Sobre um Ceará frio

Marina Maia
Revista Negra Trama
3 min readJan 27, 2021
Arquivo pessoal

Se você já veio ao Ceará, em qualquer época do ano, deve ter percebido um sol intenso e um calor constante. Quem mora aqui até sabe reconhecer o calor “normal” e o calor que “só pode ser de chuva”. Ainda assim, sempre faz calor. Mas existe um fenômeno que tem ocorrido de uns tempos pra cá (uns anos, décadas ou séculos) referente a uma determinada parte da população estar sofrendo de um frio intenso. Isso mesmo, um frio congelante, em pleno estado cearense, em plena Terra da Luz. Não é um fenômeno completamente desconhecido, eu mesma já havia lido sobre coisas bem semelhantes em “A Descoberta do Frio”, de Oswaldo de Camargo, mas aquilo é ficção, vivida em São Paulo, nas praças de lá, onde é comum haver frio sempre que possível, não aqui. Aqui sempre houve calor para todos, igualmente.

Seu Oswaldo denunciou o que aconteceu ao menino Josué Estêvão. Segundo ele, em certo dia, o menino apareceu em uma praça tremendo de frio. Nesse episódio relatado, as pessoas tentavam ajudá-lo e também entender o que acontecia, mas ele “não conseguia responder. Via-se a boca, inundada de desespero, tentar pronunciar algo, mas o treque-treque dos dentes e o bater seco dos queixos anulavam as palavras, liquidavam-nas nos lábios trancados para qualquer explicação.”

Bom… pensando melhor, poderia citar diversos momentos em que algo parecido tenha acontecido comigo ou com alguém próximo. Pensando melhor ainda, todas as pessoas pretas que conheço e que moram aqui já tiveram uma sensação semelhante. Ao sairmos para qualquer lugar, ou mesmo dentro de nossas casas, em determinado momento nossos corpos tremem e nossos dentes batem como quem estivesse em pleno Alasca sem roupas adequadas.

Arquivo pessoal

Ainda assim, além desse frio individual que em algum momento nos encontra, o que venho relatar é um fenômeno de maior magnitude. Alguns de nós temos percebido que existe em nosso estado algo como um “mapa do frio”. Não dos que se referem às nossas serras, mas do tipo que localiza pontos de nosso estado [em nossas terras e em nossa história] que foram completamente congelados. Me deixe tentar explicar: imagine um frio capaz de congelar um sem-fim de mar ou sertão e todos os corpos que por esses passaram e nele invocaram a mudança de todo um país. Pois é disso que estamos tratando. Entendemos que o frio que sentimos vez ou outra seja um pequeno reflexo dessa coisa maior. Acreditamos que em cada parte do chão em que pisamos haja um bloco de gelo contendo boa parte do que precisamos saber sobre nós.

É como em um filme infantil, onde existem paredes de gelo imensas envolvendo o livro que conta nossas histórias. Nós sabemos que esse livro existe, podemos ver sua capa, até estipular a quantidade de páginas que ele possui, também algumas letras de seu título, se tivermos uma boa visão, mas ele ainda segue intocável. Até esses dias, para abrirmos suas páginas, precisamos rasgar com as unhas, as camadas espessas de gelo.

É possível que isso ocorra por costume dos que vêm do dito “velho mundo” [que em tudo que tocam as mãos, fazem sumir; uma espécie de Rei Midas das baixas temperaturas.] Aquela gente de pele clara como a neve tem essa mania: transformam o que querem em gelo, talham como bem lhes convém e ainda dizem ser os donos do que nem conhecem. É um costume.

Acontece que, na contramão do que esperavam os “donos do Ceará”, existe um calor ancestral que derrete qualquer gelidão. Aqui nessas terras existe um fervilhar barulhento em cada canto seu, tão potente como a erupção de um vulcão e ele só precisa ser escutado pelos ouvidos certos. Ninguém avisou àqueles, mas quem caminha pelo nosso chão precisa saber lidar com o fogo.

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Marina Maia
Revista Negra Trama

Negra-vida — Cearense, professora de muita coisa, em constante formação; amante das literaturas que me falam.