Como a Kodak fracassou

A resistência à era digital minou o caminho da empresa dentro de um segmento que ela mesma inventou

Rafa Spoladore Ψ
Revista Poleiro

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Por Chunka Mui
Tradução por Rafa Spoladore

Poucos erros corporativos foram tão grosseiros quanto os cometidos pela Kodak com a fotografia digital, uma tecnologia que ela mesma inventou. Essa falha estratégica foi causa direta das suas décadas de declínio, com a fotografia digital destruindo seu modelo de negócios baseado no uso de filmes.

Um novo livro do meu colega Vince Barabba, ex-executivo da Kodak, dá uma visão sobre as escolhas que colocaram a Kodak na sua trajetória até a falência. O livro de Barabba, The Decision Loom: A Design for Interactive Decision-Making in Organizations (“O Tear da Decisão: uma proposta para a tomada interativa de decisões em organizações”, em tradução livre), também oferece sábios conselhos sobre como outras organizações envolvidas com tecnologias disruptivas podem evitar seus próprios “momentos Kodak”.

Steve Sasson, o engenheiro da Kodak que inventou a primeira câmera digital, em 1975, descreveu desta maneira a resposta inicial da corporação à sua invenção:

Era uma fotografia sem filme, então a reação da diretoria foi: “Isso é bonito, mas não comente com ninguém”.

A incompetência da diretoria da Kodak em perceber a fotografia digital como uma tecnologia disruptiva, mesmo com seus pesquisadores ampliando os limites dela, persistiria por décadas. Foi tão longe que, num vídeo de 2007, o marketing da empresa sentiu a necessidade de alardear que “A Kodak voltou” e que não mais trataria o digital como brincadeira.

Para entender como a empresa pôde ficar em negação por tanto tempo, vamos voltar para 1981 e contar uma história do tempo em que Vince Barabba era chefe da inteligência de mercado da Kodak. Na época em que a Sony lançou a primeira câmera eletrônica, uma das maiores varejistas de revelação de filmes e prestadora de serviços para a Kodak, perguntou a Vince se eles deveriam se preocupar com a fotografia digital. Com o apoio do CEO da empresa, Barabba realizou um grande esforço de pesquisa que analisou e comparou as principais tecnologias e as prováveis curvas de adoção em torno do halogeneto de prata e da fotografia digital.

Os resultados do estudo trouxeram boas e más notícias. A má era que a fotografia digital tinha, sim, potencial para substituir o negócio da Kodak baseado em filmes. A boa era que isso levaria algum tempo. A Kodak tinha cerca de dez anos para se preparar para a transição.

As projeções do estudo se baseavam em inúmeros fatores, como o custo do equipamento digital, a qualidade das imagens e das impressões e a sinergia entre vários componentes, como câmeras, telas e impressoras. Tudo apontava para a conclusão de que a adoção da fotografia digital seria mínima e nada ameaçadora por mais algum tempo. A história provou que as conclusões do estudo foram notavelmente precisas, tanto no curto como no longo prazo.

O problema foi que, ao longo dessa janela de dez anos de oportunidades, a Kodak não se preparou para a disrupção. Na verdade, a Kodak cometeu exatamente o mesmo erro que George Eastman, seu fundador, tinha evitado duas vezes antes: quando desistiu de um negócio rentável usando o processo da prata coloidal, passando a usar filmes, e quando investiu nos filmes coloridos mesmo esses sendo comprovadamente inferiores aos em preto e branco (que a Kodak dominava).

Barabba saiu da Kodak em 1985, mas se manteve próximo da alta diretoria. Assim pôde assistir de perto ao fato de, ao invés de se preparar para o momento em que a fotografia digital substituiria o filme, como Eastman fizera antes com as primeiras tecnologias, a Kodak ter decidido usar o digital para melhorar a qualidade do filme. Essa estratégia continuou apesar de, em 1986, o laboratório de pesquisa da Kodak ter desenvolvido a primeira câmera megapixel, um dos marcos que o estudo de Barabba previra como um ponto de virada na viabilidade da fotografia totalmente digital.

A escolha de usar o digital como um suporte para a indústria de filmes resultou no sistema Advantix Preview de filme e câmera digital, apresentado em 1996 e no qual a Kodak gastou mais de US$ 500 milhões para desenvolver e lançar. Um dos principais recursos do sistema Advantix era permitir que os usuários visualizassem a foto previamente numa tela e pudessem indicar quantas cópias iam querer. O Advantix Preview podia fazer isso porque era uma câmera digital. No entanto, ainda usava filme e enfatizava a impressão, já que a Kodak estava no mercado de filmes, químicos e papel fotográfico.

O Advantix fracassou. Por que comprar uma câmera digital e ainda pagar para revelar fotos? A Kodak desperdiçou praticamente todo o custo desse desenvolvimento.

Como Paul Carroll e eu descrevemos no livro Billion-Dollar Lessons: What You Can Learn From The Most Inexcusable Business Failures of the Last 25 Years (“Lições de bilhões de dólares: o que aprender com os mais imperdoáveis fracassos de negócios nos últimos 25 anos”, em tradução livre), a Kodak ainda sofreu com várias outras feridas autoinfligidas e significantivas nesses anos cruciais.

Em 1988, a empresa comprou a Sterling Drug por US$ 5,1 bilhões, decidindo de vez ser uma empresa de produtos químicos com uma parte voltada para a fotografia. Ela rapidamente percebeu que o papel fotográfico quimicamente tratado não era tão parecido com agentes hormonais e drogas cardiovasculares, vendendo a Sterling em pedaços por cerca da metade do preço que pagou.

Em 1989, o conselho diretor da Kodak teve a chance de fazer uma mudança de curso quando o então CEO Colby Chandler se aposentou. A escolha do novo CEO apontava para Phil Samper ou Kay R. Whitmore. Whitmore representava o negócio tradicional de filmes, onde ele se manteve no topo por três décadas. Samper tinha um profundo interesse em tecnologia digital. O conselho escolheu Whitmore. O New York Times relatou, na época:

“O senhor Whitmore assegurou que a Kodak se mantivesse próxima de sua principal área de atuação com filmes e produtos químicos para fotografia.”

Samper pediu demissão e demonstraria sua compreensão do mundo digital nos cargos de presidente da Sun Microsystems e, depois, como CEO da Cray Research. Whitmore durou pouco mais do que três anos até o conselho demiti-lo, em 1993.

Por mais de dez anos, uma série de novos CEO’s da Kodak lamentaria o fracasso de seu antecessor em transformar a empresa em digital, declararia sua própria intenção de levar a cabo o serviço e também falharia nessa empreitada. George Fisher, que fora fisgado de sua posição de CEO da Motorola para suceder Whitmore em 1993, descreveu a questão principal quando disse ao New York Times que “a Kodak considerou a fotografia digital um inimigo, um rolo compressor que poderia matar o negócio de filmes e papel químico que alimentou suas vendas e lucros por décadas”.

Fisher acompanhou o fracasso do Advantix e já tinha ido embora em 1999. Como o vídeo de 2007 reconhece, a história permaneceu a mesma por mais dez anos. Em 2012 a empresa entrou em concordata, saiu da bolsa de valores, vendeu ativos e se reorganizou como um negócio de licenciamento de tecnologias patenteadas. Suas perspectivas foram reduzidas a processos contra a Apple e outras empresas por violação de patentes que ela, Kodak, nunca foi capaz de transformar em produtos vencedores.

Vince Barabba, autor do livro The Decision Loom

Encarar os dilemas das tomadas de decisões estratégicas — como os enfrentados pela Kodak — é uma das questões primordiais abordadas no livro de Vince Barabba. A diretoria da Kodak não só presidia a empresa na criação de avanços tecnológicos, mas também teve acesso a uma avaliação precisa do mercado sobre os riscos e as oportunidades dessas capacidades. No entanto, falharam em fazer as escolhas estratégicas corretas.

Essa não é uma questão acadêmica para Vince Barabba, mas sim o apogeu do trabalho de sua vida. Ele passou grande parte de sua carreira entregando inteligência de mercado para conselhos diretores. Além da experiência na Kodak, sua carreira inclui a direção, por duas vezes, do U.S. Census Bureau (o braço censitário do governo americano), a chefia da pesquisa de mercado na Xerox, o cargo de diretor de estratégia da General Motors (durante alguns dos recentes melhores anos da empresa) e a entrada para o hall da fama da pesquisa de mercado.

The Decision Loom” explora como garantir que a gestão use apropriadamente a inteligência de mercado. O livro contém a receita de Barabba para que gestores consigam transformar todos os dados, informação e conhecimento trazidos por pesquisadores de mercado em sabedoria para tomar as decisões corretas. É algo que vale a pena considerar.

Barabba argumenta que quatro capacidades inter-relacionadas são necessárias para permitir uma tomada de decisão eficaz para toda empresa — nenhuma delas particularmente presente nas decisões importantes que a Kodak tomou:

1. Ter uma mentalidade empresarial aberta a mudanças

A menos que os executivos do topo sejam suficientemente abertos e dispostos a considerar todas as opções, o processo de decisão pode rapidamente ficar distorcido. Ao contrário de seu fundador, George Eastman, que por duas vezes adotou tecnologias disruptivas na fotografia, a direção da Kodak nos anos 80 e 90 não estava disposta a considerar o digital como um substituto para o filme. Isso os constrangeu a um caminho fundamentalmente errado.

2. Pensar e agir holisticamente

Separar as coisas para, em seguida, otimizar diferentes funções geralmente reduz a eficácia do conjunto. No caso da Kodak, a direção fez um trabalho razoável para entender como as partes da empresa (incluindo seus parceiros nos filmes) interagiam com os fluxos da tecnologia existente. Entretanto, havia pouco apreço pelos esforços realizados nos laboratórios de pesquisa da Kodak com tecnologia digital.

3. Ser capaz de adaptar o plano da empresa a novas condições

Barabba propõe três projetos diferentes de negócio que devem caminhar ao longo de um fluxo mecânico, mas orgânico e contínuo: fazer-e-vender, perceber-e-reagir e antecipar-e-liderar. O projeto correto depende da previsibilidade do mercado. A indisposição da Kodak para mudar sua grande e muito eficiente capacidade de fazer-e-vender filmes diante do surgimento das tecnologias digitais a fez perder a chance de adotar o projeto de antecipar-e-liderar, o que poderia ter garantido uma posição de liderança em imagens digitais.

4. Tomar decisões de forma interativa usando métodos variados

Isso se refere à capacidade de incorporar uma gama de ferramentas sofisticadas de decisão ao abordar complexos problemas de negócios. A Kodak teve todo o suporte necessário em seu processo de decisão, mas não conseguiu usar a informação com eficácia.

Enquanto The Decision Loom segue um longo caminho para explicar a reação lenta da Kodak para a fotografia digital, seu real valor é ser um indicativo para os gestores que hoje lidam com mudanças cada vez mais disruptivas. Como são poucos os mercados que não passam por disrupções, é um livro valioso para qualquer gestor — ou aspirante — ler.

Outros Voos é a seção de traduções da Poleiro. Selecionamos o melhor do conteúdo internacional e traduzimos para você. A história de hoje veio da Forbes e foi escrita por Chunka Mui, coautor do livro The New Killer Apps: How Large Companies Can Out-Innovate Start-Ups. Siga-o no Facebook, Twitter e Google+.

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Rafa Spoladore Ψ
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Nerd pós-Planck, atual estudante de 40 anos, gigolô da metafísica e ombudsman da Realidade.