Nicollas Witzel
Revista Poleiro
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5 min readJan 26, 2015

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Há 53 anos, Sean Connery pedia o primeiro Dry Martini na pele de Bond, James Bond. Reunimos trajetória e receita do drink mais terno e gravata da história recente

Por Nícollas Witzel

Algumas infusões de bebida alcoólica já nascem de terno e gravata. Consequência do refino, elas são destinadas a rodar por ambientes em que o dinheiro não é problema. O Knickerbocker Hotel, número 6 da Times Square, é um desses lugares. Prédio de arquitetura sofisticada, foi encomenda do bilionário John Jacob Astor IV, que foi ao fundo do oceano a bordo do RMS Titanic em 1912, sem nunca provar o drink inventado em seu palácio, e que terminaria eternizado no mundo todo. Naquele mesmo ano, no bar do Knickerbocker, um Dry Martini foi batido pela primeira vez.

Culpa de um italiano chamado Martini di Arma di Taggia. O nome indica que tenha nascido em Arma di Taggia, pequeno condado da Riviera italiana. Reza a lenda que, certo dia, um tal John D. Rockefeller encostou no balcão do hotel procurando por um drink estupidamente “seco”. Na época, o gim era a base de toda a coquetelaria internacional.

A solução foi misturar uma dose generosa de gim com algumas gotas de Noilly Prat no fundo da taça resfriada. Uma azeitona, sem palito e nem caroço, vai no topo. Impressionado com a vertigem, Rockefeller batizou o coquetel adicionando a referência dry (seco) ao nome do criador. Essa receita foi inúmeras vezes reeditada ao longo dos anos — a mais famosa delas, o “Dry Martini 007”, batido e não mexido.

Quem cantou a receita do Martini à la Bond foi, ironicamente, o primeiro vilão a enfrentá-lo no cinema — o satânico Dr. No, interpretado por Joseph Wiseman. Faz exatamente 53 anos. No filme, Bond visita o doutor em sua morada e este oferece uma bebida ao agente secreto, dando a entender que conhecia seu gosto em detalhes: “Um Dry Martini com casca de limão, batido, não mexido?” Bond pergunta: “Vodca?” Ao que o doutor responde: “É claro”. Este momento mudou a forma de se fazer Martinis pelo mundo, agregando ao drink uma dose de vodca russa — e chacoalhando os ingredientes numa coqueteleira, não mais mexendo-os no copo misturador com a colher bailarina. A nova fórmula fez sucesso imediato e arrastou consigo a vodca Smirnoff, que investiu no filme com merchandising e product placement — uma parceria se manteria por pelo menos 40 anos.

Um Martini é ciência. Existe uma patrulha técnica em torno do drink. Parece que, na receita, tão essencial quanto o etanol é uma dose de arrogância. Ernest Hemingway tem uma frase em que brinca com a infinidade de fórmulas para se conceber um Martini: “Se um dia você se perder na selva africana, não se desespere. Sente-se sobre uma pedra e comece a preparar um Dry Martini. Em menos de cinco minutos aparecerá alguém dizendo que a dosagem está errada.” Mesmo na franquia 007, a bebida tem versões variadas. Em "Cassino Royale", estreia de Daniel Craig no papel, Bond pede ao barman do cassino “três doses de Gordon’s, uma de vodca, meia de Kina Lillet, batido e servido com gelo e uma raspa fina de casca de limão”. Se você leu Ian Fleming, criador do personagem, não estranhou a nova fórmula: era, sem tirar nem pôr, o Dry Martini descrito no primeiro livro sobre Bond, em 1953.

Entre as discussões mais ferozes que o ser humano já travou, certamente figuram qual era o melhor Beatle, Messi ou Cristiano Ronaldo, Apple vs. Android e quem foi o melhor 007. Se as preferências variam, os números não mentem. Messi foi eleito mais vezes o melhor jogador do mundo, o iOS trava menos e Pierce Brosnan viveu o James Bond que mais matou, conquistou mulheres e pediu Martinis. Nada a dizer quanto ao melhor Beatle.

De volta ao mundo real, o refino de um Martini passa por impor ao bebedor uma sensitividade apurada no paladar. Os detalhes importam. O copo tem que ser resfriado antes de receber a infusão, que não pode vir acompanhada de uma pedra de gelo. Nas variações com limão, apenas uma espremida é suficiente. Mesmo o vermute, um ingrediente chave, deve ser quase invisível — apenas três gotas, em média — o que já lhe rendeu o apelido de “drink homeopático”. Há uma legião de descrentes que atribuem todos esses detalhes às frescuras da high society, exatamente como Martini di Taggia planejou ser para impressionar o magnata Rockefeller. A suposta falta de graça e gosto também cativou outras grandes personalidades do século XX, como Winston Churchill e Truman Capote.

Não se pode negar que, balela ou não, as características do Martini conferem um estilo diferenciado ao copo. É um drink que não se toma à toa. Então, não esqueça: se pedir um Dry Martini na festa de fim de ano do trabalho, formatura da faculdade ou na balada, está permitido nem se lembrar deste texto, mas faça pose.

Matéria escrita e ilustrada por Nícollas Witzel. Revisão por João Brizzi.

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Nicollas Witzel
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Repórter do jornal O Globo e editor da @RevistaPoleiro. Aproveite enquanto o sonho é grátis