Por trás do estigma

Como a maneira como encaramos a Síndrome de Down nos mantêm longe de entender as pessoas que têm a doença

João Brizzi
Revista Poleiro

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Por Brendan Seibel
Tradução por João Brizzi

A geografia fez com que as primas Lani e Alyssa não estivessem próximas quando crianças. Elas se encontraram algumas vezes durante a adolescência e, mais recentemente, na festa de aniversário de 90 anos de sua avó. Ainda que Lani se lembre de Alyssa por ser falastrona e confiante, elas continuavam sendo estranhas uma para a outra. Mais tarde, Lani percebeu o tanto de suposições que tinha feito sobre Alyssa baseada no fato de que sua prima tem Síndrome de Down.

Lani decidiu investigar essas suposições: fotógrafa, ela entrou em contato com sua prima para saber se ela estaria disposta a estrelar seu próprio documentário.

“Eu lembro de ter visto um tweet com uma imagem de uma pessoa com Síndrome de Down vestindo uma camiseta que dizia ‘Relaxe, é só um cromossomo extra’”, diz Lani Holmberg. “Acho que foi aquilo que provocou a ideia. Eu estava interessada em explorar empatia, estereótipos e fotografia, então começar comigo mesma pareceu a coisa mais honesta a se fazer. Pensei que, se pudesse estar aberta a explorar as minhas próprias conclusões precipitadas sobre o assunto, isso poderia ter algum poder. Eu esperava que os outros se sentissem aptos a fazer o mesmo.”

As visitas foram planejadas por mensagens de texto. Em seguida, uma viagem de trem, uma batida na porta e um abraço de boas-vindas. Por seis meses, Lani caminhou pelos subúrbios de Melbourne para passar alguns dias com Alyssa. Elas curtiram seus dias como primos fazem: tomando xícaras de chá, vendo novela, pegando ônibus para assistir partidas de futebol e arranjando carona para festas.

Vez ou outra, Lani tirava algumas fotos com sua câmera ou gravava uma conversa. Entre as tarefas cotidianas, a televisão e os jantares, ela foi se aproximando de Alyssa. A Síndrome de Down se tornou apenas uma diferença entre duas pessoas que tinham muito em comum.

Esses seis meses juntas resultaram no And Holland Has Tulips, uma fluida e imersiva confluência de imagens, narrativa e áudio. Lá, Lani nos faz percorrer tanto a vida de Alyssa quanto sua própria experiência de encontrar a pessoa escondida por trás do rótulo de sua doença.

Lani cresceu em Kerang, uma comunidade rural de alguns milhares de habitantes localizada 150 quilômetros ao norte de Melbourne. Ela se lembra dos arredores de sua infância como algo plano, seco, salgado e pouco inspirador. Ela também se lembra de Brian, um garoto que morava perto da escola onde cursou o ensino médio e que também tinha Síndrome de Down.

“Eu sentia pena dele”, diz ela. “Eu certamente não o enxergava como alguém por trás daquele rótulo. Eu me lembro de ficar um pouco constrangida quando o cumprimentava no supermercado ou em um parque ou em algum outro lugar e ele não me respondia ou não entendia o que eu havia dito. Eu não sabia o que fazer.”

O ensaio é uma tentativa de enfrentar cara a cara esse desconforto. Desde o início, nada esteve fora de seu alcance. Tanto Alyssa quanto Lois, sua mãe, e Carly, sua irmã, escancararam as portas tanto de sua casa quanto de suas vidas. Foi Lani quem, inicialmente, teve dificuldades e se sentiu desconfortável para perguntar certas questões ou fotografar certas coisas. Pior ainda foi perceber que, cada vez que Alyssa superava as expectativas de Lani sobre o que alguém com Síndrome de Down pode fazer, aquele embaraçoso nó na garganta voltava a incomodar a fotógrafa.

“Toda vez que eu me surpreendia por algo que Alyssa tinha dito, eu me pegava pensando ‘Por que você está surpresa?’”, diz Lani. “Na maioria das vezes, isso acontecia porque eu subestimava sua capacidade de pensar sobre algo, de perceber as coisas com tanta precisão, de descrever suas próprias emoções. Isso foi acontecendo cada vez menos conforme eu a conhecia melhor, mas nos primeiros dias ela não parava de desafiar as suposições que eu tinha sobre ela.”

Houve muitas oportunidades para Alyssa provar a si mesma. Três vezes por semana, ela ficava em casa para permitir que Lois tivesse tempo para trabalhar. Carly usa uma cadeira de rodas e exige cuidados constantes. Conviver com as irmãs mostrou a Lani os detalhes de seu cotidiano, uma rigorosa rotina que deu forma ao ensaio.

O bate-papo entre as tarefas mostrou a natureza amigável de Alyssa enquanto pessoa, algo que foi aos poucos desfazendo o nó na garganta de Lani. A Síndrome de Down acabou por ser só uma entre as muitas facetas de Alyssa, misturada com a que cuida de Carly, a que fofoca sobre seus amigos, admira atores famosos e a que tem pequenas decepções como qualquer um.

“Essa experiência tem sido sobre entender e respeitar a diferença e a invalidez, mas não deixar que isso te impeça de se conectar e conhecer alguém”, diz Lani. “De muitas formas essa história não é sobre a Síndrome de Down, mas sobre o que nós temos em comum. Todas as coisas que nos tornam humanos — amor, família, dificuldades, prazer e perdas — e que, uma vez identificadas, nos permitem ver através dos rótulos.”

Duas vezes por semana, Alyssa sai para trabalhar — um dia no Kmart (linha de lojas de departamentos com sede nos Estados Unidos) e o outro em um salão de beleza. Sair de dentro da casa permitiu que Lani percebesse como o mundo tratava sua prima. Os estranhos se atrapalhavam exatamente como Lani costumava se atrapalhar.

“Às vezes, como quando estávamos comprando ingressos para o cinema ou recarregando seu telefone, as pessoas me encaravam para tentar entender se deveriam falar comigo ou com Alyssa”, lembra Lani. “Se havia algum tipo de desentendimento, as explicações sempre eram dadas a mim e não à Alyssa. Nesses pequenos olhares e momentos de incerteza eu via o meu próprio desconforto, aquele velho nó na garganta que refletia meu comportamento. Uma incerteza sobre como se comunicar com alguém com Down.”

A decisão de fazer as visitas por vários dias seguidos durante alguns meses deu a Lani bastante flexibilidade. A rotina doméstica estabeleceu os temas narrativos que ela queria utilizar, e saber o que aconteceria em cada dia permitiu que ela preenchesse os espaços sobre cada tema. Ela também experimentou outras mídias: depois de fotografar Alyssa ajudando Carly a se deitar algumas vezes, Lani começou a sentir que a fotografia estática não conseguia retratar a experiência em sua completude e começou a usar vídeo.

Ela produziu uma tonelada de material. Lani sabia desde o princípio que ela não queria que o Tulips fosse um ensaio digital simples, mas foi só alternando entre fotos, vídeos e áudio que ela compreendeu o que deveria ser feito. A história é monótona e pode se perder facilmente em um emaranhado de diferentes mídias, então Lani tentou enfatizar o ritmo de tudo que ela ia aos poucos encaixando.

“Como uma pausa muito bem calculada durante uma palestra ou uma apresentação musical, eu queria que a história tivesse lugares onde fosse possível, de maneira visual, pausar, respirar e deixar o leitor refletir sobre suas próprias reações a respeito de Alyssa e sua história”, diz a fotógrafa.

Sem querer, Alyssa acabou colaborando com o design do projeto: seu diário inspirou o formato episódico utilizado, transmitindo a monotonia da rotina familiar, mas deixando espaço para as ocasiões especiais e para os pensamentos de Lani. George Hiley e Bretton Barleet foram chamados para programar o site, não só garantindo que ele funcionasse corretamente mas também dando a Lani pessoas para discutir suas ideias.

Assim que tudo ficou pronto, Lani sentou-se à mesa da sala de jantar junto de Alyssa, Lois e Carly para mostrar cada pedaço do projeto. Elas se alongaram aqui e acolá para conversar sobre certas coisas, pausaram para rir e também para chorar. Lani estava nervosa antes de compartilhar seu trabalho, em especial sua escrita.

“Foi difícil, para mim, explicar à Alyssa que eu a havia subestimado, mas isso era algo importante a se fazer”, conta Lani. “Eu a agradeci por me ensinar e por permitir que eu contasse sua história.”

Uma vez que o projeto foi especificamente pensado para o online, Lani não tem planos imediatos para uma exibição física. Mas de uma coisa ela já sabe: a fotógrafa quer continuar a documentar a vida de sua prima. Alyssa e Carly podem não conseguir continuar morando na casa conforme elas envelhecerem e, por conta disso, Lani começou a se interessar pela independência de pessoas com deficiência. Esse projeto, no entanto, não é o primeiro da fila.

“Eu quero fazer um book de Alyssa,” diz ela. “Ela não usa a internet, então não importa o quanto ela ame o Tulips, não é algo que ela pode mostrar aos outros com facilidade. O mesmo vale para sua família. Sua tia Julie imprimiu todo o texto e as imagens para fazer um livro para Ethel, a avó da família. Meu coração ficou em pedaços! Eu documentei a história de seus últimos seis meses e elas não conseguem acessá-la com facilidade. Por conta disso, eu e Alyssa faremos uma versão física limitada para os amigos e a família. É uma boa forma de dar continuidade ao projeto para nós duas.”

Por agora, Lani começou a pesquisar a história de meninas abandonadas na periferia de Calcutá. Ela já conseguiu voltar à Índia uma vez e acredita que esse será seu próximo projeto enquanto lida com um ou outro trabalho de meio período.

Depender da fotografia para se sustentar pode se tornar algo complicado e, por conta disso, Lani está satisfeita em levar as coisas vagarosamente. Ela passa seus dias pedalando de casa para o escritório e do escritório para o estúdio.

Depois de anos tentando evitar o lugar, ela também tem visitado seus parentes em Kerang e tem achado a paz, o silêncio, o conforto e a familiaridade muito mais proveitosos do que quando ela era jovem. Ela também tem, pouco a pouco, aprendido mais sobre os familiares e conhecidos que ela nunca chegou a conhecer bem.

“Eu estou, bem devagar, trabalhando em um projeto com e sobre meus avós”, diz. “As histórias de Lois sobre meu avô materno realmente me deixaram intrigada. Eu percebi que sabia muito pouco sobre esse homem que morreu quando eu ainda era um bebê. Estou interessada em juntar as peças sobre ele através de fotografias já existentes, registros e histórias contadas pelos outros.”

Todas as fotos e vídeo por Lani Holmberg

Outros Voos é a seção de traduções da Poleiro. Selecionamos o melhor do conteúdo internacional e traduzimos para você. A história de hoje veio da Vantage.

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João Brizzi
Revista Poleiro

Designer e jornalista no The Intercept Brasil. Antes, trabalhei na revista piauí e fundei a Revista Poleiro.