Daniel Salgado
Revista Poleiro
Published in
14 min readAug 28, 2015

Passado, presente e futuro da crise financeira
no berço da economia

Por Daniel Salgado, Luis Guilherme Julião e Roberto Maleson

Com treze séculos de atraso, Midas perdeu o toque. O aumento da dívida pública da zona do euro tornou difícil — em alguns casos, impossível — que alguns dos países que integram o bloco europeu possam pagar ou refinanciar os seus débitos sem a ajuda dos vizinhos. Desde então, os integrantes de economia mais frágil flertam com um default financeiro — descumprimento de cláusulas contratuais entre devedor e credor, no bom português, um calote. Atrás das telas dos computadores, cresce a desconfiança dos investidores, preocupados com o endividamento do governo e com a fuga de capitais.

No olho do furacão, a Grécia acumulou os maiores danos. Enquanto as negociações entre o Parlamento Europeu e o governo do país para um pacote de ajuda internacional avançam de maneira dramática, a bolsa de Atenas registra perdas históricas e o desemprego afeta quase metade da população jovem. A Europa viu nascer, em uma de suas mais antigas civilizações, um problema econômico, político e moral. Esclarecendo o passado, presente e futuro da crise, conversamos com especialistas e reunimos tudo o que você precisa saber para entender a tragédia grega do século XXI.

A crise na zona do euro nasceu do estouro da bolha especulativa de 2008, conhecida como “a Grande Recessão”. Países como Portugal, Itália, Espanha e Grécia concentraram um alto nível de endividamento, que estava sendo contraído na forma de “passivos” por bancos de países como Alemanha e França (de economia mais sólida), pressionando as carteiras dessas instituições.

“Foi isso que escancarou o imenso desequilíbrio nas contas externas de países como a Grécia. O sistema financeiro internacional havia se transformado em absoluta fantasia”, explica o professor de economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Plínio de Arruda Sampaio Júnior.

A União Europeia precisava resgatar os bancos e a economia dos países afetados. Os líderes dos países mais estáveis decidiram pressionar os governos em crise para que fossem aplicadas medidas de austeridade [veja nota] em troca de resgates financeiros. “Isso transformou a crise econômica em problema político”, diz Sampaio. Uma vez que medidas de austeridade são baseadas em cortes de despesas, atingindo principalmente projetos de desenvolvimento e benefícios sociais, os países-alvo amarguram uma desestabilização agressiva da economia.

A previdência social é uma das áreas mais retalhadas, e a Europa sofre com um envelhecimento de sua população. Segundo dados do Gabinete de Estatísticas da União Europeia (Eurostat), entre 1960 e 2014 a UE teve envelhecimento de 9,44 anos na média populacional. Os dados correspondem a 22 dos 28 países que formam o grupo. A Espanha envelheceu 12,2 anos, enquanto Itália teve aumento de 13,5 anos, e Portugal 15,5 anos. Em tempo de austeridade, pessoas em idade de aposentadoria tem cortes em suas pensões e um atraso no fim de seu período de trabalho. Em outras palavras, fica difícil se aposentar.

O problema é antigo, anterior à entrada do país na zona do euro. A economia grega é baseada no setor naval e no turismo, uma combinação frágil para os padrões europeus. O governo manteve seus débitos acima dos créditos por sucessivos mandatos, incomodando o conselho europeu depois de sua entrada na eurozone. A Grécia teria que adequar suas políticas fiscal, cambial e monetária se quisesse participar do clube de campo do velho mundo.

Enquanto usava o dracma, sua moeda nativa, o governo podia imprimir dinheiro para fechar as contas, o que gerava uma grande inflação mas mantinha o país artificialmente no azul. Ao oficializar o euro, cada unidade da nova divisa valia 340.750 dracmas — uma fortuna. Segundo dados do Eurostat, em 1995 a dívida pública grega já era equivalente a 100% de seu PIB. Esse valor se manteve praticamente estável até 2008, quando começou a crescer, chegando a atingir 170% em 2011.

“Com o tempo, o déficit foi se acumulando e gerando um endividamento cada vez maior”, explica o professor de economia internacional da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Ecio Costa. “O país gasta mais do que arrecada, mantém a previdência muito generosa, uma jornada de trabalho curta, pouco tempo até a aposentadoria e um funcionalismo público exagerado. Isso traz um déficit muito grande e vai se agravando ao longo dos anos”, conclui.

No último semestre de 2008, durante o mandato do primeiro-ministro Kostas Karamanlis, a República Helênica da Grécia experimentou a primeira retração financeira. Karamanlis é um conservador, filiado ao partido Nova Democracia, hoje base da oposição. Desde então, a não ser por um tímido crescimento em 2014, a economia do país não parou de encolher. A situação se agravou quando descobriu-se que o governo estava maquiando alguns dados econômicos, entre eles o verdadeiro valor da dívida nacional. Geórgios Papandréu, sucessor no cargo, revelou a situação crítica do país: um déficit financeiro de 127% do PIB e um desemprego galopante. O ministério da economia gritava por socorro, alegando que o Estado era incapaz de pagar os títulos públicos prestes a vencer. Retirado o tapete de Karamanlis, o buraco em que a Grécia se encontrava era muito mais fundo do que parecia.

Essa não parece ser uma opção interessante para os líderes Parlamento Europeu, apesar da insistência do governo grego. O pedido de perdão para a dívida grega tem pés firmes na década de 50: os defensores da medida alegam que a Alemanha deve sua economia ao perdão de suas dívidas no pós-Segunda Guerra Mundial.

Foto: Reuters

Alguns especialistas consideram que a responsabilidade sobre a crise não deve ser colocada apenas sobre os ombros do governo; ela também seria consequência da postura dos grandes bancos e da comunidade europeia como um todo. “O problema da crise grega não é financeiro; ele é político. Na lógica dos banqueiros e do governo alemão, a espoliação da economia grega não tem fim”, explica Plínio Sampaio, que considera a dívida ilegítima e impagável.

Nesse cenário, um perdão da dívida é improvável. Mesmo os países em situação parecida são contra a ideia. Alguns dos fiadores, como França e Áustria, também mantêm grandes dívidas e não poderiam abrir mão dos pagamentos que esperam receber. O velho mundo está tirando os seus esqueletos do armário. No momento, a dívida grega equivale a 172% de seu PIB (a maior porcentagem do continente), seguida por Espanha, Itália, Portugal e Irlanda, todos com dívidas acima de 100% do valor de seu PIB anual. A crise é uma corrida, e foi dada a largada.

Fontes: International Monetary Fund, World Economic Outlook, Vox Media

Tsipras é o líder do SYRIZA, a coligação de esquerda radical que venceu as últimas eleições legislativas, quando foram eleitos todos os 300 membros do Parlamento Helênico. O SYRIZA obteve 149 dos 151 assentos necessários para formar uma maioria absoluta. Forjou uma coligação com o ANEL, formando a base do governo, batizada de “Governo Tsipras”.

Pela primeira vez desde a ditadura militar, findada em 1974, a Grécia não será governada pelo Nova Democracia, do ex primeiro-ministro Antónis Samarás, ou pelo social-democrata PASOK. Ambos fazem parte da coligação que agora compõe a oposição. No dia 25 de janeiro de 2015, o SYRIZA conseguiu a maioria absoluta dos assentos no Parlamento. Um dia depois, Tsipras foi nomeado primeiro-ministro.

Tsipras, que é formado em engenharia civil, defendeu no início de seu mandato que a Alemanha deveria perdoar a dívida grega como uma “reparação de guerra”. Segundo ele, a destruição causada à Grécia pelo Reich na Segunda Guerra Mundial nunca foi paga. O primeiro-ministro disse aos alemães que a dívida continuaria de pé, com valor flutuando na casa das centenas de bilhões de dólares. Acontece que, em 1960, o governo grego aceitou 115 milhões de marcos alemães como reparação da guerra. A chanceler Angela Merkel declarou a dívida paga, em suas palavras “um assunto resolvido desde o tratado de reunificação do país, em 1990”.

No dia 20 de agosto de 2015, num movimento político articulado, Aléxis Tsipras anunciou sua renúncia ao posto de primeiro-ministro, convocando novas eleições para o cargo. Ele enfrentou relações conturbadas com os credores europeus, ficando entre os empréstimos que pagariam as dívidas gregas e a situação calamitosa que as medidas de austeridade vêm criando. Caso a coligação seja novamente eleita, espera-se que Tsipras volte fortalecido, ganhando impulso para novas negociações com os credores.

Muitos termos já foram negociados no parlamento do Eurogrupo. Foi proposto um aumento da austeridade, rapidamente rejeitado pelo povo grego, e também o abandono das medidas, este rejeitado pelos credores. Foi discutida a saída total ou parcial da Grécia da zona do euro, batizada de “Grexit” [veja nota]. Até o momento, muito por conta da pressão alemã, foram mantidas as medidas de austeridade fiscal.

Foi liberado um novo pacote de ajuda [veja nota] para o governo grego, avaliado em 86 bilhões de euros. Esse empréstimo significa um aumento ainda maior na reforma econômica do país, com mais cortes de gastos e aumento da taxa de desemprego, que já alcançou níveis estratosféricos. A Grécia está condicionada a seguir as instruções de seus credores por tempo indeterminado, até que a crise seja superada. Dessa forma, o país permanece fazendo parte do bloco econômico.

Apesar da negociação direta de Tsipras com os credores, o Parlamento grego colocou as medidas em votação. Os parlamentares decidiram promover uma reestruturação no código civil do país e reformar o sistema bancário. Essas duas condições são essenciais para que o pacote, o terceiro desde o começo da crise, seja efetivado.

O Parlamento grego votou a favor de ambas as mudanças — assim como votou nos últimos pedidos dos credores. Mas a base aliada do SYRIZA tem se articulado contra as novas medidas de Tsipras, em especial após a decisão do referendo do mês de julho.

Oxi, do grego, significa “sim”. Este cão votou pela saída da Grécia da zona do euro. Ele participava do movimento Blockupy, cujo lema é “Nein, Oxi, Não à austeridade, Sim à democracia”. Ao fundo, a sede do Banco Central Europeu, em Frankfurt. (Foto Ralph Orlowski / Reuters)

Nessa escalada, O SYRIZA sofreu perdas importantes. O ministro das finanças, Yanis Varoufakis, resignou logo após a última rodada de negociações da dívida, alegando problemas com os termos dos credores. Grande parte dos gregos também rejeita os termos, impostos principalmente pela Alemanha, e os pacotes de ajuda vêm se tornando impopulares. Isso levou a articulação a convocar uma votação para que haja um referendo interno do partido, em setembro. Foi uma vitória importante para a base governista, que conseguiu adiar os debates mais importantes para depois da nova rodada de conversa com os credores, acalmando os ânimos entre os membros mais radicais do partido.

No dia 15 de agosto, o parlamento do Eurogrupo aprovou um plano de resgate à Grécia, o terceiro desde o início da crise. O novo programa emprestará cerca de 86 bilhões de euros aos cofres gregos durante três anos. Como os vizinhos europeus não querem forçar a saída da Grécia da eurozone, ambos os lados flexibilizaram as negociações.

Se o país deixar o bloco, os indicadores de crise tendem a disparar, aumentando a desconfiança da comunidade internacional que já paira pelo país. Esse desconforto endurece as linhas de financiamento, abrindo alas para uma recuperação penosa.

“O melhor para a Grécia nesse momento é se manter na zona do euro, mas eles precisam se preparar para isso. A saída traria liberdade para emitir e desvalorizar uma moeda nova, o que, a curto prazo, resolveria o problema. Mas a médio e longo prazo, acaba não sendo positivo”, explica o professor Ecio Costa.

Aldo Cordeiro Sauda, pesquisador de pensamento político pela Unicamp, entende que a retomada do crescimento econômico no país está atrelada a sua saída da eurozona. “Resolver essa crise vai envolver expropriação de salários e pensões, empurrando a população para a pobreza.” Ele está na Grécia desde o referendo de 5 de julho, e diz que o apoio da população à saída da eurozona varia de acordo com a posição social: quanto mais alta a classe, menor é o apoio. “Existem grandes recortes. O primeiro é o dos trabalhadores, que apoiam a saída. O segundo é a juventude. Quanto mais jovem, mais disposto a romper com o euro.”

Um conjunto de países faz a gestão dos termos do acordo de salvamento, liberando dinheiro através de acordos bilaterais de empréstimo e do Mecanismo Europeu de Estabilidade Financeira (EFSM, na sigla em inglês). Quem mais emprestou foi a Alemanha, com 57 bilhões de euros, seguida de França (43 bilhões), Itália (38 bilhões) e Espanha (25 bilhões). Empréstimos menores de outros países ainda somam outros 32 bilhões.

Fonte: Deutsche Bank, FMI, Reuters e Bloomberg.

A dívida externa conta com empréstimos de instituições financeiras internacionais. O Fundo Monetário Internacional (FMI) cedeu 24 bilhões de euros e o Banco Central Europeu (BCE) é dono de 27 bilhões, que se juntam a outros 11 bilhões de empréstimos anteriores. Fechando a conta, a dívida interna soma 63 bilhões. Segundo dados do Deutsche Bank, FMI, Reuters e Bloomberg, o montante totaliza 320 bilhões de euros.

As medidas de austeridade são a grande tormenta do povo grego. Apesar da impopularidade das medidas, Tsipras se viu sem alternativas e aceitou a terceira rodada de resgate econômico.

O professor Plínio Sampaio é crítico ao programa de ajuste imposto pela Troika (nome dado ao grupo formado por União Europeia, FMI e Banco Central Europeu). “O objetivo fundamental é rebaixar o nível de vida dos trabalhadores gregos. Em outras palavras: ataques sistemáticos às políticas públicas, precarização das condições de trabalho, arrocho salarial, deterioração da previdência social e aumento do desemprego. A crise grega mostra para o mundo o caráter elitista da União Europeia”, opina.

Os gregos sentiram a força da crise durante as três semanas em que os bancos fecharam as portas. No dia 29 de junho, as operações foram paralisadas para preservar a linha de crédito cedida pelo Banco Central Europeu. Para manter o dinheiro nos cofres, o que possibilita que o banco consiga operar e negociar, os saques em caixas eletrônicos foram limitados a 60 euros por dia. Cidadãos idosos tinham o privilégio de sacar o dobro.

No dia 20 de julho, a Grécia reabriu as agências bancárias e iniciou o pagamento de 6,25 bilhões de euros ao Banco Central Europeu e ao FMI. Os compromissos estão sendo honrados graças a um empréstimo-ponte de 7,16 bilhões de euros conseguido junto do EFSM, dias antes. Com o dinheiro em caixa, os limites de saque foram flexibilizados, passando a um limite semanal de 420 euros. Os gregos voltaram a depositar cheques, pagar contas e ter acesso aos cofres.

A crise econômica já empurrou dois milhões e meio de gregos para baixo da linha da pobreza. Segundo dados da Eurostat, essas pessoas integram um grupo de 3,9 milhões em risco de entrar na faixa exclusão social. Esse número corresponde a 35,7% da população do país. Apenas Bulgária e Romênia têm desempenhos piores que a Grécia nesse indicador.

Os dados da pobreza se somam aos do desemprego, que disparou de 12,71% em 2010 para 26,5% no ano passado, chegando a 55% entre os jovens. “É muito difícil encontrar uma pessoa com menos de 25 anos de idade que já tenha trabalhado. Quando tem emprego, é temporário. Existe muita desesperança, principalmente na juventude”, diz Aldo Sauda.

Se a Grécia deixar de honrar seus compromissos, o cenário fica ainda pior. Um default financeiro desacelera o crescimento econômico e afeta o relacionamento com outras nações. Na prática, um calote grego demoraria muito para ser esquecido, mais ainda para ser perdoado aos olhos dos investidores internacionais.

Os professores Plínio Sampaio e Ecio Costa concordam que a questão é mais política do que econômica. “Se a Grécia sai da zona do euro, abre possibilidade para que outros também saiam, como Portugal, Itália e assim por diante”, diz Costa, que acredita que o problema grego não influenciou muito na oscilação da bolsa de valores. “Foi uma questão na taxa de câmbio, e por conta desse viés político. Isso é preocupante.”

As bolsas europeias têm recuado em função das incertezas que flutuam sobre os pagamentos de dívida helênica. No dia 3 de julho, o índice das ações mais negociadas da zona do euro recuou e marcou a maior queda semanal de 2015. Depois de cinco semanas fechada, a bolsa grega reabriu, no dia 3 de agosto, com uma queda de 16,28%, uma oscilação muito grande. Mais uma derrota histórica para a já fragilizada economia nacional.

O Brasil também pode sentir os efeitos, ainda que mais fracos, da crise europeia. A alta do dólar, que preocupa o país desde o início do ano, pode sofrer um agravamento devido à desvalorização do real frente a moeda americana. Em tempos de incerteza, o mercado fica mais desconfiado em relação a países emergentes, e isso afeta a cotação de suas moedas. Teoricamente, estes países representam um risco maior aos investidores, levando a uma fuga de recursos para a moeda norte-americana. A desvalorização do real, por sua vez, pressiona a inflação no Brasil, num momento onde ela já está acima do previsto [veja nota]. Também é esperada uma queda nas exportações, já que o continente europeu sofre como um todo, e aumento das taxas de juros.

No dia 5 de julho, 6 milhões de eleitores (aproximadamente 60% do eleitorado grego) foram às urnas votar medidas oferecidas até então pelo Parlamento Europeu para ajudar o país a sair da crise. Essas medidas eram as mais rígidas até o momento. O referendo proposto pelo governo permitia que a população escolhesse entre aceitar ou não as condições impostas, levando em consideração seus possíveis efeitos colaterais — que incluíam, dependendo da reação internacional, o Grexit.

Nas urnas, venceu o “não” — defendido pelo SYRIZA. Contudo, o governo grego anunciou, dias depois, a negociação de um pacote econômico ainda mais severo do que o rejeitado pela população, desencadeando uma crise política interna no partido que levou à resignação de membros em cargos importantes. A crise ainda corre solta pelos corredores da praça Syntagma, onde fica localizado a sede do Parlamento grego. O prédio, que já serviu de museu pessoal para as obras de arte do rei George I, em 1863, vive dias bem menos gloriosos sob a sombra da crise.

Matéria escrita por Daniel Salgado, editada por João Brizzi e Nícollas Witzel e ilustrada por Nícollas Witzel.

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