso seria eximir da culpa quem também chamam de “um dos maiores intelectuais do Brasil”. Aqui o criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo não será protegido por ser “um homem do seu tempo” porque ele teve todas as possibilidades de ler seu contemporâneo Lima Barreto, por exemplo, para se utilizar de sua escrita (pasmem), mas não foi capaz de ser sensível diante do racismo que sofreu e relatou o escritor negro. Apontar a inocência de Lobato é contraditoriamente apontar a culpa dele e de quem o defende. Lobato era, com minha imensa bondade, desonesto.

Desonesto também é defender uma leitura que nada tem a acrescentar na psique de meu povo e que pode muito bem servir como deleite para uma sociedade de heranças racistas tão profundas.

Retomo Lívia Natália para afirmar que Monteiro Lobato (e sua escrita, como um só) é fetiche colonial e escravocrata!

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Marina Maia
Revista Negra Trama

Negra-vida — Cearense, professora de muita coisa, em constante formação; amante das literaturas que me falam.