Sobre a ancestralidade acrítica da branquitude intelectual brasileira

Marina Maia
Revista Negra Trama
4 min readFeb 18, 2020

Na primeira edição da Jornada de Ações Negras (@jornadadeacoesnegras), em 2018, participei de um dos espaços e falei sobre não ser a literatura um meio efetivo de “libertação” para todos os que a praticam. Na ocasião, eu caminhava pelos escritores negros ao longo da literatura historiográfica, analisando em que situação social cada um havia findado e como se desenrolou a manutenção de suas imagens até os tempos atuais. Comparava cada um deles com um escritor branco de seu mesmo período, respectivamente, dando atenção aos mesmos aspectos.

Como exemplo, resgatei a antagonia Lima Barreto x Monteiro Lobato. Escritores de mesmo período, com, dadas as devidas proporções e métodos, desenvolvimento de temáticas semelhantes. Ali contrapus origem social, raça, posicionamento político e crença como aspectos principais. O primeiro, escritor negro, em uma morte precoce, terminou seus dias internado em um hospício e a maioria dos relatos de seu falecimento acusam “ataque cardíaco em decorrência do alcoolismo”. A grandiosidade de seus escritos só foi devidamente reconhecida anos após sua morte, incluindo o interesse de editoras renomadas apenas naquele momento. (Quem se beneficia com isso?)

O segundo, escritor branco, de família escravocrata, explicitamente racista (Ler: Se poupe das defesas a Monteiro Lobato; me poupe que eu lhe grite racista — Revista Negra Trama), morreu aos 66 anos, com imensa reverência e louvor às suas mais de 60 publicações, todas com devido reconhecimento e registro ainda em vida. Sua família é ainda beneficiária de toda sua riqueza.

O resultado da comparação foi assombroso, mas o desenvolvimento desse debate não é agora o mais importante. O exemplo acima me leva a retomar essas questões e iniciar uma discussão sobre representatividade, com alguns pontos mais elucidados.

Em um encontro com um grupo de amigos, um deles (Salve, Alê!) enfatizou que “A representatividade é vazia” e isso serviu para eu compreender melhor o que já enxergava, por isso quero me ater ao exemplo de Lima Barreto e dividir com vocês alguns pensamentos.

No último ano tive muito contato com seus escritos, sejam ficcionais ou de relatos e dentre as buscas sobre o autor acabei me deparando com o título “Lima Barreto: Triste Visionário”, obra publicada por Lilia Moritz Schwarcz, em 2017. A publicação de mais de 500 páginas resulta de uma imensa pesquisa feita pela autora sobre a conturbada vida do pré-modernista. Aparentemente essa tem sido a fonte mais procurada para compreender a vida do escritor negro. O que isso nos diz sobre representatividade?

Schwarcz muito versa sobre a trajetória de Barreto e de toda a sua família, sobre seus sofrimentos e angústias (que, de certo, não foram poucos) e tem sim resultados louváveis. Não tenho intenção de desfazer aqui nada do que foi escrito pela autora, afinal, segundo o que aprendi com Nego Bispo, só desfazemos o que queremos aprender e não tenho pretensão de aprender exploração. Minha intenção é chamar a atenção estritamente para o caráter de responsabilidade (ou da falta dela) do sujeito branco sobre seu objeto de estudo.

Aparentemente, Lilia descobriu que o negro brasileiro sofre diversas injustiças sociais, mesmo com toda a grandiosidade que ele possa vir a desenvolver, mas ela esqueceu de olhar para os do presente e eis aqui o problema da representatividade: o problema de se ter mais uma publicação sobre uma figura negra que nada vai usufruir disso, nem mesmo seus semelhantes. Quem ganha com a descoberta (só agora) da genialidade de um homem negro renegado pela mesma sociedade décadas atrás? Eu mesma respondo: Editora Schwarcz S.A.

Já nos mostrava Alberto Guerreiro Ramos que “O negro-tema é uma coisa examinada, olhada, vista, ora como ser mumificado, ora como ser curioso, ou de qualquer modo como um risco, um traço da realidade nacional que chama a atenção.” Coincidência nenhuma a visão da escritora judia sobre o autor que ela pesquisa e a de todos os outros autores brancos que se sentem plenamente autorizados a escreverem sobre a vida ou a obra de pessoas negras. É aqui onde nos deparamos com a incoerência de uma suposta branquitude crítica, que não mede esforços em continuar sendo protagonista de tudo quanto lhes convém.

Não acredito na benevolência do “Branco em desconstrução” e sequer me espanto com a conduta de Lilia Schwarcz. Ela exerce todo o seu poder de fala tendo como foco um homem que nunca foi ouvido. Lima Barreto é, em “Triste Visionário”, o negro-tema da autora, mesmo com toda a afeição que ela afirma nutrir por sua memória. Eis como é forjada a manutenção de poder em um país racista em todos os aspectos. Privilégio branco/ desonestidade branca, é ter plena consciência sobre os problemas raciais que exploram e maltratam todo um povo e mesmo assim persistir com a manutenção desse sistema, ou pior, se beneficiar financeiramente com ele. É aí onde está o problema da representatividade.

Quando Spivak alerta sobre o perigo dos intelectuais que almejavam apenas falar pelo outro, me vem o exemplo de Schwarcz. A intelectual ultrapassou a linha não tão tênue entre “falar por” e “re-presentar”. Assim, seguindo ainda pelo caminho de Spivak, esse processo de representação, mesmo que por homenagem, admiração, seja lá como queiram nomear, em nada auxilia o sujeito representado. Do contrário, sustenta o ideal de “negro-tema” de que falava Guerreiro Ramos.

Lima Barreto continua marginalizado, mas gerando renda e visibilidade para quem sobre ele escreve. De certo que Lilia nada mais pode fazer por um homem morto, mas alguém que tanto se diz sensível sobre questões de raça e aparentemente entende sobre o assunto, deveria também (no mínimo) entender sobre a estrutura de poder que ela tem ajudado a manter. [E, supondo que entenda, a situação é ainda mais crítica, mas não espantosa, convenhamos].

Não é difícil notar que a autora carrega, inevitavelmente, a herança do branco brasileiro, mesmo com sua mentalidade anti-racista e sua vivência de busca por uma efetiva desconstrução. Nesse caminho, afirmo ainda que anti-racismo de branco, quando apenas no discurso, é manutenção de poder. Por isso, conquistar visibilidade através da genialidade sufocada de sujeito-negro é explicitamente desonestidade branca.

O povo preto e os indivíduos pretos não precisam de reconhecimento pós morte que não mexa nas estruturas hegemônicas brancas.

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Marina Maia
Revista Negra Trama

Negra-vida — Cearense, professora de muita coisa, em constante formação; amante das literaturas que me falam.