A vida sob o véu

O dia-a-dia das mulheres muçulmanas no ocidente, evidenciadas pelo traje que as deveria esconder

Nicollas Witzel
Revista Poleiro

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Por Nícollas Witzel

O fim de tarde de fevereiro pintava o céu branco opaco de São Paulo com alguns raios de sol, que reluziam acima dos prédios. Abaixo, Cristiana Ventura caminhava pela calçada de pedras portuguesas envergando um vestido longo e escuro, que chamava atenção por cobrir absolutamente todo o seu corpo. Cristiana é uma professora e estilista, na casa dos 30 anos, com os cabelos louro-platinados. Naquela semana ela participava do projeto Euxperimento, de autoria de um amigo, o fotógrafo Richard Hodara. Durante 11 dias Cristiana vestiru um niqab, veste tradicional do islamismo wahhabista, que cobria todo o seu corpo com exceção da área ao redor dos olhos. Foi orientada a manter rotina durante a experiência: deu aulas, saiu com amigos e usou o transporte público de São Paulo. Não demorou para que percebesse a mudança de comportamento por parte das pessoas com quem cruzava na rua.

“É estranho, de repente todo mundo olha pra você”, contou em entrevista a um portal de notícias. Entre tirações de sarro e xingamentos, Cristiana diz ter tido dias em que não quis sair de casa por conta da pressão de ser observada o tempo todo. Ela foi chamada de "biscate" por uma senhora passante, que ainda disse que a moça "merecia uma chibatada". Um outro homem gritou que ela iria "explodir".

O que se chama de wahhabismo é o braço ortodoxo do islã, popular na Arábia Saudita. Essa vertente prevê o uso de trajes que mantenham coberta a maior parte do corpo feminino. As regras, entretanto, são muitas vezes mal interpretadas ou generalizadas pelo lado de cá. O niqab, traje escolhido para o experimento em São Paulo, não é tão comum em outras regiões sob a batuta do Alcorão. É um rito geográfico de natureza cultural, não religiosa. Da mesma forma a burqa, um dos modelos mais conhecidos no ocidente, é mais ligado à cultura pashtun afegã do que à religião de um modo geral. O uso de algumas dessas vestes são ainda preliminares ao nascimento do islã, como o chador, tradicional do atual Irã, presente desde os tempos do império Persa, com registros de uso já no século XVIII.

Um homem encara Cristiana ao caminhar na rua, foto à esquerda. No lado direito, ela no metrô. (Fotos: Richard Hodara/Vision Lights)

Já faz tempo que os estudiosos vêm tendo que contornar a falta de dados estatísticos confiáveis sobre o número de muçulmanos vivendo no Brasil. Nos extremos das estimativas disponíveis estão, de um lado, fontes oficiais como o censo do IBGE, que aponta pouco mais de 35 mil muçulmanos declarados. Por outro, a contagem de porta-vozes das instituições islâmicas nacionais e internacionais, que falam em mais de um milhão de fiéis no Brasil.

Cristiana participou de uma experiência rápida: depois de 11 dias ela deixou o véu para trás e voltou ao anonimato. Cerca de 3.731 mulheres continuaram vivendo o desafio de ser mulher muçulmana na capital de São Paulo.

AMesquita da Luz se destaca do restante dos prédios de uma rua residencial na Grande Tijuca, Rio de Janeiro, principalmente pela arquitetura. Os vitrais coloridos dividem a fachada do templo com duas torres recobertas por um azulejo esverdeado. Dentro da mesquita, conhecida entre os adeptos pelo nome em árabe Masjid El Nur, está instalada a Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro, que faz a representação oficial dos fiéis no estado. Em duas oportunidades, conversei com Fernando Celino, assessor de comunicação da Sociedade, em meio a uma grande quantidade de materiais de construção — a estrutura da mesquita ainda estava recebendo acabamentos. Ele pediu um minuto antes de começarmos, prostrou-se diante de um pequeno nicho que marcava a posição da cidade sagrada de Meca e seguiu uma oração.

A SBMRJ nasceu em 1951 no número 176 da Avenida Gomes Freire, que corta o Centro do Rio até a Lapa. Um grupo de imigrantes árabes sunitas buscava um lugar onde pudessem fazer suas orações juntos. A pequena sala não era divulgada a outros fiéis por falta de espaço, o que dava um clima quase que familiar. Só em 1993 os filhos dos fundadores, ainda jovens, expandiram a sociedade e abriram as portas para outros muçulmanos. A mussala, como são chamados esses espaços de congregação, logo ficou pequena, quando foi implementado um esquema de revezamento entre os grupos de oração. Em meados de 2007 a sala foi deixada de lado e a sede da sociedade se transferiu para a Mesquita da Luz.

Fernando acha que o ocidente vem distorcendo, há muito tempo, o efeito prático de alguns pontos fundamentais do islã. Do lado de cá, por exemplo, há um consenso de que nesses países as mulheres são inferiorizadas e subjulgadas. Ele argumenta que, segundo as escrituras, "homens e mulheres são iguais enquanto seres humanos, mas diferem em suas características" — e essas diferenças seriam a razão para esperar dois gêneros direitos e deveres distintos.

“Muito antes da mulher ocidental conquistar certos direitos, o islã já havia garantido isso a elas há 1436 anos, quando o Alcorão foi revelado. O direito ao voto, à herança, ao casamento, a ter prazer sexual e não ser usada como um objeto. Direito ao trabalho e estudo, que na verdade são obrigações de todo muçulmano. Não falo de conhecimento religioso, mas acadêmico. Principalmente aquela que será mãe e precisa ser uma pessoa sábia para educar os filhos.”

Ainda assim, uma cartilha de boas-maneiras é implícita ao que se considera um comportamento casual entre as próprias muçulmanas. Alguns desses hábitos, quando com o Estado acima da religão, põem a mulher em evidência, principalmente no vestuário. De longe o mais popular entre as fiéis, o hijab consiste fundamentalmente em um lenço sobre a cabeça— não existe regra quanto a cor, espessura, material ou formato, desde que cubra os cabelos. O motivo é uma interpretação não absoluta do Alcorão. Segundo as escrituras, Alá teria revelado ao profeta que a mulher crente deveria se proteger de olhares estranhos, forma de demonstrar ser muçulmana e casta, se prevenindo contra qualquer tipo de moléstia. “A sensualidade feminina é explorada exaustivamente e nós acreditamos que a mulher é muito mais do que isso. Em casa, com seus familiares, ela pode ficar à vontade, usar os trajes que quiser. Na rua, esse é um acessório que a valoriza pelo seu interior, e não pelo físico”, diz Fernando.

Do lado de cá, os trajes islâmicos são frequentemente associados a uma imagem punitiva, dentro da nuvem de achismo que cobre as conversas sobre o assunto. É menos sabido, por exemplo, que também existem regras para eles: o homem deve estar coberto pelo menos acima do umbigo e abaixo do joelho, preferencialmente usando calça e camisa. Já a mulher deve estar com todo o corpo coberto, inclusive os cabelos. As questões culturais fazem dessa equação, inicialmente simples, totalmente variável, quase sempre dando privilégios e direito de escolha somente ao homem. As reações à desobediência também são muito diferentes entre os gêneros e dramaticamente mais severas para mulheres. Por mais estranho que possa parecer para um observador cristão, é natural para homens e mulheres muçulmanos encontrar sentido nos rituais prescritos. “Muito se fala da burqa, que cobre todo o corpo e deixa apenas uma pequena tela para a visão. Acontece que essa é uma vestimenta específica do Afeganistão, muito mais relacionada ao aspecto cultural do país do que propriamente ao islã. As afegãs costumam fazer muito mais do que a religião pede. A escolha do traje é uma questão pessoal”, diz a SBMRJ.

O choque que o traje muçulmano provoca na sociedade ocidental tem raízes em guerras de soft-power religioso e político na História do homem social. É curioso que as freiras católicas usem uma vestimenta muito semelhante que a burca há séculos, sem que se pense que são forçadas a usar os trajes. “Entende-se que é uma temência a Deus, e se é uma submissão, é somente a ele”, diz o assessor. A colonização europeia pode explicar a vantagem de um conservadorismo cristão sobre os outros, já que ele inaugurou a base das civilizações recém-descobertas atropelando a cultura nativa.

Nilópolis é o menor município do estado do Rio, com cerca de 20 mil quilômetros quadrados, a despeito de seus 157 mil habitantes. Numa segunda-feira, enquanto a cidade acordava e o trânsito começava a formar as primeiras filas, o proprietário de um imóvel alugado entrou irritado por sua porta da frente, trazendo o jornal do dia na mão. Brandiu o papel enrolado, falando aos berros.

“Quero que me devolvam a casa, e não quero nem receber o aluguel. É um dinheiro maldito! Sua gente não é bem-vinda aqui.”

Essa seria a terceira vez que Zahrah Carolina Bravo, empresária de 33 anos, teria que se mudar de casa. Ela, que já havia morado nos estados da Bahia e São Paulo, deixou ambos depois que a vizinhança se tornou impraticável. Radicada no Rio de Janeiro, já teve um tiro disparado na janela de sua residência. O motivo: Zahrah, muçulmana de orientação sunita, nunca abriu mão de usar o hijab nas ruas do bairro, o que gerava incômodo entre os vizinhos.

Pouco tempo antes da cena ela havia concedido entrevista a um jornal local — aquele nas mãos do proprietário — contando alguns episódios marcantes de sua estadia no Rio, que considera ser o lugar mais hostil dentre os que já conheceu. A gazeta foi para a banca no dia primeiro de fevereiro de 2015, um domingo. Na segunda-feira, o cafezinho na portaria do condomínio condenava a entrevista de Zahrah. “É um povo terrorista. Cortam cabeças, jogam bombas, e não querem receber nenhum troco. Têm que morrer. Tudo de ruim vem para o Brasil”, debatiam os outros moradores. Zahrah se aproximava devagar. “Quando me viram, pararam de falar”, conta.

De acordo com os dados do IBGE, o número de muçulmanos no Brasil cresceu 29,1% entre os anos de 2000 e 2010. Seriam cerca de 35.167 pessoas vivendo sob as leis do Alcorão. Todos os estados da federação têm islâmicos declarados, e as cinco maiores concentrações ficam no eixo sudeste, com São Paulo em primeiro lugar, seguido do Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

A maioria dos adeptos tem entre 15 e 40 anos, e esses são majoritariamente homens e urbanos, ou seja, a maior parte do islã brasileiro compõe a parcela produtora da população. Na procura por emprego, muitas vezes precisam desviar de um olhar atravessado do mercado. Naquele ano (o último censo foi realizado em 2010), o Brasil tinha 190,7 milhões de habitantes.

Muçulmanos declarados por região. Dados: IBGE (2010)

Na nordestina Maceió, capital de Alagoas, não foi contabilizado um único islâmico no último estudo, enquanto só em São Paulo foram 14.778 fiéis. Paralelamente, no estado de Alagoas foram contados os únicos indígenas que se declararam muçulmanos em todo o nordeste. Esses 4 homens, junto com 11 mulheres também indígenas anotadas em Minas Gerais, formam o menor grupo étnico do islamismo brasileiro. A grande maioria é branca, seguida de pardos, pretos, amarelos e índios.

O Brasil tem uma política teoricamente amistosa em relação aos muçulmanos se comparado a outros países, principalmente os europeus. O senado francês aprovou, em 2010, uma lei que proíbe uso de véus religiosos de corpo inteiro em qualquer espaço público do país. Mas ainda que tenha resguardado o direito da crença livre, o brasileiro generalizado encontrou maneiras mais subjetivas de repelir a espontaneidade do véu.

“Depois da matéria, alguns conhecidos vieram me questionar. ‘Você é tão gente boa, não pode ser muçulmana’, diziam. Ouvi isso de um engenheiro civil, uma pessoa instruída. Ele ainda pediu que eu não o levasse a mal antes de me aconselhar a procurar uma igreja — católica — para ‘aceitar Jesus’.”

O marido de Zahrah conta que todos os seus 21 colegas de trabalho já o aconselharam a buscar um divórcio. Ele diz ser comum que descrevam um arquétipo da muçulmana como interesseira e articuladora. Todos são jornalistas membros da ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Ele viu a esposa ser dispensada de seus empregos na TMKT e na operadora Claro por gerentes que sentenciavam não querer na loja uma funcionária que precisasse esconder o rosto ou interromper o expediente para rezar. De lá pra cá, foram várias as situações em que a moça foi discriminada em função do credo. Em 2010, já no Rio de Janeiro, um motorista de ônibus da linha 107 (Central x Urca) empurrou Zahrah para fora do veículo enquanto gritava “terrorista aqui não!”.

Ela apresentou denúncia ao ministério do trabalho no primeiro caso (o processo terminou arquivado) e ganhou uma ação contra a Rio Ônibus pelo segundo.

A tampa dessa histórica panela de pressão foi colocada no dia 12 de setembro de 2001, no dia seguinte aos ataques no World Trade Center, NY. A opinião pública caiu como um raio no link entre Al Qaeda e islamismo, e ali começou a corrida da culpa para os muçulmanos do mundo todo. “Hoje, até um traficante ou estuprador tem mais respeito à sua integridade física e moral do que um muçulmano. A sociedade nos condenou por sermos adeptos da nossa religião. Não se distingue islâmico de terrorista”, desabafa Zahrah. Em 2010, ela ingressou no curso de Pedagogia na Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO). Durante o trote universitário um de seus veteranos apagou um cigarro em seu hijab, que consequentemente pegou fogo. O incidente deixou uma cicatriz em seu couro cabeludo onde os fios jamais voltaram a crescer. “Ao entrar na sala, eu era chamada de esposa do Bin Laden”, lembra. Em pouco tempo ela desistiu do curso.

Grande parte das implicâncias com as mulheres na rua nasce com tom de brincadeira. Quase todas já foram chamadas de Jade, aludindo à novela O Clone. Na Europa e nos Estados Unidos o preconceito tem um contorno mais perigoso, chegando a discursos xenófobos e agressões físicas dos dois lados, às vezes evoluindo para atentados diretos, como aconteceu no início de 2015 na sede do jornal Charlie Hebdo. A SBMRJ, que fala oficialmente pelos fiéis no estado, condenou os ataques, esclarecendo que “matar alguém é um crime muito pior do que ofender a honra do profeta”. No Natal de 2013 o grupo Porta dos Fundos fez um especial de 20 minutos parodiando as tradições da cerimônia, e a SBMRJ, junto da igreja católica, entrou com uma ação judicial contra o grupo. “Engana-se quem pensa que nós temos apenas um profeta. Jesus também era um profeta, e aquela forma de retratação foi absolutamente desrespeitosa.”

A história se repete: cada vez que o noticiário traz algum choque com o cristianismo e suas vertentes, os muçulmanos brasileiros sentem a chapa esquentar. Em 2013, no dia seguinte a uma reportagem da Globo mostrar a vida de algumas mulheres no Líbano, Zahrah foi verbalmente agredida na rua. Quando a tevê falava sobre os homens-bomba usados pelo Hamas na Palestina, foi chamada de “mulher-bomba”. Ela está certa de que, nas duas situações, foi o véu sobre sua cabeça que intrigou os passantes. “No trem, um homem gritou ‘é muçulmana! Mulher-bomba! Terrorista! Vou sair daqui!’ e então saiu correndo do vagão.”

A passagem da Avenida Martin Luther King é uma ruazinha estreita que liga a estação de Del Castilho à Avenida Dom Hélder Câmara, uma das principais vias da cidade do Rio. Saindo da estação de metrô no início da viela, um rapaz caminhava enquanto ouvia música em seus fones de ouvido. De pele muito clara e cabelos descoloridos, vestia uma camiseta do Chicago Bulls alguns números maior que o seu. Cruzou com uma mulher que vestia um hijab azul turquesa, o que o fez virar o pescoço o máximo possível para vê-la se afastar. A moça apertava o passo e protegia um pequeno livro preto da chuva que caía. Analía Jalil corria para chegar a um shopping próximo da estação antes que a garoa engrossasse. Carioca de 39 anos, ela era uma muçulmana iniciante e ainda estava se acostumando com a nova rotina. Quando Analía alcançou as portas automáticas do shopping, o jovem ainda a observava.

Havia uma movimentação incomum no bairro naquele dia. O padre Marcelo Rossi lançava uma autobiografia em uma livraria próxima. Filas quilométricas invadiam as calçadas do bairro, fãs em busca de um autógrafo. Enquanto muita gente que desejava espiar o padre passava apressada pela mesinha em que eu conversava com Analía, na porta do shopping, contei dois ou três rabos-de-olho para o véu, o que também não passou despercebido por ela. “Prefiro pensar que é curiosidade. No trem, no metrô, no ônibus, muita gente olha, pergunta, e parece insatisfeito com a resposta. A gente teme aquilo que não conhece”, disse.

Ela conta que a pior resistência à sua conversão veio de casa. “Meus pais são evangélicos, do tipo bem fervoroso, e durante toda a minha adolescência me passaram os valores deles. Eu me considerava uma boa cristã quando fui a uma mesquita com uma amiga que insistiu muito. Saí de lá com minha fé restaurada, mas não exatamente no cristianismo. Tudo no islã fez sentido pra mim, e hoje tenho a sensação de sossego de que fiz a escolha certa”, contou. A moça pediu que seu nome real não fosse escrito nesta reportagem, mas permitiu que usássemos um fictício, que escolhemos ali mesmo, naquela mesa. “Analía. Vi num filme, uma vez. É um nome muito bonito”, ela disse.

É fato que as religiões criam uma espécie de tradição hereditária, o que sugere que uma geração será sempre influenciada, em algum nível, pela escolha espiritual dos pais. O islamismo ainda soma uma alta carga de estereótipos, fruto da midiatização irresponsável e desenfreada de assuntos que de alguma forma tenham ligação com os fiéis. Histórias como a de Analía geralmente não terminam com a protagonista escrevendo o seu próprio roteiro.

“O islã é a religião que dá a cada qual o que lhe é de direito. Nós entendemos que Deus já definiu, através das revelações, os direitos e deveres de cada um. Não tem discussão. Países onde os direitos não são garantidos não só podem como devem buscá-los, mas tenho ressalvas quando se cria um movimento que pretende colocar os dois gêneros em total pé de igualdade”, diz Celino, da SBMRJ.

O islã se engaja nas complexidades sociais tratando as pautas de minorias com conservadorismo, clássica abordagem religiosa. O aborto é permitido em casos de estupro, até o quarto mês de gestação, ou se a gravidez representar risco de vida para a mulher. “A vida dela tem preferência. Essa mulher já tem uma família e uma história. Se não tiver jeito, é melhor que seja feito”, explica. Alguns casos podem evoluir para grandes paradoxos. A união gay (civil ou meramente afetuosa) é fortemente desaconselhada, vista como um pecado frente à família. Mas Fernando esclarece que isso não faz com que o fiel deixe de ser muçulmano. “Ele sabe que é um pecado e o comete, mas isso não o exclui do rito. Responderá por isso diante de Deus.”

Enquanto conversávamos naquela quinta-feira, Fernando me contou uma história para esclarecer as diferenças de interpretação dentro e fora do islã. Certa vez, uma vertente proclamou que Maomé desaprovava a música. Essa certeza viria diante de um relato de que ao passar por um grupo que tocava, o profeta tapou os ouvidos. Diante do mesmo relato, uma segunda corrente afirmava que, ao fazer esse gesto, o profeta condenava aquele ritmo, especificamente — a música seria permitida desde que fosse religiosa. Por fim, um terceiro grupo de intérpretes defendia que, se desaprovasse a música, Maomé teria dito algo em um de seus discursos, ao invés de esperar que todos adivinhassem seus pensamentos. Ao levar as mãos à cabeça e cobrir os ouvidos, o profeta expressava sua simples vontade de não ouvir àquele som.

O impasse entre Maomé e a música é um retrato dos desentendimentos entre os fiéis de diferentes credos, principalmente os que se chocam com o catolicismo. A interpretação e a narrativa influenciam a visão do mundo sobre esses religiosos. As metáforas dos fiéis de qualquer credo têm potencial pra explicar mais sobre si mesmos do que, muitas vezes, eles imaginam.

Matéria e ilustrações por Nícollas Witzel. Revisão por João Brizzi.

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Nicollas Witzel
Revista Poleiro

Repórter do jornal O Globo e editor da @RevistaPoleiro. Aproveite enquanto o sonho é grátis