Percebe, Ivair, a importância do Cavalo?

A saga do vilão de bang-bang que matou o tira errado

Yuri Eiras
Revista Poleiro

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Por Yuri Eiras

Viaturas policiais se enfileiravam pela estrada na busca ao maior fora-da-lei que a cidade de São Sebastião já viu. Metade do corpo policial de São Paulo viajou até o vilarejo de Saco Fora, na região praiana pouco povoada, onde o famigerado bandido havia sido visto pela última vez. Ele era o mais falado das páginas policiais há pelo menos quarenta dias, desde que matou o maior xerife do lugar. Postes e paredes estampavam seu rosto e apelido, que lembra um vilão dos filmes de bang-bang. Manuel Moreira, o Cara de Cavalo, não foi protagonista de um clássico de faroeste, mas ainda assim teve sua vida transformada em obra de arte.

As paredes cinza do edifício da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) são recentes. A paisagem da Grande Tijuca era um pouco mais colorida quando o local abrigava a Favela do Esqueleto, até a década de 60. Entre o estádio do Maracanã e do Morro do Mangueira, o Esqueleto foi destruído durante a gestão Carlos Lacerda, governador do estado da Guanabara entre 61 e 65. Mas antes de sua população ser transferida à força para a atual Vila Kennedy, em Bangu, a Favela do Esqueleto teve uma celebridade entre os seus. Manuel Moreira, conhecido como Cara de Cavalo, não era lá um bandido de alta periculosidade. Seu nome, no entanto, foi cuspido pela boca de muito policial enfurecido.

Um Manuel ainda menino tomava, pelas manhãs, o trem de número 33 na Mangueira, que o levaria até a atual Central do Brasil, na época chamada de estação Dom Pedro II. A ocupação do garoto era diferente daqueles milhares de trabalhadores legais que atravessavam a cidade todos os dias dentro dos vagões. Manuel começara a vender maconha na Central com pouco mais de 10 anos, abastecendo de bagulho àqueles que passavam pelo ponto mais movimentado da cidade. O menino não era exatamente o espelho do traficante atual, gerente comercial de bocas de fumo instaladas em morro. Sua distribuição era no asfalto, na encolha, como aprendeu com a malandragem dos anos 40 e 50, na Favela do Esqueleto e no Morro da Mangueira.

Favela do Esqueleto em 1961. (Foto: Marcelo Heitor Ferreira Mendes)

Seu encantamento pelas ladeiras tortuosas da vida também o levou a se aproximar das prostitutas do Centro, que batiam ponto entre a Central do Brasil e a Rodoviária, pedaço onde Manuel passava a maior parte do tempo. Ele virou cafetão de algumas das meretrizes pobres do local, enquanto complementava seu orçamento com a venda de maconha. Sua fama de prematuro no crime o fez ganhar respeito, o jovem passou a ser conhecido em outras comunidades além do Esqueleto. A polícia também ficou sabendo da sua existência após Vilma, uma de suas várias esposas, assassinar uma rival por ciúmes. Sua fama galopava Rio de Janeiro afora.

27 de agosto de 1964. O céu claro e a brisa da tarde não eram suficientes para tornar o clima agradável no bairro de Vila Isabel. A terra das calçadas musicais era palco de uma perseguição que mudaria o rumo da segurança pública do estado do Rio de Janeiro.

Policiais da região da Grande Tijuca receberam uma queixa da cúpula do jogo do bicho: há um rapaz por aí assaltando as bancas da rapaziada. Cara de Cavalo, agora adulto e envolvido com os contraventores, cresceu o olho e passou a chantageá-los. Em uma espécie de “pague-me e estará salvo de mim mesmo”, o bandido ganhava o seu dinheiro de todas as formas: a banca de jogo do bicho que não pagava a mensalidade era roubada. Uma versão beta da atual milícia no subúrbio carioca. Cara de Cavalo se transformou no personagem mais odiado dos bicheiros da cidade, que foram contar as suas peripécias para os delegados.

Os policiais Hélio Vígio, Cartola (não o compositor) e Milton Le Cocq se juntaram e decidiram fazer este favor ao povo dos números. Sabendo que Cara de Cavalo era criado na região de Vila Isabel, Tijuca e Maracanã, rondaram as localidades para encontrá-lo. Acharam Cara de Cavalo de bate-papo com uma amante, em frente ao estádio. O bandido percebeu algo estranho no ar e fugiu de carro, rumo a Vila Isabel. A polícia foi atrás.

A emboscada teve fim na Boulevard 28 de setembro, avenida principal do bairro. O carro da polícia cercou Cara de Cavalo, que, pasmem, estava armado. Os policiais saíram da viatura e, imaginando que Cara de Cavalo se entregaria, deram a ordem de prisão. Sem pena e no susto, o criminoso abriu fogo em cima dos policiais e atingiu um senhor de blusão branco e boina vermelha. Era o disfarce mais costumeiro de Milton Le Cocq, ex-segurança pessoal do presidente Getúlio Vargas e, na época, o detetive mais famoso do Rio de Janeiro. Le Cocq morreu a caminho do hospital. Cartola tomou um tiro de raspão e Hélio Vígio, que ficou preso na viatura (de duas portas) não sofreu ferimentos.

O detetive Le Cocq havia prometido para sua família que aquela seria a última operação da temporada. O policial já estava desanimado com a corporação, que expulsara anteriormente seus principais homens. Le Cocq também respondia processo na Justiça, pela morte de um bandido. Ele pretendia tirar longas férias. Não deu.

O enterro do detetive, no Cemitério do Caju, reuniu milhares de pessoas. O funeral interrompeu o trânsito da região. Os policiais presentes juraram vingança. A capa do jornal A Última Hora do dia seguinte chamava a atenção para o sentimento dos militares.

“Toda a polícia está, neste momento, mobilizada para a prisão do facínora, que fugiu após matar o policial. Vasta caçada é, agora, empreendida por equipes completas de várias delegacias, sendo geral o sentimento de revolta entre os colegas do morto, que manifestam o propósito de vingá-lo de qualquer forma.”

Em dezenas, policiais se apresentaram voluntariamente para participar da vingança. Os batalhões da Tijuca, Maracanã, Meiér e os do centro da cidade ligaram o alerta para qualquer denúncia que entregasse o paradeiro de Cara de Cavalo. A polícia cercou a Favela do Esqueleto e o Morro da Mangueira. Ninguém entrava e ninguém saía sem dizer para os militares se viram o bandido pela região. Informações falsas foram dadas e alguns tumultos ocorreram na comunidade de origem de Manuel Moreira.

Manuel continuava a assassinar policiais, mesmo que indiretamente. O prêmio em dinheiro por sua cabeça era alto, e o status que um policial ganharia por sua captura valia mais que mil medalhas grudadas à farda. A Favela do Esqueleto era alvo de batidas policiais diariamente. Em uma dessas, duas frentes da segurança pública se desentenderam: o caçador de criminosos Perpétuo de Freitas bateu de frente com o também detetive Jorge Galante, seu maior rival. Eles discutiram e, durante o empurra-empurra, Galante disparou contra o tórax de Perpétuo, que morreu no Hospital Souza Aguiar.

Com apenas uma foto de Cara de Cavalo, quando foi preso por um furto em 1958, ainda jovem, era difícil para os samangos descobrir qual era sua atual aparência. Para melhor disfarce, usava sempre óculos escuros. E era fácil para o bandido se locomover pelas estradas do Rio de Janeiro. Na companhia de um amigo, Daltro Gregório, Cara de Cavalo foi buscar abrigo na Baixada Fluminense, em São João de Meriti. A casa de Daltro era o esconderijo perfeito: longe da cidade, cercado por matagais e perto o suficiente da estrada para outras partes do estado. Mas Cara de Cavalo não contaria com a faceta alcaguete de Dona Penha, esposa de Daltro, que dedurou a localização do bandido para a polícia. A dupla, no entanto, foi mais esperta: os homens da lei chegaram na casa exata e metralharam tudo, mas não acharam Manuel e seu comparsa.

Várias partes do estado do Rio eram citadas como a localização exata de Cara de Cavalo. Os policiais da capital se dividiram e, na sede de capturar o bandido, mataram alguns pelo caminho. Leitão, amigo e pombo-correio de Cara de Cavalo, foi morto na Favela do Esqueleto por não saber onde seu amigo se escondera. Valdir de Sousa Coelho, morador de Piabetá, distrito de Magé, foi espancado até a morte, depois de ter sido confundido com Manuel.

Medeiros, advogado de Cara de Cavalo, foi durante meses figurinha carimbada nos jornais do Rio. Sempre procurado pela imprensa, ganhou fama por defender o criminoso mais procurado da época. Medeiros, que também se chamava Manoel, dizia à polícia que Cara de Cavalo queria a certeza de que não seria morto ao se render. Mas o próprio bandido dizia a amigos que só se entregaria morto. Para a polícia, não importava o corpo quente ou frio: ele morreria de qualquer forma, era uma questão de vingança.

Após 37 dias da caçada humana, um dedo-de-seta apontou o caminho certo à polícia carioca: Cara de Cavalo pegou um ônibus na rodoviária e se escondeu em um lugarejo na Região dos Lagos. O local era Saco Fora, hoje Armação de Búzios, mas que na época era distrito do município de Cabo Frio. A região foi popularizada pela atriz francesa Brigitte Bardot, que ali se hospedava sempre que vinha ao Brasil, nos anos 1960.

A informação nasceu a partir de Toninho, um comerciante da região de Matias Barbosa, em Minas Gerais, onde Cara de Cavalo se escondeu pela segunda vez. Dali, o bandido partiu para Juiz de Fora, onde se encontrou com a amante Vilma, aquela que assassinou a rival. Um velho amigo, Crispim, buscou Cara de Cavalo e o levou para sua residência em Saco Fora, no dia 24 de setembro. A casa era de propriedade da mulher de Crispim. Seria o último esconderijo do criminoso.

Polícia caminhando na estrada de Saco Fora, na busca por Cara de Cavalo

A polícia chegou com dezenas de viaturas às quatro horas da manhã do dia 3 de outubro. A casa estava completamente fechada. “Mané, é a polícia! Saia com as mãos na cabeça”, gritou um policial. A resposta veio com uma saraivada de balas de dentro da casa, disparadas pelo bandido. “Cara de Cavalo, queremos você vivo!”, respondeu outro PM. A Colt .45 de Cara de Cavalo vomitou fogo novamente. Dali em diante, a conversa foi na língua da pistola. Em depoimentos dados à Revista O Cruzeiro, os policiais disseram que Cara de Cavalo gritava que não sairia vivo, preferindo morrer trocando tiros. “Vou morrer, mas levo um policial para o inferno comigo”, berrava o criminoso.

Cerca de 150 disparos foram feitos contra o assaltante, 52 atingiram o alvo. Entre os executores estava o inspetor José Guilherme Sivuca, eleito décadas depois deputado estadual pelo Rio de Janeiro. Sivuca foi o criador do bordão “bandido bom é bandido morto”. Em depoimento ao jornalista policial Octávio Ribeiro, José Sivuca contou sua versão do que viu. “Pegaram o bandido com uma rajada de metralhadora. Então todo mundo atirou no bandido. Mais de cem tiros. O umbigo do cara ficou colado na parede.”

As principais revistas e jornais da época seguiram os policiais na caçada ao bandido. Após a execução, um dos fotógrafos que estava por lá retratou o corpo de Cara de Cavalo estirado no chão, cercado de pessoas — provavelmente policiais. A imagem, mais tarde, viraria um ícone artístico.

Cara de Cavalo, morto, após confronto com os policiais.

O artista plástico Hélio Oiticica era frequentador assíduo do Morro da Mangueira, sendo inclusive passista da escola. A aproximação com a Mangueira e as outras favelas da região fez Oiticica conhecer Cara de Cavalo, de quem se tornou grande amigo.

A morte de Cara de Cavalo abalou o artista criador dos parangolés. Um ano mais tarde, Oiticica criou, em homenagem, a instalação Bólide 33, de nome Homenagem a Cara de Cavalo. A obra consiste em uma caixa-poema, onde a fotografia de Cara de Cavalo morto é apresentada nas paredes da instalação. Embaixo, a mensagem “aqui está e ficará! Contemplai seu silêncio heróico”. O artista, admirador da identidade marginal carioca, faria na mesma época o “Herói anti-herói e o anti-herói anônimo”, um texto onde coloca lado a lado a história de Cara de Cavalo e de Alcir Figueira, um anônimo que ficou conhecido após cometer suicídio e ter seu corpo fotografado. A imagem de Alcir morto com a frase “Seja marginal, seja herói” virou bandeira da militância clandestina. Essa série de trabalhos de Oiticica ficou conhecida como Marginália.

Os desdobramentos do feito de Cara de Cavalo não ficaram apenas na arte. Em 1965, a Scuderie Le Cocq foi criada por policiais com o intuito de homenagear o detetive assassinado pelo bandido. A Scuderie, com organização de milícia, tornou-se o Esquadrão da Morte, grupo de extermínio que atuou fortemente no Rio de Janeiro durante a Ditadura Militar, entre as décadas de 60 e 80. A organização criou fama na capital e na Baixada Fluminense por expor em praça pública, sempre com a imagem de uma caveira com dois ossos cruzados.

Matéria escrita por Yuri Eiras e ilustrada por Nícollas Witzel.
Todas as informações foram retiradas do arquivo dos jornais Estadão, Folha de S. Paulo e Jornal do Brasil.

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