The Lobster(2015)

Um filme sobre amor (contém Spoilers)

Joel Schutz
Revista Ponga
12 min readAug 26, 2016

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The Lobster(divulgação)

Se mesmo após ler o aviso no título de que este texto contém spoilers sobre o filme continuou a ler o texto eu vou ser obrigado a reiterar o aviso. Assista o filme antes de ler este ou qualquer texto sobre o filme, o ponto principal do filme é a sua história e suas metáforas, asseguro que qualquer spoiler pode estragar parte ou toda a experiência do filme.

Se já assistiu ao filme com certeza já está a par da história e das metáforas que ele contém, porém vou fazer uma pequena recapitulação do plot para que tudo fique fresco na memória:

The Lobster se passa em uma sociedade distopica onde ser solteiro é um crime punido com a transformação das pessoas em animais. Aqueles que ficarem solteiros por algum motivo ou que não conseguirem encontrar um parceiro até certa idade são levados para um hotel onde devem encontrar um parceiro ou serão transformados em animais.
Dentre as atividades desse hotel estão esportes, bailes, jantares, apresentações sobre como a vida a dois é superior a diva solteira e caçadas diárias de outros solteiros que fugiram e se refugiaram na floresta. Quanto mais solteiros as pessoas caçam, mais tempo elas tem para ficar no hotel e encontrar um par. Lembrando que não permitido fumar ou se masturbar no hotel, sujeito a punições severas.

O filme traz uma alegoria clara sobre o amor que ronda o nosso imaginário, levando ao exagero em muitos sentidos, mas na maioria das vezes nos levando a refletir no absurdo e principalmente a crueldade desse imaginário. Perceba que imagens e idéias do filme que parecem únicas ao filme são de fato alegorias do que nós imaginamos que seja um par perfeito ou a vida de solteiro.

The Lobster de Yorgos Lanthimos

O Hotel

O primeiro lugar que conhecemos é o hotel para onde os solteiros são levados e nessa primeiras cenas nós já percebemos que a coisa é bem séria. Descobrimos que o cachorro que David leva consigo é de fato seu irmão que foi transformado, que os solteiros fugitivos são caçados como animais e que variadas torturas são infringidas nas pessoas para que elas “deixem de ser solteiras”.

Isso se trata do primeiro ponto sobre a solidão que imaginamos, que a solidão é algo ruim, que estar só é de fato a pior coisa que pode nos acontecer. Além disso, que a solidão é inútil a sociedade, que é preferível aproveitar essas pessoas como animais que solteiros. Isso é bastante particular nosso, de olhar o solitário como alguém em dor, que precisa desesperadamente de ajuda para encontrar um cara metade. Mas também como alguém que não tem lugar na sociedade, um outsider. Olhar para alguém só ou principalmente para si mesmo só é olhar para alguém que não foi capaz de seguir o rumo normal das coisas.

Vemos também que atividades como fumar e se masturbar, ações de prazer totalmente pessoal, são condenadas assim como nós as condenamos. Não digo literalmente, mas a idéia de alguém ter prazer sozinho, seja morando sozinho, tendo planos sozinho, tendo sexo sozinho, nós apavoram e as condenamos. Masturbar-se pode ser um bom exemplo, de fato falamos que é saudável se tocar com certa frequência é natural, mas imaginar alguém que prefere a masturbação ao sexo nos é estranho, nos soa como algo depravado, digno de alguém mergulhado profundamente na sua própria solidão. Quando trazemos holofote para nós mesmo a idéia ainda fica mais clara, quantos de nós se sentem mal com a idéia de ter a masturbação como única forma de prazer sexual? Ou ao se masturbar ansiamos por substituir essa atividade por sexo com outra pessoa, não apenas porque nos parece mais prazeiroso mas também nos parece mais certo?

E talvez o ponto que mais me aterroriza seja a idéia de que o estar só é resultado do “não tentar o suficiente”, tendo que ser lembrados a todo momento que ser solteiro é ruim e que ter um parceiro é bom, como se isso não fosse algo que já estivesse impresso em nossas mentes. Essa constante lembrança na nossa sociedade toma uma forma no filme muito próxima da nossa, tortura, física e psicológica. Seja ficar preso em um hotel, o medo de ser transformado em um animal, ter um dos braços preso as costas, seus parentes questionarem sobre sua vida amorosa, ou seus amigos de colégio enviando convites para o casamento deles endereçado “Fulano e companheiro”, todas são formas, até bastante brandas, de reafirmar que você é solteiro e de que isso não é bom. Além é claro de tentar de alguma forma te empurrar para o caminho “certo”, já que você não parece se esforçar nesse sentido, mas obviamente as coisas não são assim tão simples.

O hotel também representa, devo notar, aquele curto espaço que imaginamos ser possível de encontrar um par antes de passar o resto das nossa vidas sós. Mas acredito que isso esteja bastante claro nesse momento

The Lobster de Yorgos Lanthimos

A Caçada

O segundo lugar que conhecemos é a floresta onde a caçada acontece, não por acaso essa cena ocorre logo em seguida do baile onde os solteiros podem se conhecer e dançar uns com os outros. Você deve se lembrar que quando David se levanta para convidar a moça com sangramento no nariz para dançar o cena fica lenta e dramática, como se aquele simples gesto de convidar alguém para dançar fosse um grande feito e de fato nesse mundo filme isso é.

Depois de entender o que se passa no filme deve ter imaginado também que sair dali não é algo tão difícil, basta encontrar alguém que não pareça ruim e se juntar a ela. Mas devo lembrar que o filme é uma alegoria do que imaginamos do amor e não é assim que imaginamos o amor. Imaginamos uma vida com alguém que compartilhamos gostos, prazeres, opiniões, dores, passados, não uma pessoa qualquer que calhou de querer casar comigo. O filme passa isso no sentido de que as pessoas precisam encontrar outras com características “compatíveis”, que também tenham sangramento no nariz ou que dividam da mesma indiferença e crueldade frente ao mundo. Se juntar a outra pessoa fingindo alguma característica é um crime tão duro quanto ser solteiro, digno de ser transformado em um animal muito ruim.

Mas isso não nos parece familiar, claramente é. Quando encontramos casais sempre estamos atrás daquela grande história sobre como eles se completam e amam fazer certa coisa juntos ou como eles são parecidos em um aspecto ou outro, caso contrário pareceria impossível que esse casal pudesse se formar. O próprio Tinder sabe muito bem disso quando abaixo da descrição da pessoa está uma lista de amigos e curtidas em comum. E de fato gostamos de pontuar isso também, gostamos de pontuar como é estranho e anormal que pessoas tão diferentes se casaram. Igualmente comum é sofrer um termino chorando e repetindo frases como: “Nós éramos tão parecidos”, “ela era a mulher da minha vida” ou “Nós parecíamos feitos um para o outro”. Nem me deixe chegar no ponto de fingir ser compatível com a outra pessoa, falsos, traidores e interesseiros são alguns dos nomes que damos a essas pessoas. Mas assim como no filme isso é extremamente comum, principalmente entre aqueles que temem fortemente a solidão. Buscar se interessar pelas mesmas coisas que a outra pessoa, vascular os cantos do facebook de alguém na busca de alguma coisa em comum a dividir ou até mesmo quando fingimos estar muito interessados em algo algo que a pessoa diz ou mostra numa tentativa de naquela coisa criar uma conexão. Parece horrível fazer qualquer uma dessas coisas, mas já parou para pensar quão raras são as vezes permitimos que alguém se aproxime de nós sem nenhuma garantia de que há algo que ambos gostem, ou quantas vezes nos arriscamos a fazer alguma atividade com alguém que nós ou ela não goste?

A caçada é uma alegoria de nós aterrorizamos uns aos outros com a idéia de como é ruim ser solitário. O alívio para a nossa dor como solitários é dizer para os outros solitários que nós estamos melhores que eles. Eu sei que isso é uma piada de stand-up que eu mesmo já ouvi uma centena de vezes, mas já viu em algum site de relacionamento alguém escrever na sua descrição “estou desesperado, por favor alguém se case comigo”? Mesmo sabendo que boa parte das pessoas ali está de fato aterrorizada com a idéia de passar o resto das suas vidas sozinhos, ninguém escreve isso porque é importante mostrar que você ainda não desistiu, que você ainda está com esperanças de encontrar alguém e vai encontrar a todo custo. Pense também que todos nós conhecemos ou já pesquisamos pelo menos uma dúzia de formas de encontrar pessoas para nos completar, mas pouquíssimos ou nenhum lugar onde seja ok ser solteiro pelo resto da vida, que seja um grupo de ajuda que possamos contar a experiência que é viver sozinho e lidar com isso. Claro que conhecemos alguns lugares que ninguém vai ter apontar o dedo por ser solteiro, mas é bem comum que eles tenham um formato bem peculiar.

A floresta

Antes de comentar sobre a floresta eu acho interessante comentar sobre a cena em que David “mata” a sua recém esposa. Essa cena retrata uma forma como nós lidamos com os nossos términos, muito comum até. Raramente olhamos para a pessoa que nós separamos, principalmente se essa pessoa nos machuca de alguma forma, como alguém que vai levar a sua vida em frente e eventualmente encontrar outra pessoa, nós pensamos nessa pessoa como alguém que ira sofrer e ficar sozinha. Perceba que David transforma a mulher não por ela ser má, mas por ela ter matado o seu irmão, seu plano inicial é torturá-la e matá-la como ela fez com seu irmão, como ela fez com seus sentimentos. É uma forma de lidar com um termino que nós é tão comum mas que de fato é bastante cruel e egoísta. Queremos que a pessoa sofra tanto ou mais que nós, não que encontre alguém que lhe complete, pois esse é o nosso imaginário, é muito menos doloroso pensar que a outra pessoa jamais encontrou alguém que ficar olhando as fotos dela no facebook com um novo namorado ou seguindo a sua vida feliz ou em uma caçada nos apontamos o quanto nós sofremos estando sós.

A floresta é o quarta lugar que conhecemos, lá conhecemos os solteiros que fugiram e decidiram viver como solteiros. O que poderia ser um refugio a ordem vigente é na verdade uma reiteração daquilo tudo, apenas de uma outra perspectiva. Nesse lugar é permitido fumar e se masturbar, mas não é permitido interagir romanticamente com outra pessoa ou fazer qualquer coisa em conjunto com outra pessoa. Você deve caçar sozinho, dormir sozinho, sobreviver sozinho. Mas então porque se juntar em um grupo se tudo que vai fazer é sozinho? Não se trata de sobrevivência ali, se trata de seguir as regras de um imaginário, a líder do do grupo está ali pra garantir e reforçar essas regras. Obviamente estamos falando aqui daquela filosofia disseminada de “solteiro feliz”, não de uma pessoa só e feliz.

Umas das primeiras coisas que somos apresentados são as torturas que também estão presentes aqui. Se alguém flertar com outra pessoa elas são obrigadas a beijar seus lábios mutilados, por exemplo. Essas penas são alegorias que o filme trás da forma em que essa filosofia de solteiros ridiculariza e marginaliza as pessoas que eventualmente encontram um par na solteirisse. Como numa balada por exemplo, principalmente entre os homens heteros, dizer que gosta de alguém que você conheceu na balada é algo a ser sacaneado, a balada não deveria ser o lugar de se encontrar um par, mas de buscar prazer pessoal, pegar o máximo possível, buscar trazer pra si o prazer e nunca dividir momentos com alguém.

Parte importante de ser solteiro no filme é invadir a vida dos casais para mostrar o quanto eles são falsos e infelizes, mesmo que para eles isso seja irrelevante. Assim como alguns solteiros vão a caça mostrar o quanto eles são superiores por ainda tentarem arrumar um par, os solteiros convictos torturam os casais mostrando o quanto suas vidas são infelizes, falsas, etc. Veja isso pelos discursos que somos bombardeados pelos nossos colegas solteiros sempre contando quantos pegaram na balada, postando fotos sempre felizes naqueles lugares e sempre tentando nos provar do contrário quando dizemos que baladas são lugares quentes, barulhentos, cheio de gente bêbada e música ruim. Perceba que a única música que os solteiros podem escutar é rave, sozinhos, sem interagir com os outros no filme, se divertindo sozinhos.

Uma alegoria interessante que pode passar despercebida são os casais que eles formam para entrar na cidade. Não só o fato de que eles precisam se mostrar em pares nesse lugar e o fato de que pessoas são o tempo todo inspecionadas para saber se ela de fato são casais reais ou duplas de solteiros, mas a própria idéia de um casal falso. Temos um nome pra isso por aqui, o “nada sério”. Quando pessoas que seguem essa filosofia começam a se relacionar e formar casais é importante notar que o fato de se encontrar com frequência e dividir certas coisas juntos não significa formar um casal, mas apenas um prazer pessoal, não pode se tratar de um casal de verdade. Podendo chegar ao discurso de que certas pessoas, solteiras no caso, não são para namorar, só pra ficar, curtir, ter uma relação “nada séria”.

O que de fato é uma grande hipocrisia e o filme mostra isso. A união desses casais fake serve para que eles possam usufruir das comodidades e o “paraíso” que é a vida de casal, sem dizer que são um casal. Seja comer bolo confeitado ou ficar agarradinho no cinema comendo pipoca, casais de solteiros tem os mesmos privilégios que os casais reais ou os casais fingidos, mas a cada um desses classificamos enquanto bons, ruins, falsos e verdadeiros, tudo obviamente pelo fato de estarmos seguindo um imaginário do que é o amor.

The Lobster de Yorgos Lanthimos

O casal

A ultima coisa que conhecemos no filme é de fato o casal que o David forma com a mulher míope. Eles são alegoria de nós, pessoas que entendemos o filme e achamos que ambos os caminhos que os solteiros podem seguir são péssimos.

Esse casal ele se conhece exatamente nesse mundo dos solteiros e percebem que são de fato muito parecidos, ambos são míopes, e decidem que vão fugir juntos, afinal nenhum solteiro pode saber que eles estão se relacionando. Ou melhor dizendo, quando eles vão pra cidade e formam um casal “nada sério” eles acabam sendo sérios demais na opinião da líder dos solteiros. Interessante notar que quando David flerta com a moça pela primeira vez na casa dos pais da Líder eles são elogiados por fingir muito bem, mas depois que eles começam a se pegar loucamente na segunda visita a Líder percebe que o que eles estavam fingindo na verdade era que eles de fato fossem um casal falso. Confuso? Espera ai que ainda complica.

Porque a Líder não mata os dois quando descobre que eles na verdade são um casal, ora, tenho de explicar de novo que esse filme é uma alegoria da nossa idéia de amor. A líder de fato lembra o fato de que lembra ao David que a moça não é “girlfriend material” cegando ela, tirando aquela única coisa que tornava eles parecidos e “compatíveis”. E por um momento ele entra nessa, acha que não ia dar certo, busca outras coisas que talvez eles fossem parecidos, mas não encontra nada. Mas eu e você sabemos que eles se amam e que não importa o fato de não serem compatíveis, o que importa é o amor e o afeto entre as pessoas. Então eles enterram a Líder e toda a filosofia dela decidem fugir de qualquer jeito, se escondendo da filosofia dos solteiros e da ordem geral do que é um casal perfeito, como é explicado naquela cena aparentemente inútil em que eles se escondem do ônibus na estrada, eles caminham em direção a um novo caminho, uma nova forma de ver o amor!

No restaurante ele então decide que vai furar os olhos e ficar cego como a moça e o filme acaba aí, sem sabermos se ele de fato o fez. Essa é a grande crítica do filme ao espectador, ele critica toda a forma como vemos o amor, a companhia e a solidão a um ponto que nós passamos a pensar algo deferente. Mas antes de o filme acabar ele coloca uma questão pra pensarmos enquanto mudamos nossas visões sobre o amor. Para se juntar a moça David precisa mudar quem ele é, ele precisa ter que essa moça tão diferente daquela pela qual ele se apaixonou agora tem defeitos que mudam toda a forma deles se relacionarem, ele precisa aceitar nele mesmo essa nova moça. Ele aceita ela como ela é?

Nós, que olhamos essa forma engessada e cruel de ver o amor como algo errado, mas estamos dispostos a nos deixar moldar pelas pessoas em coisas diferentes, buscar interesses comuns e entender os defeitos de cada um. Mas aí que a coisa fica difícil, estamos dispostos a abrir mão de nós mesmos e aceitar os outros? Você está disposto a aceitar os outros como eles são?

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Joel Schutz
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Desenvolvedor Python; Metido a entendedor; Cronista mal-informado e cozinheiro nas horas vagas.