O Dono do Mundo

Do Caldeirão do Diabo ao Vectra prata

Yuri Eiras
Revista Poleiro

--

Por Yuri Eiras

Zequinha chegou em cima da hora. O relógio já marcava dez horas da noite daquele 31 de dezembro quando ele terminou de subir as ladeiras do morro, esbaforido, mas feliz por ter chegado. Filho carinhoso, deu um beijo na mãe, um abraço no pai e desejou um “feliz ano novo” para os dois. Depois partiu para a maternidade, onde sua esposa esperava o primeiro filho. Ele chegaria atrasado a todos esses compromissos se o transporte não fosse tão rápido. O bom filho, quase pai, acabara de sair do Presídio de Ilha Grande a bordo de um helicóptero, na fuga mais espetacular da história do sistema prisional brasileiro. Zequinha é José Carlos dos Reis Encina, conhecido por todos como Escadinha.

31 de dezembro de 1985. No alojamento de visitantes do Presídio Cândido Mendes, em Ilha Grande, as famílias encontravam seus parentes presos e conversavam sobre a esperança que se renovaria para o próximo ano. O relógio marcava 16 horas da tarde e o sol da Costa Verde do Rio de Janeiro revigorava a aparência daqueles detentos, castigados pela cela fria. Pais abraçavam as filhas, as esposas. Afagos, presentes, comidas. Até os guardas estavam envolvidos pelo clima natalino que pairava naquele local tão cruel, conhecido como Caldeirão do Diabo.

De repente, uma ventania forte tomou a região; e não era São Pedro anunciando uma chuva de verão. Era, sim, o movimento da hélice de um helicóptero anunciando para Escadinha que chegou a hora. Ele correu pelo pátio de terra afora, de mãos dadas com a mulher que viera lhe visitar. Qual um gato ao pular um muro, entrou ligeiro no helicóptero, que já emendava a sua decolagem novamente. Olhou para trás, sorriu e subiu. O homem mais procurado do Rio de Janeiro tinha acabado de sair do presídio de segurança máxima na carona de um Hughes-300B, ao lado de Gordo, seu eterno amigo do crime, na véspera do Ano Novo. Policiais, carcereiros e companheiros de cela assistiam estáticos. Escadinha fugiu sem dar um tiro ou fazer reféns.

Escadinha não parou até chegar no Morro do Juramento, zona norte do Rio, onde nasceu e foi criado. Ao chegar, esbaforido, deu um beijo na mão de sua mãe, Dona Maria, e em seu pai, conhecido como Chileno. Os fogos de artifício foram disparados antes de meia noite na virada de 1985. A favela não aguentou esperar para comemorar a volta do seu fora-da-lei preferido às ruas da comunidade. Churrasqueiras foram acesas, acompanhadas de cerveja e pagode. O Morro do Juramento era seu mundo e não tinha essa de ser filho do dono. Quem mandava era ele mesmo.

No alto do morro, onde uma cruz foi construída sobre uma pedra (um sinal de protesto pela morte de uma criança, assassinada por policiais anos antes), velas e flores agradeciam aos deuses pela volta do dono do morro. Todo o Juramento jurou que, se o Escadinha saísse, comemorariam como a Copa do Mundo que não veio em 1982. A promessa foi paga.

Tia Severina, uma senhora de 76 anos doente e já quase sem dentes, era só felicidade. Ela também recebeu a visita do sobrinho ilustre. Escadinha pagava religiosamente, mesmo na prisão, os remédios que ela precisava. Querido onde fosse, no dia seguinte Escadinha visitou seus amigos na Favela do Jacarezinho, também na Zona Norte do Rio. Ao lado de seus guarda-costas Gordo e Meio-Quilo, outros dois ícones da Falange Vermelha, o dono do Juramento rompeu 1986 em liberdade.

Escadinha começou no crime igual à maioria. Filho de um líder comunitário no Morro do Juramento, aos 16 anos começou a se envolver com o tráfico. Furtos, alguns assaltos e uso de drogas viraram rotina. Nada destoava.

Como em uma empresa, Escadinha foi crescendo no organograma do tráfico até se tornar um dos líderes do morro. Conhecido por todos e querido por crianças, mulheres e senhoras, ele ganhou a fama de bandido romântico: não admitia assaltos na região e nem o abuso de mulheres. Também não permitia o uso de crianças nas operações do tráfico de drogas. Ganhou respeito. Distribuía cesta básica, fazia gambiarra de luz elétrica, entregava remédios. Até financiava churrascos para a comunidade. Lembrava um político, mas era criminoso.

Em 1982, Escadinha realizou a sua primeira fuga hollywoodiana no presídio de Ilha Grande, numa região conhecida como Costa Verde, no sul do Rio de Janeiro. Vestiu-se com uma farda de Policial Militar e deixou em sua cela um boneco de pano. Alcançou os muros e caminhou rumo ao mar, se afastando da terra em um barco a remo. A polícia cercou o Juramento, sua área, mas saiu na pior: um helicóptero caiu, matando quatro policiais civis. O nome de Zequinha crescia na imprensa, junto com o respeito de sua comunidade. Membro da Falange Vermelha, célula inicial do Comando Vermelho, Escadinha fazia parte da cúpula da facção que conheceu ainda na cadeia, comandada por Rogério Lemgruber, Gordo, Meio-Quilo e Professor.

Antes da fuga no helicóptero, a cúpula de sua facção, a Falange Vermelha, resolveu fazer uma greve de fome em protesto por melhores condições no presídio de Água Santa, onde Escadinha cumpria mais uma pena. Com problemas decorrentes da greve, ele foi levado a um hospital no Centro do Rio. Foi visto dias depois comendo uvas verdes, ainda no leito. Perguntado sobre a greve, ele disse que estava sendo bom por ter se livrado “daquele inferno que é Água Santa”. Seu objetivo principal era ser transferido para Ilha Grande, posteriormente. Conseguiu.

Com seu império estabilizado, Escadinha foi pego mais uma vez, pouco tempo depois. Por medidas de segurança, foi alocado no Complexo Penitenciário Frei Caneca, no bairro Estácio de Sá. Nos pés do Morro da Mineira e do São Carlos, os complexos da prisão eram praticamente vizinhos de parede de uma estação da Light, que fornece energia elétrica à cidade do Rio de Janeiro. Era a solução: bandidos fortemente armados tomaram as instalações da empresa e causaram um blecaute no bairro e no presídio. A polícia descobriu a tempo e impediu o resgate.

Na década de 1990, Escadinha aos poucos foi tentando voltar a ser o José Carlos. Eventualmente colocado como o principal nome do Comando Vermelho, ele dava sinais de que entraria na onda de seu grande amigo Gordo. Em 1993, Gordo havia se tornado pastor, realizando cultos no então novíssimo presídio de Bangu I, onde toda a cúpula do C.V. cumpria pena — inclusive Escadinha.

Ali ele foi posto como líder de algumas confusões. Entre 1995 e 1996 surgiam algumas dissidências do antes soberano Comando Vermelho. Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, surgia no Complexo do Alemão como o líder do Comando Vermelho Jovem, um racha dos chefes mais novos, que não concordavam com o tipo de gestão dos traficantes mais experientes — entre eles Escadinha. Ernaldo Pinto de Medeiros, o , trairia em 1994 o maior mentor de Marcinho, Orlando Jogador, no mesmo Complexo do Alemão. Com respeito de uns e ódio de outros (e também preso), Uê fundou a facção Amigos dos Amigos, conhecida pela sigla A.D.A. O objetivo do grupo era disputar territórios com o império do Comando. Um outro preso de Bangu I, Robertinho de Lucas, era o chefe do Terceiro Comando, que controlava algumas favelas, principalmente ao longo da Avenida Brasil.

Os bandidos românticos e assistencialistas iam perdendo força; em seu lugar, traficantes pouco piedosos, com pensamento empresarial e com compra e venda de drogas em enorme quantidade, fazendo conexões com organizações do narcotráfico de outros países. Sequestros passaram a ser mais frequentes, assim como roubo de cargas e assalto em vias expressas. O crime no Rio ganhava uma nova cara com as três facções.

Entre o Comando de Jesus, o Vermelho, o Terceiro e o A.D.A, do seu até então amigo Uê, Escadinha se viu em uma sinuca de vários bicos: era considerado por moradores do Juramento, homenageado por sambistas e respeitado por chefes de diferentes facções criminosas. Era odiado pelas autoridades da segurança pública e pelos policiais. Queria se desvencilhar deste mundo, mas já era tarde.

Bangu I era uma Ego City. Nela reinava Uê, que ostentava bebida alcoólicas e outras regalias, como telefones e mais visitas — benefícios conseguidos na base do suborno. Por causa de um aparelho celular, brigou com o seu amigo Escadinha, que imediatamente perdeu o prestígio. A amizade é uma linha tênue entre três paredes e uma grade. Era hora do protagonista sair de cena.

A experiência falou mais alto. Escadinha segurou a onda e se agarrou à sua perícia no crime; tinha jogo de cintura, apesar da bala alojada na altura do quadril, resultado de uma troca de tiros com a polícia. Foi se afastando das confusões em Bangu I e II na medida em que se aproximava da conquista do regime semi-aberto. Nas entrevistas falava de “sonhos”, mesmo sem saber o que era uma vida comum, depois de 14 anos atrás das grades.

Logo que entrou no semi-aberto descobriu no Rap um novo vício. Lançou, em 1999, o disco Brazil 1 — Escadinha — ‘Fazendo Justiça Com As Próprias Mãos’, pela Zâmbia Fonográfica [veja nota]. O nome era uma referência ao Complexo Prisional de Bangu I, que o próprio inaugurou e onde passou pouco mais de quinze anos no total. Com letras pesadas e conscientes, o álbum versa sobre o não-uso de drogas, sobre o mundo do crime e sobre sua própria fuga “cinematográfica”. Cada música tem participação de um rapper. MV Bill, Racionais MC’s (cantam Homem Na Estrada), Consciência Humana e Xis são alguns dos presentes no disco. O último canta a música ‘A Fuga’, uma narrativa sobre, é claro, a fuga de 1986.

A primeira faixa é uma carta de Escadinha, declamada pelo próprio. Com uma pronúncia difícil e barulhos de helicóptero no fundo, ele canta sobre recuperação.

Mas se Escadinha conseguia fugas espetaculares da prisão, fugir de confusão não era seu ponto forte, por mais que tentasse. Em 2000, já fora do crime mas ainda cumprido pena, ganhou mais uma sentença, desta vez inusitada: um balão imenso cortou o céu do bairro Vicente de Carvalho com os dizeres ‘Escadinha 2000’, em uma referência a sua possível candidatura para vereador. O balão caiu na Vila Kennedy, Zona Oeste, e as crianças correram atrás. Atrás delas estavam os traficantes rivais, donos da comunidade, armados até os dentes e pouco contentes com o episódio. Nessa época, os moradores de Vicente de Carvalho costumavam ver uma faixa com os dizeres ‘Escadinha pede paz’ pelo bairro. Era a prévia do surgimento de um novo Escadinha.

“Tu é o Escadinha, rapaz! Vai morrer duro?” Era como os traficantes tentavam convencer José Carlos Encina a voltar para o crime. Em regime semi-aberto, o agora ex-traficante trabalhava como um cidadão comum. Até vítima de assalto ele foi, em 2003. Perguntou para os bandidos se eles queriam mesmo assaltar o Escadinha. Pediram desculpa e foram embora.

Ele mantinha uma creche no pé do Morro do Juramento, a ‘Príncipe da Paz’. Adorado pelas crianças, ele era cada vez mais “Tio Zequinha” e menos Escadinha. “Para lá eu não volto nunca mais”, repetia como um mantra, apesar de dormir todos os dias na prisão. Trabalhando durante o dia como coordenador de uma cooperativa de táxi, próximo ao Carioca Shopping, zona norte do Rio, Escadinha queria viver. Não deu.

Como todos os dias, saiu do presídio Plácido Sá Carvalho, em Bangu, rumo a Vicente de Carvalho, onde ficava a Táxi Elite, sua cooperativa. Às 7h30 de 23 de setembro de 2004, na Avenida Brasil, na altura de Padre Miguel, seu Vectra prata foi interceptado por um outro automóvel. Quatro tiros foram disparados, matando Escadinha e o seu carona, Luciano da Silva Vanderlei, que também era um ex-criminoso. Dos quatro disparos, dois atingiram o rosto do motorista.

Falou-se na época na possibilidade de vingança da sua antiga facção, o Comando Vermelho. Escadinha, criminoso do tempo que não existia facção, estava no final da vida ligado ao Terceiro Comando. A Elite Service, sua cooperativa de táxi, também esteve envolvida com o crime. Alguns de seus rádios transmissores foram parar nas mãos de traficantes do C.V., presos em Bangu III.

No enterro, flores, fogos, velas e música. Escadinha talvez seja o criminoso mais citado no cancioneiro popular brasileiro. Uma famosa música de Beto Sem Braço e Serginho Meriti, eternizada por Bezerra da Silva, versava sobre o carinho da comunidade do Juramento por Escadinha. ‘Meu Bom Juiz’ foi cantada por centenas de gargantas emocionadas no momento do enterro. ‘Como É Grande O Meu Amor Por Você’, de Roberto Carlos, foi cantada em coro pelas crianças de sua creche.

Escadinha brincava com seu próprio apelido. Gostava de assinar como José Carlos dos Reis Ensina, trocando “C” pelo “S”. Ele talvez tenha deixado, de fato, alguma lição.

José Carlos Gregório, o Gordo, antigo parceiro de Escadinha e fundador do Comando Vermelho, foi assassinado em agosto de 2001, em Niterói. Antes de morrer, virou pastor evangélico e escrevia um livro de poesias. Segundo a polícia, Gordo morreu por ainda manter relações com traficantes do Comando.

Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, fundador do A.D.A. e ex-braço direito de Escadinha, morreu em setembro de 2002, durante uma rebelião no presídio de Bangu I. Considerado na época o traficante mais rico do Rio, Uê morreu carbonizado, a mando de traficantes do Comando Vermelho.

Orlando da Conceição, o Orlando Jogador, morreu em julho de 1994, em uma emboscada tramada por Uê, quando este ainda era Comando Vermelho. Uê teria descoberto um plano no qual o próprio Jogador o mataria. Orlando morreu no Complexo do Alemão, seu reduto.

Rogério Lemgruber, o Bagulhão, morreu na prisão em maio de 1992, vítima de complicações da diabetes.

Paulo Roberto de Moura, o Meio-Quilo, morreu em agosto de 1987, após uma tentativa de fuga do presídio Frei Caneca, no Centro do Rio. Um helicóptero pousou no pátio e resgatou Meio-Quilo, que chegou a subir a bordo, mas a polícia revidou e ele caiu de uma altura de aproximadamente 10 metros. Morreu dias depois, no hospital.

Matéria escrita por Yuri Eiras e ilustrada por Nícollas Witzel.
Todas as informações foram retiradas do arquivo dos jornais Estadão, Folha de S. Paulo e Jornal do Brasil.

Gostou? Faça login no Medium e recomende o texto!
Curta a Poleiro no
Facebook // Nos siga no Twitter

--

--