Por que você luta?

Esses santinhos já parecem não representar ninguém, mas são tão atuais quanto o nosso pensamento político

João Brizzi
Revista Poleiro

--

Por João Brizzi

A corrida eleitoral de 2014 vem trazendo à tona, ao longo dos últimos meses, um festival de posturas políticas antiquadas. Se, no primeiro turno, os holofotes se voltaram para o memificado Eduardo Jorge, para a meteórica ascensão — e consequente retorno à normalidade — de Marina Silva e para o homofóbico Levy Fidélix, no segundo turno não teve jeito: o nível baixíssimo das campanhas foi garantido pelo PT de Dilma e pelo PSDB de Aécio.

Enquanto a página do Partido dos Trabalhadores faz as mais esdrúxulas comparações em relação aos supostamente diferentes modos de governar de petistas e tucanos, os tais dos sociais democratas vão se escorando em tudo que podem para tentar a virada. De encontro secreto para angariar votos ao lado do deputado Marco Feliciano aos intervalos na programação televisiva para agradecer o apoio de Marina — que jogou para o alto as críticas sobre a polarização PT x PSDB feitas no primeiro turno —, vale tudo quando o assunto é alcançar os eleitores que não se identificam com Dilma.

Fotos: Revista Época e Nelson Antoine/Frame/Folhapress

Como não poderia deixar de ser, a troca de farpas dos dois candidatos acabou criando um cenário que beira a histeria coletiva. Os coxinhas e a esquerda caviar travam uma discussão tão rasa quanto os apelidos dados por seus respectivos opositores. Andando pelas ruas, a impressão que se tem é que precisamos escolher entre a falência dos cofres públicos junto ao PT ou o sucateamento da educação e o fim dos programas de transferência de renda com o PSDB.

A falta de raciocínio reflexivo e a atitude de manobra de ambas as partes nos leva a uma conjuntura perigosa: a velha dicotomia esquerda x direita brasileira ganha força e empodera quem quer que vença no dia 26 de outubro. Se antes da morte de Eduardo Campos o que se imaginava para as eleições era a candidata petista ganhando sem maiores dificuldades e continuando cambaleante em seu mandato, a acirrada e desleal disputa fez com que os apoiadores de PT e PSDB que se afastaram com o passar dos anos voltassem a defender seus candidatos com unhas, dentes e adesivos colados em suas camisetas e carros.

Agora, quem tiver maior porcentagem na próxima apuração entrará no governo com força e apoio desmedidos, um cenário longe da realidade política de crise de representatividade que se desenhava no famigerado junho de 2013. Enquanto começamos o ano pautando questões de gênero, reforma política e tantos outros temas progressistas, parece que o primeiro momento de instabilidade minou todos os avanços programados para essas eleições.

E, em cima disso, podemos pensar o porquê de pedirmos uma reforma política para mudar o país — mesmo que de um jeito meio humberto-gessingeriano. Se “nós não precisamos saber pra onde vamos, nós só precisamos ir”, talvez seja a hora de admitir que nosso jeito de discutir já está tão batido quanto uma letra dos Engenheiros do Hawaii.

Pausa pra descontrair com todo o estilo dos Engenheiros do Hawaii de duas décadas atrás.

Por que paramos de refletir?

Wes Anderson é um cultuado diretor de cinema hollywoodiano. Se você ainda não assistiu a nenhum de seus filmes, não deve ser difícil achar O Grande Hotel Budapeste, mais recente obra do cineasta. Se você está se perguntando o que ele tem a ver com esse texto, logo explico: seus filmes não são irônicos e, por isso, são tão legais.

E o que a ironia tem a ver com o nosso pensamento político?

Em meados dos anos 90, o escritor norte-americano David Foster Wallace já cravava: o ambiente de discussões pós-moderno seria permeado pela ironia. Ser permeado pela ironia quer dizer ser contrário ao diálogo. É fácil notar: observe um eleitor do Aécio discutindo com um eleitor da Dilma. Provavelmente, ambos estarão sendo cínicos na maior parte do tempo e, portanto, não deve haver exposição e/ou troca de seus ideais e valores.

Nossas cabeças, hoje, não são moldadas para dialogar e enriquecer nosso estoque de conhecimentos acerca de outras visões de mundo, mas sim para construir armadilhas retóricas que não abram brechas para que o outro possa entender o que estamos dizendo. No fundo, não queremos expor nada, mas sim permanecer em uma posição ideológica estável.

Quando a ironia começou a ser usada como ferramenta discursiva no pós-guerra, ela tinha uma função clara: já que o diálogo era impossível, a juventude queria criar métodos de se expressar e de se identificar que fossem capazes de atravessar as barreiras do discurso hegemônico. O uso da ironia previa o conhecimento do contexto em que ela se inseria e, portanto, ela parecia ser uma arma eficiente para acabar com os cativeiros ideológicos que se instalaram pelo mundo na segunda metade do século XX.

Quem ouvia Chico Buarque cantando Roda Viva ou Bob Dylan pregando o fim das guerras em Blowin’ in the Wind sabia do que eles estavam falando, ainda que eles não precisassem expor seus temas em sua poesia. O problema é que a não exposição dos temas de discussão se tornou regra e, de consequência, a ironia passou a ser causa e pilar de sustentação dos problemas políticos deste século.

Para Wes Anderson, um escoteiro perdido é… só um escoteiro perdido.

O que nos fascina nos filmes de Wes Anderson é o fato de conseguirmos acompanhar histórias em que os personagens só dizem o que eles querem dizer. É perceber que, nas duas horas em que ficamos parados em frente a alguma tela, uma história pode ser contada sem que você precise fugir dos significados originais das palavras ditas por seus personagens.

E como ele faz isso? Simples: usando o diálogo.

A ironia dentro de nossa política

O mal de termos cultivado a cultura da ironia ao longo das últimas décadas é bastante simples: nós passamos a supor que todos sabem, o tempo todo, do que estão falando e, dessa forma, começamos discussões abstratas sedimentadas em uma base desconhecida. Por exemplo: quem é de esquerda tem por hobby chamar quem é de direita de reacionário. Subentende-se que reacionário é sinônimo de direita, correto? Errado.

reacionário
re.a.ci.o.ná.rio
adj (reação+ário) 1 Pertencente ou relativo ao partido da reação ou ao seu sistema. 2 Que se opõe às ideias políticas de liberdade individual e coletiva; retrógrado. sm Sectário da reação política ou social; homem antiliberal.

Dicionário Michaelis de Português Online

Inicialmente, a palavra reacionário dizia respeito a quem se opunha a qualquer tipo de mudança na conjuntura social. Pensando dessa maneira, ser reacionário em grande parte das situações é algo necessário para que o caos não tome conta da sociedade, afinal, é plenamente compreensível ser reacionário para que a sociedade continue a ser contra o homicídio, por exemplo. E isso é ser “relativo ao partido da reação ou ao seu sistema” desde que o sistema seja contra o homicídio.

Como todo bom dicionário, no entanto, o sentido da palavra mais utilizado pelos militantes também foi devidamente incorporado, mas não sem que fosse esquecido o significado primeiro dela.

Esse desconhecimento do contexto político advindo da ironia é o grande progenitor desse curioso cenário que percebemos em 2014: uma reunião no Starbucks onde a esquerda caviar e os coxinhas falam mal uns dos outros logo após terem ambos pago vinte reais em uma coxinha e um cafézinho. Nem a esquerda sabe a reforma política que quer, nem a direita sabe bem o que deseja conservar.

Abandonando o raciocínio dicotômico

Usemos, como exemplo, a questão cujas discussões avançaram mais velozmente nos últimos anos: gênero. Em termos simples, podemos resumir o resultado de anos de luta e debate: não há motivo para “binarismos”. Na prática, qualquer um pode ser o que quiser: homem, mulher, terceiro gênero, algo que transite entre os três, algo que não seja nenhum deles. Você pode ser qualquer coisa, desde que não fira as liberdades individuais do outro.

Você é de direita ou de esquerda?

Os visíveis e admiráveis avanços relacionados às discussões de gênero devem levar alguns anos para serem refletidos por completo na sociedade, mas pode-se dizer com alguma segurança que, do ponto de vista teórico, foi alcançada uma ideologia capaz de ser a pedra fundamental para acabar com qualquer opressão desse tipo.

Todo esse progresso se deu porque os envolvidos na questão se permitiram dialogar. Como muitos grupos diferentes — mulheres, LGBT etc. — se viam em um cenário de diferentes opressões com a mesma origem, a solução encontrada foi pensar a origem de cada um dos preconceitos enraizados em nossa sociedade para, em conjunto, pensar uma mudança. A nossa reforma política precisa seguir o mesmo caminho.

É muito curioso pensar que uma sociedade que desmerece uma candidata por ela estar em cima do muro teve como um de seus episódios mais marcantes a queda de um grande muro. Um mundo que aplaudiu o fim de uma histórica polarização mal esperou o acender das luzes para se agarrar a uma dicotomia semelhante.

A problemática é complexa e parece não ter saída aparente porque pensamos soluções para hoje baseados em uma “separação necessária” de 50 anos atrás. Os de esquerda têm como um de seus principais discursos acabar com as manipulações da mídia, mas usam e abusam das formas mais arcaicas de apoiar o PT neste segundo turno e tratam a população como uma grande massa de manobra que não pode se vender ao pensamento tucano. Os de direita, por sua vez, não fazem a menor ideia do que lutam contra e gritam aos quatro ventos que não querem ver o Brasil se tornar uma nova Cuba.

Antes de vê-lo ser derrubado, foi do alto do muro que ele conseguiu ser ouvido dos dois lados.

Mudamos a sociedade… mudando a sociedade!

Não importa se você é de direita ou de esquerda: você só saberá se a sua oposição quer transformar o Brasil em uma ditadura comunista ou se ela quer vender a própria alma para os braços invisíveis do capital se parar de gritar a ponto de não conseguir ouvir o outro. O fato de termos uma real disputa no segundo turno quer dizer que, daqueles que querem escolher entre Dilma ou Aécio, pelo menos uma metade não concorda com a outra.

É simplista demais pensar que o que precisamos fazer é convencer o outro a concordar conosco para que consigamos aplicar a mudança que queremos pro mundo. Nós sempre nos esquecemos, mas a distância que vemos para que o outro mude é a mesma distância que o outro vê para que a gente mude.

A nossa política é caótica por ser o reflexo de uma sociedade igualmente caótica. Ela vai passar a ser mais reflexiva, inclusiva e progressista a partir do momento em que pararmos de pedir que ela o seja e passarmos a ser, nós mesmos, mais reflexivos, inclusivos e progressistas.

Mais do que votar 13 ou 45 por desespero, precisamos ter a calma e a clareza de pensar se gostaríamos de passar pela mesma situação daqui a 4 anos. A conjuntura eleitoral é o exato reflexo do que fizemos em junho do ano passado: fomos às ruas nos aproveitando de uma causa específica (a frente contra o aumento dos preços no transporte coletivo), reclamamos do sistema e não fomos capazes de propor as reflexões necessárias para a mudança deste.

Precisamos ser independentes no pensamento para que as nossas próximas escolhas sejam mais representativas. Não podemos, em momento algum, nos sentir confortáveis em relação ao modo como vemos o mundo porque essa será hora em que passaremos a não perceber nossos próprios problemas.

Em vez de pensar pelo que lutamos, talvez seja o caso de pensar por que lutamos. Nos últimos 20 anos, fomos capazes de conhecer os dicotômicos mundo tucano e mundo petista e, para qualquer um que queira mudança, parece óbvio que nenhum dos dois é a solução para as próximas décadas.

O pai da Mafalda sabe que, às vezes, reconhecer a própria ignorância é melhor do que ter uma fala vazia.

Troquemos o imediatismo de defender um lado ou outro sem saber exatamente do que estamos falando e passemos a discutir com calma e esclarecimento as possíveis novas alternativas para reestabelecer o diálogo, acabar com a ironia, passar a ter uma vida mais parecida com os filmes do Wes Anderson e menos dependente da convivência com pessoas com cabeças análogas às nossas.

No final de semana, vote como quiser, mas antes, durante e depois do seu domingo, pense e procure saber o que os outros pensam.

Quem sabe, assim, os resultados das próximas urnas gerem reações mais animadoras do que os de dois mil e quatorze.

Gostou? Faça login no Medium e recomende o texto!
Curta a Poleiro no
Facebook // Nos siga no Twitter

--

--

João Brizzi
Revista Poleiro

Designer e jornalista no The Intercept Brasil. Antes, trabalhei na revista piauí e fundei a Revista Poleiro.