Revista Poleiro
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9 min readJan 2, 2015

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(Foto: Vanguardia/Especial)

Um rebranding empurra o rifle mais famoso do mundo para uma zona branca. A nova roupagem da marca aponta para suas utilidades diplomáticas, mas isso ainda significa o fim de vidas humanas

Por Daniel Salgado e Nícollas Witzel

“O menino entre as ruínas não devia ter mais de 12 anos e olhou para nós com genuíno desinteresse. Sentado em uma cadeira giratória quebrada no meio da rua, tinha os cabelos castanhos emaranhados no alto da face cansada, velha. Ele vestia um macacão cáqui de uns três tamanhos acima do seu e camiseta com desenhos do Mickey Mouse. Na mão direita, tinha o cano de um fuzil Kalashnikov.”

O jornalista Robert Fisk descreve uma cena que viveu em Beirute, capital do Líbano, onde mora há mais de 20 anos. Em seu livro Pobre Nação (Ed. Record, 2007), o britânico detalha os conflitos libaneses do século XX, concentrando-se na invasão israelense no começo da década de 80. Na produção desse trabalho, que teve sua veiculação proibida no país árabe, presenciou uma guerra civil e duas invasões. Correspondente especializado em Oriente Médio do jornal The Indepentent, Fisk é o jornalista mais internacionalmente condecorado da atualidade.

Um elemento da cena acima chama a atenção por ser recorrente em conflitos há quase 70 anos: um militante mirim segurando seu Kalashnikov. Charles Taylor, presidente da Libéria até 2003, ficou conhecido por sua brigada infantil. “A bala de um garoto de 14 anos mata tanto quanto a de um homem de 40. Às vezes até mais”, dizia. Esse batalhão do exército liberiano era armado com o já famigerado Kalashnikov automático de 1947. Não por acaso: o rifle é simples como um brinquedo e o treinamento dos garotos acontecia sem grandes problemas.

O Avtomat Kalashnikova foi concebido na União Soviética ao fim da 2ª Guerra Mundial. Sargento do Exército Vermelho, Mikhail Kalashnikov procurava uma solução para as frequentes reclamações dos colegas infantes quanto ao armamento utilizado pelos soviéticos. Foi na cama de um hospital que Mikhail, inspirado no fuzil alemão Sturmgewehr 44, começou a rabiscar alguns papéis.

Em 1943, especialistas de guerra soviéticos finalmente decidiram desenvolver algo melhor para suas tropas. Todos os escritórios voltados para design bélico do bloco comunista se inscreveram na corrida para conceber o novo armamento oficial da motherland. Os anos seguintes foram marcados por apresentações que em algum momento frustravam a alta cúpula responsável e eram então descartados. Depois de desmembrar cada parte do StG44 nazi e ajustar seus próprios projetos recentemente fracassados, Kalashnikov desenhou o modelo de 47, que entraria para a eternidade como a cuspidora de balas mais reputada do mercado. A invenção lhe rendeu o prêmio Stalin de engenharia em 1949, a mais alta condecoração civil da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Nos anos 1950, o Kremlin permitiu a utilização do novo armamento pelos Estados aliados e ordenou aos seus vassalos do Pacto de Varsóvia que a produzissem freneticamente. Durante a corrida armamentista, os armazéns ficaram tão abarrotados de Kalashnikovs que os governos comunistas a distribuíam sem discriminações. A sobreprodução, aliada à falta de segurança e corrupção galopante em muitos depósitos militares do mundo vermelho, levou a que nas décadas de 70 e 80 a arma estivesse disponível a combatentes de praticamente qualquer causa.

Mikhail morreu no dia 23 de dezembro de 2013 sabendo que sua invenção havia se tornado uma máquina de extermínio, detentora do título de “arma com maior número de mortes por minuto” no Guinness Book. À beira da morte, fez um apelo: em carta enviada ao patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, perguntou se precisava de perdão por ter criado uma arma que tirou tantas vidas. A resposta que recebeu foi de que “a AK-47 tinha sido utilizada em defesa da Pátria Mãe, e seu criador fora um exemplo de patriotismo e serviço à nação”.

Estima-se que existam quase 100 milhões de AK’s — nos números oficiais — em uso por todo o mundo. Na tangente das unidades contabilizáveis, o modelo de 1947 se tornou símbolo de resistência, terrorismo, guerra civil e anti-imperialismo — e reúne todos esses significados sem passar dos cinco quilos. Ícones da cultura pop, os 4.000 gramas de aço forjado e madeira compensada que compõe um AK-47 devem sua ascensão quase exclusivamente a uma eficiência incontestável. Apesar de não ter o tiro mais letal ou a mira extremamente precisa, atiradores de todo o mundo dão o mesmo depoimento: a arma muito raramente trava, quebra ou superaquece. A média de travamento da Kalashnikov é de 1 em cada 10.000 disparos — o M-16 americano tem uma média de 1 em cada 3.000. O rifle russo também não se incomoda com areia, lama, e atira perfeitamente mesmo embaixo d’água, motivos que muito prejudicaram os americanos na guerra do Vietnã, onde suas armas davam defeito a todo momento. Os Viet Congs, adeptos da Kalash, mal precisavam lembrar de limpar o cano de seus fuzis.

O impacto cultural da Kalashnikov foi muito violento na metade leste do planeta. Nos países da África onde foi mais utilizada na luta por libertação dos colonizadores, “Kalash” é um nome comum entre garotos. Depois de Osama Bin Laden exibi-la ostensivamente em vídeos, o modelo adotado pelo líder da Al-Qaeda dobrou de valor no mercado. O Hezbollah, grupo político paramilitar libanês, o fez protagonista em seu brasão. Também o fizeram Timor-Leste, Zimbábue e Moçambique.

Hoje, quase 70 anos após sua criação, a Kalash se encontra no maior processo de transformação de sua história: acaba de ser anunciado um movimento de rebranding para toda a linha. Firmado com uma companhia de relações públicas moscovita, o acordo beira os 20 milhões de rublos (aproximadamente 950 mil reais) e engloba um esforço de reestruturação da marca nos mercados internacionais. A coisa é séria: o investimento total até 2020 pode chegar aos 4,5 bilhões de rublos (cerca de 215 milhões de reais).

O motivo da manobra é que a despeito de sua popularidade duradoura, a AK-47 não impediu sua fabricante de declarar prejuízo de 1,7 bilhão de rublos (R$81 milhões) em 2013. Ela já nem sequer é o produto mais valioso da companhia, ficando atrás da venda de armas de fogo de pequeno porte, armas de caça e destinadas à prática de esportes. Na verdade, quem paga as contas atualmente é o segmento de mísseis, esse sim a maior fonte de renda.

O CEO da Kalashnikov, Alexei Krivoruchko, sabe bem o principal motivo das perdas: os Estados Unidos proibiram o comércio de qualquer produto russo em solo americano por tempo indeterminado, uma sanção aplicada ao país após Vladimir Putin anexar o território da Crimeia. Antes do atrito entre Rússia e Ucrânia, a fabricante assinou um contrato de exportação de cerca de 200 mil rifles para Estados Unidos e Canadá. Agora, é preciso expandir para territórios mais intimamente ligados à história da AK: o terceiro mundo. A Kalashnikov reclama o sentimento de luta pela liberdade que lhe foi concedido e aponta seu red dot de marketing para os países que ainda têm questões de soberania para solucionar.

O discurso da empresa não é muito diferente do dado pelo patriarca russo. No evento de lançamento, a companhia se referiu à Avtomat Kalashnikova como uma arma a serviço da paz. “A AK foi feita para a defesa de um país que passava pela Guerra Fria e deveria estar preparado para uma intervenção em larga escala. Simples e confiável, a AK também recebia pedidos de longe da União Soviética”, dizia o voiceover que passava no fundo de um dos dois vídeos veículados na comemoração.

O vídeo, segundo descrição feita pelo jornal The Moscow Times, apresentava um curto histórico sobre a produção bélica russa, mostrando com proeminência os ameaçadores alcances geográficos da “odiada” OTAN (organização militar de países capitalistas formada durante a Guerra Fria) e apresentando, em sequência, a nova versão da Kalashnikov em ação contra um grupo de terroristas do Daguestão.

Fica explícito o alcance da reformulação por meio de um detalhe: já existe uma substituta para a arma mais famosa do mundo. Anunciada em 2012 como parte de uma modernização do exército russo, segundo a NPR, a nova versão se chama AK-12 e é focada no público militar tradicional, como as forças armadas e a policia, se aproximando mais da M-16 americana. Ela não está sozinha, levando em consideração que boa parte dos negócios da Kalashnikov não envolvem clientes oficiais — com exceção do governo Russo — , e vem junto de uma linha de armas de caça e esporte, segmentos especialmente populares nos EUA.

AK-12 (Foto: Mareeva Irina)

Apesar do discurso inflamado — e duvidoso — , o vídeo representa uma visão bem comum na Rússia. Se trata de um objeto intimamente ligado ao país desde os tempos de Stalin, sendo a arma oficial do Exército Vermelho e do russo, além de ocupar 95% do mercado de armas de fogo pessoais do país. Mas a história de revolução pela paz não é tão clara, mesmo nos países da África, Ásia e América Latina. Ainda que seja inegável o impacto causado nos conflitos de guerrilha, ele nem sempre foi usado por camponeses e cidadãos acuados para se protegerem da tirania despótica de algum governo. O storytelling kalashnikovético não inclui em suas bases a imensa quantidade de armas que servem ao tráfico do Rio de Janeiro, a grupos paramilitares como as FARC, Al-Qaeda e ISIS, e a cartéis mexicanos que sonham toda noite com o baixo preço das AK’s que defendem seu imperioso comércio de cocaína. Também não são citadas as ditaduras africanas e seus massacres revezados entre facões e Kalashnikovs.

E não é só o rompimento de negócios com os Estados Unidos que tem trazido prejuízo à companhia. As próprias características mecânicas e históricas que fizeram da AK-47 a arma de maior circulação do mundo servem para tirar-lhe dinheiro. Primeiro, sua adoção por forças armadas de países do bloco soviético significou que ela também fosse altamente pirateada — os socialistas não emitiam patentes ou copyright. Além disso, por ser a arma de defesa de grupos menos abastados, criou-se em um mercado que não se renova. Por sua alta durabilidade, a compra de uma AK basta para cada soldado. Ela pode ficar em campo por anos, até décadas. Não há demanda por novos carregamentos, ainda mais se tratando de exércitos de resistência, que mal têm dinheiro para a comida. A falta de modelos novos também não trouxe necessidade de recompra para atualização. O próprio governo russo, seu maior comprador, já não dá todas as suas licitações para a Kalashnikov. A AK-47 não serve de arma principal para um exército moderno com ambições de conquista. É um rifle de defesa.

Assim, o novo modelo da arma supre uma necessidade específica: o de se modernizar, deixar para trás o passado soviético e abraçar de vez uma imagem capitalista global. Krivoruchko confirma: “Nós queremos que a Kalashnikov se torne uma marca global do tamanho da Apple”. Atualizada, ela poderá ser comprada por exércitos importantes e por simples entusiastas de armas. Espera-se que seu prestígio seja equivalente ao de uma arma moderna e potente como a FAL ou a M-16.

Uma coisa é certa: a nova roupagem e acessórios voltados para o primeiro mundo não tirarão a antiga AK-47 de circulação. Nos locais onde ela verdadeiramente se faz necessária, a guerra é tão brutal e impiedosa quanto era em 1947. Lá, ela ainda reina absoluta nas mãos de soldados como Haydar, um garoto yazidi de 14 anos que defende sua terra no norte do Iraque contra os avanços do Estado Islâmico. Em entrevista à BBC, o pequeno soldado diz que, assim como para milhões de outros jovens yazidi com rifles em mãos, “agora não é momento para a escola”.

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