25 de agosto de 1967: Paul McCartney e Mick Jagger esperam pela saída de um trem na Euston Station, em Londres

Beatles ou Stones: de que lado você está?

A supremacia cultural dos garotos de Liverpool contra o sex appeal da banda de Mick Jagger

João Brizzi
Revista Poleiro
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13 min readMar 13, 2015

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Por Anthony DeCurtis
Tradução por João Brizzi

Em algum momento durante o recente especial de televisão na comemoração dos 40 anos do Saturday Night Live, uma porta no set se abriu para que Keith Richards emergisse sob uma imensidão de aplausos. De paletó preto, calça apertada e uma camisa branca que tentava fugir de seu corpo, Richards desfilou com sua típica pompa até o centro do palco. Como sempre, ele pareceu estar exatamente no lugar onde pertencia. A única coisa que faltava era seu cigarro — e, claro, sua guitarra.

“No início dos anos 60 surgiu, na Inglaterra, uma banda que mudou o mundo”, disse Richards com sua típica voz aconchegantemente rouca. Após uma pausa dramática, ele sorriu e continuou: “mas já basta de falar sobre os Rolling Stones. Senhoras e senhores, Paul McCartney.”

Foi um momento como milhares de outros ocorridos durante a última metade de século. Os Beatles e os Stones, grandes líderes e rivais do rock’n’roll dos anos 60, dando as mãos e coreografando um movimento que conhecem tão bem. Richards, inacreditavelmente cool, ainda cumpria o papel de abrir um ato para seus grandes rivais. Será que uma situação como essa poderia acontecer de maneira inversa? Será que Paul McCartney faria a introdução para uma performance de Richards ou Jagger ou dos Stones — ou que alguém teria a pachorra de lhe fazer tal proposição? Provavelmente não. Isso mudaria o que acabou por ser a ordem natural das coisas: os Beatles como a brilhante estrela no centro de seu próprio sistema solar; os Stones forçadamente satisfeitos como o maior e mais impressionante planeta orbitando em volta deste.

Curta e grossa, a introdução feita por Richards lembrou Mick Jagger durante a indução dos Beatles ao Hall da Fama do Rock em 1988. (Vale lembrar que quando os Stones foram homenageados com a mesma honraria, no ano seguinte, nenhum beatle apareceu no microfone para falar algo sobre eles. Quem teve de fazê-lo foi Pete Townshend, do The Who). Em seu discurso naquela noite, Jagger rememorou sua surpresa quando, enquanto membro de uma banda de R&B aspirante em Londres, ficou sabendo sobre um grupo provinciano de Liverpool que não só tinha um contrato com uma gravadora, como também um lugar nas paradas de sucesso com uma tal de “Love Me Do”.

Janeiro de 1988: George Harrison e Mick Jagger se encontram na terceira cerimônia de premiação do Hall da Fama do Rock

“Quando eu ouvi essa história pela primeira vez, quase passei mal”, admitiu Jagger. Ele esbravejou sobre a imagem de boy band que os Beatles tinham na época, já que eles sempre estavam juntos. “Naqueles tempos, eles nunca andavam sozinhos”, disse ele, incrédulo. Eles eram o Fab Four, o “monstro-de-quatro-cabeças” chamado JohnPaulGeorgeandRingo.

No entanto, quando os Beatles apareceram para assistir os Stones tocarem em um bar, mesmo o inabalável Jagger foi pego de guarda baixa. “Eles tinham aquelas lindas jaquetas de couro preto”, se lembrou enquanto exalava inveja, mesmo um quarto de século após o evento. “Eu realmente poderia morrer por uma daquelas. Eu pensei: ‘Ainda que eu tenha de aprender a escrever músicas, eu vou arranjar uma dessa’.”

O fim do discurso, por outro lado, trouxe um momento comovente. “Nós passamos por alguns dias muito estranhos. Tínhamos uma rivalidade muito grande nos primeiros anos e até mesmo alguns estranhamentos, mas sempre acabávamos como os amigos que eu ainda gosto de pensar que somos, já que aqueles foram alguns dos melhores momentos de nossas vidas.”

1964: da esquerda para a direita, Paul McCartney, John Lennon, Ringo Starr e George Harrison

Tal momento sentimental não impediu que, há alguns anos, durante um jantar em Nova Iorque, uma mulher provocasse Mick Jagger ao perguntar: “Todo mundo é uma pessoa meio Beatles ou uma pessoa meio Stones. Que tipo é você?” Ele não provocou de volta: “Sou um cara tipo Stones”, respondeu, com calma.

Voltando à época em que ambas as bandas estavam começando, as comparações entre elas se tornaram a base de uma daquelas discussões sem resolução que os amantes da música tanto gostam: quem é melhor, Beatles ou Stones? John McMillian, professor da Georgia State University, até mesmo dedicou um livro ao debate em 2013. De nome singelo, Beatles vs. Stones é meticulosamente imparcial, mas ainda assim faz permanecer a suposição de que você tem de escolher um lado.

É óbvio que esse dilema não é exclusivo das duas bandas: temos Black Keys vs Jack White, Rap da Costa Leste vs Rap da Costa Oeste, Taylor Swift vs Katy Perry e tantos outros. Os conflitos também não são exclusivos da música. Quando eu cursava Literatura Inglesa no Hunter College, em Nova Iorque, o crítico literário Alfred Kazin disse, durante uma participação em um curso sobre D.H. Lawrence, que era impossível gostar, ao mesmo tempo, de Lawrence e James Joyce. Você tinha de escolher um ou outro.

1964: Os Stones no portão da igreja de St. George, na Hanover Square, em Londres | 1963: Os Beatles posam para a capa do EP “Twist & Shout”

Me divirto tanto quanto qualquer um com esse tipo de discussão, mas devo admitir que gosto tanto de Lawrence quanto de Joyce. E gosto tanto dos Beatles quanto dos Stones. Minha inclinação tanto como fã quanto como crítico é a de ouvir e avaliar a música pelo que ela é, não pelo que eu gostaria que ela fosse. Eu também gosto de quando as pessoas apreciam as coisas e, em vez de tentar ganhar um like ou evitar um comentário ruim, sempre senti que meu objetivo enquanto crítico era o de ajudar as pessoas a extraírem o máximo das músicas que gostam e, também, chamar a atenção delas para canções que elas possivelmente tivessem ignorado. Ao contrário de muitos de meus colegas, eu não tenho orgasmos por detonar artistas ou discos. Se não gosto de alguma coisa, prefiro só deixar pra lá.

Infelizmente, isso nem sempre é possível. Eu passei cinco anos como editor da seção de críticas da Rolling Stone, e o trabalho necessariamente passava pela publicação de análises negativas. Esse tipo de seção não faz sentido se tudo que publicarmos for positivo: ainda que só para criar alguma espécie de diversidade, você tem de misturar boas avaliações e avaliações ruins. Dito isto, eu sempre tentei encontrar escritores que tivessem algo interessante a dizer sobre álbuns ou estilos de música que não eram tão descolados ou que o público não esperava ver a Rolling Stone falando sobre. Eu estava mais interessado em entender o motivo pelo qual algo se tornava popular do que simplesmente descartar o assunto.

O que nos traz de volta aos Beatles e aos Stones. Eu tenho a minha preferência — gosto do Mick Jagger, sou um cara tipo Stones — , mas nunca realmente quis precisar escolher. A única vez que tive de fazer isso foi quando a rádio WNYC, carro-chefe da National Public Radio em Nova Iorque, me chamou para participar do debate Beatles vs Stones dentro do Soundcheck, um de seus programas.

1970: Os Stones já posavam bem mais confortáveis

O único problema é que eles queriam que eu defendesse os Beatles. Foi uma decisão difícil: eu poderia ter topado, eu adoro o programa e eu adoro os Beatles. Eu sabia todos os argumentos que os fãs utilizavam para defendê-los. Eu até concordo com alguns deles e poderia tê-los exposto com convicção. O problema é que eu não consegui fazer meu coração se virar contra os Stones, a minha banda favorita. Por isso, eu passei o desafio.

Ao longo dos anos, eu tive sorte o bastante para ter escrito tanto sobre os Beatles quanto sobre os Stones e ter entrevistado Mick Jagger, Keith Richards, Paul McCartney, George Harrison, Ringo Starr e muitas das pessoas que trabalharam com todos eles.

Infelizmente, John Lennon morreu antes de eu estar sequer remotamente próximo de uma posição que me permitiria falar com ele, mas eu cheguei a entrevistar Yoko Ono em várias ocasiões e a escrever sobre o próprio Lennon com alguma frequência. Uma das experiências mais comoventes da minha carreira foi conversar com Yoko regularmente sobre o lançamento de um box de John Lennon no apartamento que eles haviam dividido em Dakota. Um dia, saímos do prédio juntos bem no local em que ela viu seu marido ser morto. Imaginar a força que ela precisou ter para continuar vivendo no apartamento em que ela e Lennon passaram tanto tempo juntos, tendo de encarar aquelas memórias toda vez que ela entrava e saía do prédio, foi um dos pensamentos mais perturbadores que já tive.

Dezembro de 1968: Yoko Ono e John Lennon

É obviamente empolgante conhecer músicos famosos, mas é particularmente satisfatório poder fazê-lo e escrever sobre os artistas que você não só admira, como também sente que fizeram parte da construção da pessoa que você é. Os Beatles e os Stones me fizeram ser um cara que poderia dedicar sua vida a escrever sobre música. Eu era um garoto de 12 anos vivendo em Nova Iorque quandos os Beatles passaram por lá pela primeira vez, em fevereiro de 1964, e aquele momento me transformou. Era o meu primeiro encontro pessoal com as mudanças culturais que os anos 60 inaugurariam, e aquilo marcou uma quebra dramática com os valores conservadores ítalo-americanos que me circundavam em meu bairro e com a baixa empolgação com que o rock tinha sido recebido por lá depois de sua revolucionária concepção nos anos 50.

As coisas caminharam rapidamente naqueles dias, e logo os Beatles deixaram de ser um participante periférico das discussões sobre quais rumos a cultura tomaria. Pais e professores, por algum motivo, passaram a aceitar a banda de Liverpool. Enquanto seus cabelos longos e sua nova sonoridade representavam uma subversão à ordem estabelecida, a imagem da banda era fofa e pouco ameaçadora. De repente você percebia que estava gostando dos Beatles como se eles fossem a última moda da criançada. O rock’n’roll deveria soar diferente disso.

14 de agosto de 1965: Paul McCartney e John Lennon se apresentam na CBS durante o programa de Ed Sullivan, em Nova Iorque
26 de outubro de 1965: fãs dos Beatles tentam atravessar um bloqueio da polícia em frente ao Palácio de Buckingham, onde os membros da banda receberiam condecorações da Rainha Elizabeth II

Apenas alguns meses depois da chegada dos Beatles, os Stones surgiram entre a enxurrada de bandas que viria a ser conhecida como a Invasão Britânica e estabeleceram uma divisão histórica. Como hoje os Stones se tornaram uma espécie de instituição, é difícil explicar o quão indecentes e sexualmente provocativos eles eram quando apareceram pela primeira vez.

Em oposição às roupas engomadinhas que os Beatles usavam, os Stones eram mal vestidos e despenteados de uma maneira que ninguém no show business se atrevia a ser naquela época. Tão barulhentos quanto o rock de Elvis Presley e Little Richard havia um dia sido, eles se vestiam como reais entretenedores. Eles soavam como quem não dava a mínima para o que o público acharia de seu visual. Isso não era verdade, obviamente: para dizer pouco, os Stones provavelmente eram mais preocupados com sua imagem do que os Beatles. Mas essa imagem trazia um inequívoco “vá se foder” junto de si, algo que os adultos não suportavam.

1964: Keith Richards fuma um de seus milhões de cigarros em um restaurante londrino
Dezembro de 1968: os Stones fazem uma guerra de comida no Kensington Gore Hotel, onde eles organizaram um banquete para o lançamento do disco “Beggars Banquet”

Os Stones fizeram sua primeira aparição importante na televisão no Hollywood Palace, um programa de variedades apresentado pelo interminável Dean Martin. Foi tão forte quanto um conflito cultural poderia ser: claramente se sentindo ameaçado pelas mudanças culturais que pareciam tornar a música de sua geração irrelevante, Martin não economizou nas palavras enquanto zombava a aparência, a inteligência e a sexualidade da banda.

Os londrinos não deixaram barato e tocaram versões agressivas de “I Just Want to Make Love to You”, de Muddy Waters, e “Not Fade Away”, de Buddy Holly. Se a primeira aparição dos Beatles no The Ed Sullivan Show em fevereiro de 1964 entrou direto para a lista de momentos mais marcantes da história da cultura pop, a estreia dos Stones oito meses depois foi um cataclisma.

Quando as cortinas subiram e os Stones começaram a tocar “Around and Around”, de Chuck Berry, Mick Jagger estava vestindo apenas um casaco escuro sobre sua camisa. Por mais que pareça irrelevante agora, era absolutamente chocante na época. O Sullivan Show, programa de enorme audiência, era essencialmente voltado para as famílias americanas. Qualquer um que se apresentasse ali consideraria aquilo um privilégio capaz de ter um impacto comercial sem paralelo possível. Se vestir como se você estivesse saindo com os seus amigos foi algo nunca antes visto. Aquele pequeno gesto causou um um grande alarde entre professores, editores de jornais e todo o mundo adulto.

Eu vivenciei tudo isso. Décadas depois, durante uma entrevista, expliquei ao Mick Jagger que uma das razões pelas quais fui atraído pelos Rolling Stones foi a de que eles foram a primeira banda que exigiu algo de mim. Eles exigiram a minha convicção em acreditar no que eles estavam fazendo. Aquilo soava amedrontador, mas ao mesmo tempo fez com que eu me sentisse importante.

Os Stones também foram a minha introdução ao blues e ao R&B, uma porção da música negra americana que ficava na penumbra para as pessoas brancas. Quando o hip hop e, particularmente, o gangsta rap começaram a incomodar a cena da música, eu pude perceber que os jovens tinham os mesmos sentimentos que eu tive com os Stones — uma inabalável crença de que a música era significativa e encorajadora.

E o mais importante de tudo é que eles eram incontestáveis: quanto mais os Stones eram atacados e quanto mais os adultos os desaprovavam, mais eles significavam algo para mim.

A ironia final desse debate talvez seja a de que toda vez que escrevo algo como este artigo ou percebo que entrei em uma discussão sobre qual das bandas é melhor, eu me sinto mal. Ainda que eles não fossem tão descolados ou sexy quanto os Stones, os Beatles se mantiveram como os grandes responsáveis pela inovação da música durante sua curta história. E se os Stones ressentiram a supremacia cultural dos Beatles, os Beatles certamente ressentiram a indescritível imagem cool e o apelo sexual dos Stones. A sarcástica declaração de Lennon sobre “a dança de bichinha” de Jagger conta essa história por si só.

Fato é que eu sempre amei ambas as bandas. Como a introdução de Keith a Paul McCartney indica, os Stones continuam na defensiva quando o assunto são os Beatles. Parece ridículo e até mesmo um pouco ultrajante continuar na sombra do Fab Four.

Eu lembro de ter conversado com Mick Jagger no backstage de um show em uma gélida noite de Detroit no final da turnê Steel Wheels, em 1989. Eu disse a Mick que tinha recentemente visto um show de Paul McCartney em Los Angeles e ele se mostrou ansioso para saber o que eu tinha achado. Paul havia se mantido longe dos palcos por dez anos e ainda parecia estar reencontrando sua forma. Eu descrevi a performance de McCartney de uma maneira justa, mas pelo sorriso que Jagger deixou escapar e pelo brilho em seus olhos, dava pra sentir seu prazer em levar a melhor sobre um de seus velhos rivais.

Apesar disso, eu vi shows de McCartney que foram de tirar o fôlego, e é bem verdade que encontrar e entrevistar vários dos membros dos Beatles e dos Stones foram alguns dos “melhores momentos da minha vida”, como Mick Jagger diria. Sou feliz por nunca ter me fechado em um dos lados da discussão independentemente de qual banda eu possa acabar escolhendo em uma mesa de bar — ou em um texto na internet.

Junho de 1978: Paul e Linda McCartney (à direita) no camarim com Mick Jagger (esquerda) e Bill Wyman (centro) em um show dos Rolling Stones em Nova Iorque

Mesmo com todas as rixas entre eles, eu sempre fui considerado um intermediário honesto. Quando Paul McCartney e George Harrison não estavam se falando, eu os entrevistei individualmente por vários dias seguidos na Inglaterra. (O que gerou um dos momentos mais surreais de minha vida quando Harrison me buscou na estação de trem perto de sua casa e falou, como quem não quer nada: “Soube que você conversou com o Paul um dia desses. Como ele está?”). Quando McCartney e Yoko Ono não estavam se falando, eu também fiz longas entrevistas com eles.

Falando dos Stones, eu nunca estive do lado do Mick ou do lado do Keith, ainda que a relação entre os dois tenha sido sempre bastante controversa. Em minha escrita, sempre estive pouco interessado em escolher lados e me empenhei em fazer os pontos de vista parecerem compreensíveis para quem se importava. Um fã dos Stones certa vez me disse: “Você escreve como alguém que vê as coisas de dentro, mas você não parece alguém que vive a situação a ponto de ser afetado por ela”. Esse é um dos maiores elogios que já recebi. Ainda que você tenha de tomar posição, não há nada errado em amar os dois lados do conflito.

Outros Voos é a seção de traduções da Poleiro. Selecionamos o melhor do conteúdo internacional e traduzimos para você. A história de hoje veio da CuePoint e foi escrita por Anthony DeCurtis, colaborador de longa data da Rolling Stone.

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João Brizzi
Revista Poleiro

Designer e jornalista no The Intercept Brasil. Antes, trabalhei na revista piauí e fundei a Revista Poleiro.