A família brasileira só enxerga os próprios filhos

A falácia da proteção à família serve aos interesses de um setor que vende a morte. A esfera civil ainda se vê à margem da discussão

Nicollas Witzel
Revista Poleiro

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Por Nícollas Witzel

Rogério Mendonça é homem de bem. Pai, marido, engenheiro agrônomo e deputado federal, temente a Deus e a favor da família tradicional. O terno bem cortado e o cabelo lambido antecipam que palavras como “aborto” lhe dão calafrios na espinha. Peninha Mendonça, seu nome de urna, é um clássico defensor das liberdades individuais da classe média.

O deputado Peninha é autor de um projeto posto em audiência pública no dia 20 de novembro de 2014, pedindo a flexibilização da Lei nº 10826, conhecida como Estatuto do Desarmamento. Não está sozinho: foi montada uma bancada de congressistas a favor da revogação da lei. Mas, afinal, o que realmente quer a Bancada da Bala?

Peninha Mendonça em ação. (Foto: Agência Câmara)

O Estatuto do Desarmamento entrou em vigor em 2003, no dia seguinte à sanção do ex-presidente Lula. A partir dele se instituiu a Campanha do Desarmamento, que durante os anos de 2003 e 2004 convocou a sociedade civil a registrar ou entregar sua arma de fogo para que ela fosse rastreada ou destruída pelo Comando do Exército. Segundo os dados do Ministério da Justiça, cerca de 450 mil armas foram destruídas, um sucesso para a campanha que visava recolher apenas 80 mil delas. Estendida para o ano de 2005, terminou com um referendo popular que questionava a esfera pública quanto à proibição do comércio bélico em território nacional. Venceu o “não”.

A representação parlamentar brasileira vem se tornando frágil como um castelo de cartas. Posta em cheque diversas vezes, se defende clamando pela democracia representativa e sua máquina burocrática. Em episódio recente, os parlamentares combateram o referendo popular sobre reforma política proposto pela presidente Dilma Rousseff com o mesmo argumento. A voz dos parlamentares tremula quando o assunto é participação pública em decisões diretas, o que significaria um maior interesse popular no sistema legislativo do país, atualmente um enigma para todas as classes. Estariam mesmo tais parlamentares preocupados com a “segurança das famílias”?

Muito importante nessa discussão é trazer à tona quem apoia quem. Nas últimas eleições, 21 candidatos financiados pela indústria de armas foram eleitos para cargos do legislativo, e são esses a ocupar as cadeiras da Bancada da Bala. Veja se você reconhece algum nome:

Deputados Federais
Onix Dornelles Lorenzoni — DEM/RS
Efraim de Araújo Morais Filho — DEM/PB
Misael Artur Ferreira Varella — DEM/MG
Darci Pompeo de Mattos — PDT/RS
Jerônimo Pizzolotto Goergen — PP/RS
Alceu Moreira da Silva — PMDB/RS
Ronaldo José Benedet — PMDB/SC
Daniel Elias Carvalho Vilela — PMDB/GO
Edio Vieira Lopes — PMDB/RR
Luiz Gonzaga Patriota — PSB/PE
Marcos Montes Cordeiro — PSD/MG
Nelson Marchezan Júnior — PSDB/RS
Carlos Alberto Rolim Zarattini — PT/SP
José Wilson Santinago Filho — PTB/PB

Deputados Estaduais
Enio Egon Bergmann Bacci — PDT/RS
Aldo Schneider — PMDB/SC
Tiago Chanan Simon — PMDB/RS
João Lúcio Magalhães Bifano PMDB/MG
José Francisco Cerqueira Tenorio PMN/AL
Lucas Bello Redecker — PSDB/RS
Nelson Souza Leal — PSL/BA

Na conta do Instituto Sou da Paz (com base em dados do TSE), os fabricantes de armas e munições destinaram R$1,73 milhão para políticos de 12 partidos em 15 estados. Metade desses recursos ficou com candidatos do PMDB e do DEM, do Rio Grande do Sul e de São Paulo. Todo esse dinheiro não corre na amizade: há um interesse comercial a ser defendido, e essas empresas fazem lobby com os parlamentares. Em troca do financiamento, eles devem fazer contra-propostas e suavizações nos termos da lei que restringem a venda direta ou indireta da indústria de armas.

O argumento de que o Estado não funciona e o dito “cidadão de bem” precisa ter como se defender do crime peca em muitos pontos. Sem debater o elitismo do termo “cidadão de bem”, armar a sociedade civil significa admitir que o Estado está se retirando a responsabilidade de manter a segurança pública em dia. Como diz o coordenador de advocacia do Instituto Sou da Paz, Marcello Fragano Baird:

É quase um atestado de falência do Estado como instituição que deve zelar pela segurança pública. É como se dissesse: ‘Como não conseguimos resolver a situação, vamos armar o cidadão para cada um se defender’. Assume-se a guerra de todos contra todos.

Da mesma forma, afirmar que o porte de uma arma de fogo é uma “liberdade individual inviolável” sugere a pergunta: o porte e uso de drogas, como a maconha, não é uma liberdade inviolável? A mesma bancada que defende um, condena o outro. Mais uma sinal de que suas defesas são moeda de troca.

O texto de Peninha também aumenta o número de munição para os já portadores de armamento: de 50 balas por ano para 50 balas por mês.

Visto que, teoricamente, o Brasil não é um país em guerra, que razão teria um cidadão comum para demandar cinquenta balas por mês? Imagine se cada portador de arma no país gastasse essa quantia, quantos tiros seriam dados em um ano? Quantos acertariam algo ou alguém? A que nível setores periféricos do assunto, como salas de cirurgia ou o controle de extravios seriam afetados por essa mudança de estratégia?

Atualmente, um cidadão — seja ele considerado “de bem” ou “de mal” — só pode portar arma e munição em casos especiais, nos quais se comprove a necessidade da compra. Ao invés da revogação dessa medida, que tira das mãos públicas a possibilidade de matar alguém, a equipe de deputados poderia se preocupar em otimizar a atuação do Estado na raiz dos problemas: a falta de educação básica nas favelas, pouca estrutura e planos de carreira para a classe baixa e praticamente nenhuma perspectiva de recuperação para os envolvidos em crimes — no lugar de trancafiá-los em uma penitenciária.

A Bancada da Bala tem pressa: a Comissão Especial criada para debater o assunto se extingue em 2015. O projeto por pouco não foi passado diretamente à Câmara dos Deputados, onde seria posto em votação. Normalmente, o caso seria apreciado por outras comissões até ser posto em análise definitiva. Este processo de não transparência procura levar o texto à frente sem os embargos das outras comissões e da opinião pública contrária à mudança. O deputado Alessandro Molon (PT-RJ), descontente com o projeto, argumenta que para cada caso de necessidade de um cidadão portar arma em casa, há vários casos trágicos. Completa:

Um assunto tão sério somente com uma audiência pública? A comissão não vai cometer esse erro. Não faz sentido. Isso vai ficar muito feio para esta Casa.

Alguns favoráveis ao projeto de Peninha Mendonça abandonam a lógica para defender a medida nas tribunas e coletivas. Alberto Fraga (DEM-DF) declarou que “culpar as armas de fogo é falta de argumento”, já que “é o cidadão que aperta o gatilho, então a culpa não é da arma”. Coronel da reserva da Polícia Militar, Fraga defende que o combate ao crime não deve ser freado, e sim o crime em si. O que o Coronel não menciona é que “o crime”, um problema estrutural, não pode ser resolvido no tiro. Ainda que o Estado assassinasse todos os traficantes que vivem em seu território, não demoraria para que novas células se formassem e os lugares vagos fossem novamente preenchidos.

A esfera pública precisa ser integrada nessa discussão. O armamento da população, além de tornar o estado inútil nesse âmbito, significa mais mortes intencionais e acidentais. A situação política nacional não se dá por acaso: o setor popular é tão corrupto quanto o legislativo. A base conservadora precisa aprender que a formação da democracia passa justamente por garantir serviços de qualidade à população, ao invés de esperar que ela mesmo resolva os seus problemas sociais administrativos. O texto do deputado Peninha volta à audiência pública no mês de dezembro.

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Nicollas Witzel
Revista Poleiro

Repórter do jornal O Globo e editor da @RevistaPoleiro. Aproveite enquanto o sonho é grátis