CAROLINA MARIA DE JESUS, ENTRELINHAS: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE LITERATURA MARGINAL, IDENTIDADE, ALTERIDADE E QUARTO DE DESPEJO

Resumo: Neste trabalho, apresentamos algumas grandes considerações acerca da literatura negra e da literatura marginal por meio da obra Quarto de Despejo: Diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus (1960). O objetivo é refletir a dinâmica de ser escritor(a) negro(a) no Brasil e o processo de apagamento e silenciamento que permeou as personagens da literatura negra brasileira. Além disso, o trabalho aponta para algumas reflexões sobre o espaço periférico e as relações simbólicas presentes no cotidiano de miséria, fome, violência e marginalização, apresentado em forma de denúncia, num diário de uma escritora favelada no Brasil, considerando as peculiaridades sociais, bem como a própria integração dos sujeitos da favela, registrando a importância de refletir as questões identitárias, étnicas, culturais e sociais, presentes na singularidade da alteridade dos sujeitos.

Quem nunca se emocionou ao ler um romance, um conto ou uma poesia? Quem não se animou com um livro de ficção, aventura, história, magia, ou, um simples diário? Realmente, há no Brasil tantas obras que podem nos inspirar e nos oferecer uma infinidade de oportunidades de aprendizado, reflexão e diversão. Isso, todo mundo sabe. Mas a questão aqui é: o que é ser escritor(a) num país, que, historicamente, não é muito conhecido pelo gosto pelos livros?

Realmente, enquanto princípio dinâmico, falar em nomes de escritores brasileiros como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Carlos Drummond Andrade e Clarice Lispector, não causa espanto algum, considerando que a chamada literatura brasileira oficial ou canônica, ou seja, aquela que corresponde às obras que devem ser consideradas “clássicos”, contemplados pelos currículos escolares, reflete um paradigma da dominação cultural branca, em que as obras são escritas por brancos e, na maioria das vezes, retratam personagens brancos. Todavia, a indagação maior é pensar sobre como é ser um escritor negro num país em que 54% da população é negra.

Paradoxalmente, a desproporcionalidade de autores negros no Brasil é vergonhosa, pois ainda falta muito para que a literatura negra predomine entre obras canônicas e clássicas. O processo de apagamento e silenciamento que permeou (e ainda tenta) impediu a possibilidade da existência de grandes ícones, ou que, simplesmente, ficassem invisíveis aos olhos da população leitora brasileira. Isso se deu pelo simples fato de que a literatura sempre serviu, e ainda serve, como um importante impulsionador de ideias, instrumento na formação de identidades e, na literatura negra, a linguagem representa poder pois constrói uma nova realidade.

É preciso salientar que entendemos como literatura negra a produção literária cujo sujeito da escrita é o próprio negro. Mas, pensar e pontuar autores negros reconhecidos mundialmente pelos seus clássicos, como Lima Barreto e Machado de Assis, é outra questão, considerando tantos outros fatores que estão relacionados a esse reconhecimento, principalmente Machado de Assis, em que a presença de personagens negras na literatura sempre foi mediada, de modo geral, pela necessidade (ou não) de reprodução, nos enredos, estereótipos de “escravos domésticos”, naturalizados, principalmente, em se tratando do cotidiano do Rio de Janeiro, como é o caso das personagens retratadas como “serviçais”, “crias da casa”, das “mulatas hipersexualizadas”, das “amas de leite”, ou de “escravos fugidos”, “moleques fujões”, dos “malandros”, e até dos “negros vitimizados”. Entretanto, todos sempre apresentados com um apagamento da história pessoal do escravizado, enquanto personagem. Além disso, o autor foi constantemente tão “embranquecido” pela mídia e pelas editoras, a ponto de muitas pessoas até hoje duvidarem que era negro.

Sabemos, no entanto, que a representação do negro nas obras brasileiras, nunca mereceu atenção, bem verdade, sequer apareceu durante os três primeiros séculos que sucederam o descobrimento, conforme pontua França (1998). Somente pós Jose de Anchieta, nos escritos de 1584, é que surgem breves notas acerca da presença do africano em solo brasileiro. Nesta vertente, encontramos os escritos do Padre Antônio Vieira até, finalmente, chegar ao baiano Gregório de Matos, com seus versos que mais oferecem a ideia de verdadeiras vitrines de negros, associados, quase sempre, ao aspecto negativo do cotidiano da cidade, o que França (1998) considera como “galeria de tipos negros da poesia colonial”.

No mundo poético de Matos, os negros sempre assumem diferentes facetas, ora “mulatos desavergonhados”, ora associados a “bêbados”, “bruxos” e “feiticeiros”, a “desregramentos sexuais”, ou mesmo, a “um sem-número de outros males, todos descritos com jocosidade, como é o caso das “Mulatinhas da Bahia” e das “prostitutas negras”, como “Annica”, personagem contida em “Obras Poéticas”, vol,II.(1990)

Somente a partir da década de 30 que os negros, gradativamente, foram surgindo na poesia nacional. Podemos afirmar que o marco inicial do surgimento da representatividade negra na literatura se deu em Suspiros Poéticos e Saudades (1836) de Gonçalves Magalhães, no entanto, como a do escravo sofredor, melancólico e saudoso de sua terra. No poema “As saudades”, Magalhães (1836: 132–135) retrata o padecimento do escravo que, retirado violentamente de sua terra, recorda o passado e condena a ganância do homem.

Avançando na cronologia, podemos dizer que, entre Magalhães e Castro Alves, muitos outros autores escreveram sobre o negro e seus descendentes em solo nacional, como é o caso do poeta maranhense Manuel Odorico Mendes, que introduz em Hino à tarde (1844) o mesmo tipo de negro melancólico de Magalhães; Gonçalves Dias que apresenta em A Escrava (1846) a história de uma negra melancólica do Congo; e Teixeira e Sousa, que apresenta o “negro duvidoso” em A Independência do Brasil (1847). Além destes, podemos citar José Bonifácio de Andrada e Silva, que, em 1850, publica dois poemas dedicados à temática negra “Calabar”, que introduz o herói homônimo, honrado e amante da liberdade e “Saudades do Escravo”, em que o negro escravizado “se recusa a ser submetido ao cativeiro” e, ao ser torturado, “evade o espirito à saudosa África”; Joaquim Norberto de Sousa e Silva que torna público “Os Palmares”, poema em que Zumbi, tendo sua amada violada por um senhor, sugere vingança e acaba por fundar o quilombo de Palmares.

Em 1852, Bernardo Guimarães apresenta ao mundo “Isaura”, em 1853, Trajano Galvão de Carvalho, publica “A Crioula”, pequena composição em que a negra narra as vantagens de sua relação com o feitor, em 1854, Galvão narra a trágica história da “negra Cesarina”, castigada até a morte por não ceder aos assédios do senhor, da “negra Nuranjan”, escrava melancólica, cansada de ser cativa e do “negro foragido” que se recusa ao cativeiro.

Enfim, todas as composições até aqui trazem à baila os tipos conhecidos: melancolia, tristeza, assédios, saudade, foragidos, cativos e mortos. Assim, tudo que se refere ao universo negro é retratado de forma machista, preconceituosa, eurocêntrica, valorizando o branco e o ocidental. Na década de 60 é que se consolida a presença do negro na poesia nacional, com a estreia do baiano Castro Alves (1847–1871). Segundo Oliveira, (2007):

desde os primeiros versos, os denominados “Colegiais”, escritos por volta dos 14 anos e recitados no Ginásio Baiano (1861), até os derradeiros, de 1971, Alves se preocupou em conduzir a denúncia dos desmandos da classe senhorial brasileira, a desditosa condição em que se encontravam os oprimidos, além de despertar consciências e engrossar as fileiras dos que defendiam a Abolição e a República, movido por relatos, experiências visíveis sobre ações de resistência ao cativeiro, fugas massivas e espraiadas, assassinatos dos senhores, revoltas individuais e coletivas, organização de quilombos, enfim, todo um imaginário que se forma em torno da figura empírica do escritor e que de alguma forma migra para os textos.

OLIVEIRA, (2007. p. 42)

No entanto, ainda não é possível identificar nesta narrativa literária (e em outras atuais) mudanças de posicionamentos relacionados a aspectos que colaboram para a construção de discursos que abrangem não somente e, até então, a hegemonia masculina, branca e ocidental, mas também na perspectiva daqueles que sempre estiveram à margem da cultura dominante, ou seja, na perspectiva do negro enquanto sujeito de sua própria escritura.

Proença Filho (2004), sugere que a ênfase, nesses casos, recai sempre no ato vingativo, nunca no problema central, que seria a luta pela liberdade ou a referência a posicionamentos coletivos, principalmente em se tratando de uma época em que Palmares e outros quilombos já eram realidades. Assim, o que nos é apresentado nessas narrativas, enquanto protagonismo negro, sempre esteve direcionado a “um cortejo de retórica negativizada, fundamentalmente contraditória, deliberadamente histórica e inevitavelmente política” (HUTCHEON, 1991, p. 19). Corroborando com essa ideia, Ferreira & Silva (2020) pontua que:

a presença do negro na literatura não escapa ao tratamento marginalizador que, desde sempre, marca sua etnia no processo de construção da nossa sociedade, isso porque o negro, em geral, integra mais as narrativas que tratam da escravidão e menos sobre o próprio negro. (FERREIRA & SILVA, 2020)

Desta forma, parte do repertório de leitura de vários autores brasileiros também se enveredam nesta linha de seguimento e, como exemplo, citamos as obras de José de Alencar: O demônio familiar (1857), Mãe (1860) e Lucíola (1862), e posteriormente, a publicação de Joaquim Manoel de Macedo, As vítimas algozes (1869), O mulato (1881), de Aluísio Azevedo, O escravocrata (1884), de Artur Azevedo e Urbano Duarte e O bom crioulo (1895), de Adolfo Caminha, entre tantos outros autores, inclusive esta especificidade literária também aparece na configuração das mulatas de Jorge Amado. A propósito, destacamos que a ficção do excepcional romancista baiano contribui fortemente para a visão simpática e valorizadora de inúmeros traços da presença das manifestações ligadas ao negro na cultura brasileira, embora não consiga escapar das armadilhas do estereótipo. (PROENÇA FILHO, 2004)

É importante salientar as limitações do presente trabalho, no qual não se pretende fazer uma análise exaustiva, aprofundada e conclusiva dos fatos aqui apresentados, nem pretendemos retratar dados e informações suficientes para fundamentar conclusões teóricas. O objetivo é somente refletir sobre alguns discursos apontados nas narrativas literárias e sua importância no que tange ao povo negro.

Assim, destacamos também que, embora o conceito de literatura negra tenha aparecido no século XX, a produção literária feita por negros e que abordava a questão negra existe no Brasil esteve presente desde o século XIX, mesmo assim, poucos autores são realmente lembrados, ou conhecidos, como é o caso do poeta, escritor advogado autodidata, o autor baiano Luiz Gama (1830–1882) e seus pseudônimos afro, Getúlio e Barrabaz, e de Maria Firmina dos Reis (1822–1917), escritora maranhense, considerada a primeira romancista negra do Brasil, que, segundo D´Angelo, (2017), apresentou em sua literatura, escravos nobres e generosos, em pé de igualdade com os brancos.

Gostaríamos de destacar , pois, Lobivar Matos (1936) e a sua “Mulata Isaura” que segundo Ferreira & Silva(2020), acentua a questão da sexualidade da mulher negra associada ao adjetivo “mulata”, simbolizando o retrato do Brasil, exportado para o mundo, e denunciando o “canibalismo amoroso” em relação à mulher negra. Conforme pontua Ferreira & Silva (2020):

Em Lobivar Matos (1936), a “voz” do discurso adquire também uma atitude compromissada com a construção do seu próprio percurso e imagem. A poesia de Lobivar Matos traz uma inovação temática e formal, pois introduz à poesia regional, dentre outros anseios, o afã de legitimar a voz do negro veiculando ao lugar social ocupado no Brasil. Dessa forma, podemos destacar a presença da mulata Isaura, personagem-emblema das mulheres negras do poema lobivariano, que faz alusão à “escrava Isaura”, protagonista do romance de Bernardo Guimarães, de 1875. (FERREIRA & SILVA, 2020)

Ressaltamos que é evidente que existem muito mais escritores(as) que igualmente merecem atenção e espaço no mundo literário brasileiro, ainda branco e elitista, mas reflexões introdutórias como essas são importantes para iniciarmos nossas análises sobre a importância de se conhecer a literatura negra contemporânea, e principalmente, os escritos de Carolina Maria de Jesus (1914–1977).

Carolina Maria de Jesus nasceu na cidade de Sacramento, em Minas Gerais, em 1914 e, neta de escravizados e filha de uma lavadeira analfabeta, cresceu em uma família com mais sete irmãos, sob dois fatores: a condição negra como objeto marginalizado e o ser negra como sujeito subalterno. Incentivada por Maria Leite Monteiro de Barros, uma das freguesas de sua mãe, Carolina frequentou a escola, e aos sete anos de idade, ingressou no Colégio Alan Kardec, onde cursou somente a primeira e a segunda série do ensino fundamental, mas desenvolveu o gosto pela leitura e escrita, apesar de pouco tempo na escola.

Em 1924, em busca de oportunidades, sua família precisou mudar para Lageado, e somente retornou para Sacramento três anos depois. Ainda em Sacramento, Carolina e sua mãe foram acusadas de roubarem, o que levou sua mãe à prisão, onde ficou até que descobrissem que não houve roubo algum. No entanto, o acontecido foi marcante para Carolina, que largou tudo e mudou-se para Franca, São Paulo, em 1930. Aos 23 anos, perde a sua mãe e passa a trabalhar como faxineira na Santa Casa de Franca e, mais tarde, começou a trabalhar na casa do médico Dr. Euryclides de Jesus Zerbini, onde passava suas folgas na biblioteca da casa. Depois de ficar grávida, não pôde mais trabalhar na casa e, então, passou a viver de pegar papel na rua, separando os melhores papéis para a sua escrita diária.

Em 1948 mudou para a favela do Canindé. Nos anos seguintes, Carolina, durante a noite, passa a trabalhar como catadora de papel para se sustentar e sustentar seus três filhos, todos de relacionamentos diferentes. Carolina Maria de Jesus não somente catava os papeis, ela lia tudo que recolhia e guardava as revistas que encontrava. Estava sempre escrevendo o seu dia a dia na favela do Canindé, Zona Norte de São Paulo, e a partir da subjetividade de suas vivências e de seu ponto de vista, tece a sua narrativa classificada como experiência vivenciada ou literatura negra de testemunho, pois caracteriza-se não só pela descrição intimista, mas também por um forte tom de denúncia

Em 1941, passando a sonhar em ser escritora, Carolina vai até a redação do jornal Folha da Manhã com um poema que escreveu em louvor a Getúlio Vargas, e, para sua surpresa, tem seu poema e a sua foto publicada no jornal em 24 de fevereiro deste mesmo ano. Apelidada de “A Poetisa Negra”, continuou levando regularmente os seus poemas para a redação do jornal e passou a ser cada vez mais admirada pelos leitores.

. Carolina, assim, escreveu todos os dias sobre sua realidade na favela. Mas foi somente em 1958, que o repórter do jornal Folha da Noite, o jornalista Audálio Dantas, designado para fazer uma reportagem sobre a favela do Canindé, foi à favela para fazer uma matéria. Nesse momento, por acaso, em uma das casas visitadas encontrou Carolina que lhe mostrou o seu diário, surpreendendo o repórter, que buscava falar sobre a favela, e quando teve acesso aos papéis de diário de Carolina, percebeu que já tinha tudo e muito mais o que falar sobre a localidade e resolveu auxiliar na publicação de seus diários.

Em 19 de maio de 1958, Audálio publicou parte do texto, e somente em 1960, após grande repercussão, foi finalmente publicado o livro autobiográfico “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, com edição de Audálio Dantas. É importante destacar que só durante a noite de autógrafos foram vendidos 600 livros. Em quatro dias, foram vendidas dez mil cópias, em um ano já tinha vendido 100 mil cópias e foi traduzida em 14 idiomas.

Apesar de Carolina não ter frequentado muito a escola, o conhecimento que adquiriu foi o que lhe possibilitou expressar-se enquanto mulher, negra, mãe, solteira e moradora da favela, gerando um livro que foi a alavanca de sua vida, pois a obra relata as políticas de desigualdades de classes produzidas pelo escravismo contemporâneo e pelo capitalismo racista, de forma simples e verdadeira, pois relata como a autora sobrevivia à fome ao lado de seus filhos, e como sobrevivia o círculo vicioso do racismo institucionalizado, entranhado na prática até então.

Em forma de diário, Carolina conta com relatos de seu dia a dia, como é a vida na favela, abordando temáticas que, ainda hoje, são muito pertinentes. De maneira explícita, ainda que com um tom informal, quase naturalizando o absurdo, Carolina aborda temas graves como a fome e a falta de dignidade. Trata-se, de relato corriqueiro, repetitivo e sistematizado de uma realidade social que ainda hoje, faz parte do cotidiano de miséria, fome, violência e marginalização, enfim, na atual condição de vida de muitas outras mulheres nas favelas do Brasil.

No entanto, conforme pontua Nascimento (2009), as condições na periferia não são as mesmas, ou seja, nem todas as periferias não possuem a mesma realidade. Porém, a relativização acadêmica de centro e periferia não impede uma diferenciação nítida entre estas, e por isso mesmo o que consideramos como “centro” é um “ espaço de moradia das classes médias e altas, de melhores condições de vida e de concentração das práticas culturais ‘cultas’ e ‘legitimadas’.” (NASCIMENTO, 2009, p. 153) e difere da “periferia” por ser vista como um “espaço da carência, que reúne a população marginalizada social e culturalmente.” (NASCIMENTO, 2009, p. 153 e 154).

Desta forma, nesse texto, a voz da autora marginal valoriza os aspectos unos e singulares que só são possíveis de serem apresentados, por serem vividos por ela mesma, neste espaço e período histórico. Assim, por meio de sua “escrita de contestação”, Carolina, no decurso de um período, revela, em forma de testemunho, a hegemonia cultural excludente, ao passo que denuncia a realidade sociopolítica brasileira, através de sua literatura marginal.

Salientamos que a literatura marginal (NASCIMENTO, 2009) é um movimento literário brasileiro que surgiu nas periferias, principalmente, urbanas; e que os autores dessa literatura são provenientes desses espaços e relatam em suas narrativas as experiências de viver à “margem” da sociedade. Assim, as temáticas da literatura marginal incluem os mais diversos problemas sociais como a violência, a ausência do Estado, a truculência da polícia, as relações que envolvem o trabalho, e o próprio espaço social. Essa literatura, portanto, surge como forma de afirmação identitária, cultural e política da periferia feita pelos sujeitos que estão inseridos nesses espaços.

Destacamos aqui que, na narrativa literária de Carolina, este espaço periférico adquire um caráter de poético ao estabelecer relações simbólicas com as ações que envolvem os dramas, sofrimentos e aspirações da personagem: “[…] eu cato papel, mas não gosto. Então, eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando” (JESUS, 2013, p. 29). Assim, o mundo simbólico da autora transcende o material, conforme sugere as diretrizes de Jung. Segundo Jung (1949/1991), o símbolo é a melhor expressão possível de algo relativamente desconhecido, pois ele representa por imagens, experiências e vivências que incluem aspectos conscientes e inconscientes, isto é, desconhecidas da própria consciência (SERBENA, 2010).

E é nesse lugar simbólico chamado pela autora de “meu barracão” ou “favela”, porque “[…]não acho jeito de dizer cheguei em casa. Casa é casa. Barracão é barracão” (JESUS, 2013, p. 47), que a personagem, numa situação de subordinação, acredita poder “mudar o mundo”, e como “[…] o pobre não repousa. Não tem o previlegio de gosar descanço” (JESUS, 2013, p. 12), Carolina segue “[…] Levantei as 7 horas. Alegre e contente” (JESUS, 2013, p. 12), “[…] preparei a refeição matinal. Cada filho prefere uma coisa. A Vera, mingau de farinha de trigo torrada. O João José, café puro. O José Carlos, leite branco, E eu, mingua de aveia” (JESUS, 2013, p. 12).

Gramsci (1978) afirma que é muito comum um determinado grupo social, que está numa situação de subordinação, adote a concepção do mundo do grupo em condição superior, mesmo que esteja em contradição com a sua realidade prática. Assim, a autora segue pontuando “[…] Preparei Toddy para as crianças, arrumei os leitos, puis feijão no fogo, varri o barraco. Chamei o senhor Ireno Venancio para fazer um balanço para os meninos” (JESUS, 2013, p. 18).

O lugar de fala da autora, assim como sua condição subordinada, feminina e étnica são de extrema importância para se refletir os papéis exercidos pela narrativa no cotidiano de atribulações que documenta: “[…]Deixei as crianças brincando no quintal. Tinha muito papel. Trabalhei depressa pensando que aquelas bestas humanas são capás de invadir o meu barracão e maltratar meus filhos. (JESUS, 2013, p. 19).

Nesse contexto, Gramsci (1978c) ressalta a importância do partido político no mundo moderno, pois, segundo ele, no partido, os elementos de um grupo social econômico superam o momento do seu desenvolvimento histórico e se tornam agentes de atividades gerais, de caráter nacional e internacional. O partido político é visto por ele como o moderno príncipe de Maquiavel, responsável pela formação de uma vontade coletiva. No entanto, diferentemente do que propôs Maquiavel, o príncipe do mundo moderno não pode ser um indivíduo concreto, mas um elemento complexo da sociedade que manifeste a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e fundamentada parcialmente na ação.

Observamos que, na narrativa da autora, o organismo complexo, o partido político, que segundo Gramsci (1978), seria determinado pelo desenvolvimento histórico, enquanto “vontade coletiva” tendendo a ações universais e totais, não cumpre seu papel. Segundo Jesus (2013, p.38):

[…] Quando um politico diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na politica para melhorar as nossas condições de vida pedindo nosso voto prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados. Com um orgulho que fere nossa sensibilidade. […] os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido.

(JESUS, 2013, p.38–39).

E nessa tessitura dos significados Carolina segue seu devaneio entre o possível e o imaginário: “[…] E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual — a fome!” (JESUS, 2013, p.32).

Assim, nessa literatura marginal, o mundo real é absorvido pelo mundo imaginário, e exatamente como propôs Barcherlard (2001) a imaginação da autora é capaz de fazer criar aquilo que “vê”, como por exemplo na descrição da cidade em que mora: “[…] eu classifico São Paulo assim: o Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos” (JESUS, 2013, p. 32). Gramsci (1978) ressalta que a concepção do mundo imposta mecanicamente pelo ambiente exterior é desprovida de consciência crítica e coerência, e é desagregada e ocasional.

Dessa adoção acrítica de uma nova concepção de mundo resulta um contraste entre o pensar e o agir: “[…] passei uma noite horrível. Sonhei que eu residia numa casa residivel, tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada” (JESUS, 2013, p. 39), e é também da coexistência dessas duas concepções do mundo, que se manifestam nas palavras e ações da personagem “[…] A senhora disse-me que não ia mais comer as coisas do lixo. […] não, meu filho. A democracia está perdendo os seus adeptos (JESUS, 2013, p. 39). Gramsci (1978) conclui, portanto, que “não se pode destacar a filosofia da política; ao contrário, pode-se demonstrar que a escolha e a crítica de uma concepção de mundo são, também elas, fatos políticos” (ALVES, 2010).

Assim, dimensionadas as concepções simbólicas da autora, destacamos que os constantes questionamentos político-sociais presentes no testemunho de Carolina, assim como as denúncias da discriminação social que sofria, por ser pobre e negra, marcam a marginalização em que era submetida e, além da própria “subcondição”, a que era condicionada, a personagem ainda era discriminada por ser mulher, catadora de papel, mãe solteira e escritora.

Outra característica importante da obra Quarto de Despejo (1960) é que Carolina atua como autor-personagem-narrador-onisciente, fazendo ao mesmo tempo da denúncia e do testemunho uma autobiografia. Segundo Vianna(1995):

Seja qual for o estilo, o que pretende é remeter infalivelmente à verdade interior do autor. Assim, a autobiografia, entendida como narrativa em que autor, narrador e personagem são figuras coincidentes, não é certamente um gênero uniforme, sujeito a regras fixas. Contudo, ela supõe realizar certas condições de possibilidade que aparecem, antes de tudo, como condições ideológicas ou culturais: importância da experiência pessoal, oportunidade de oferecê-la ao outro, observando-se rigorosamente os acordos de uma relação pactual. Esse pressuposto, por si só, já mascara a identidade de um “eu” e autoriza o sujeito do discurso a tomar como tema sua existência passada.

(VIANA, 1995, p.16, 17).

A obra de Carolina teve grande repercussão por ser a primeira obra sobre a favela feita por um olhar e um “eu” imanente desse local, o que também trouxe à tona várias discussões sobre a situação das pessoas que ali moravam, discussões essas que não eram conhecidas no contexto dos anos 60: […]hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. (JESUS, 2013, p. 174) e […]o barraco da Aparecida é ponto para reunir os pinguços. Beberam e depois brigaram[…]A aparecida veio dizer que o Joao mandou ela tomar no… (JESUS, 2013, p. 174).

Além disso, a autora apresentou em seus escritos uma espécie de “prisão ao cotidiano” em forma de constante repetição, marcada pela rotina: levantar, pegar água, voltar para casa, cuidar dos filhos, preparar a comida, catar papel. […] Levantei cinco horas pra ir buscar água. Hoje é domingo, as favelas recolhem água mais tarde, Mas eu já habituei-me levantar cedo (JESUS, 2013, p. 26).

Curioso é que em determinando momento do livro a repetição parece incomodar a própria escritora, ao anotar no dia 16 de outubro: “[…] vocês já sabem que eu vou carregar água todos os dias. Agora vou mudar o início da narrativa diurna, isto é, o que ocorre comigo durante o dia” (JESUS, 2014, p. 125).

É importante destacar também na narrativa da autora a questão identitária feita a partir da descrição minuciosa e fragmentada da literatura negra em seu diário: o relato do dia-a-dia torna-se oportunidade de engajamento da autora negra, que consciente da sua negritude, discute na obra a temática da discriminação e do racismo:

Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circo. Eles respondia-me:
— É pena você ser preta.

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo negro mais iducado do que o cabelo branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta.

Um dia, um branco disse-me. Se os pretos tivessem chegado ao mundo depois dos brancos, aí os brancos podiam protestar com razão. Mas, nem o branco nem o preto conhece a sua origem.

O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade representa o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém.

(JESUS, 2014, p. 65).

Percebemos nos escritos da autora o reconhecimento que é negra em várias partes de seu diário, e esse auto-reconhecimento é importante para o debate da questão equivocada da segregação de todas as formas, principalmente por questão da cor da pele, na passagem acima ela questiona o porquê da diferença entre pessoas de cores, se todas serão um dia conduzidas para os mausoléus.

Mas ainda utilizando o diário como arma de denúncia contra o preconceito e a desigualdade social, a autora constrói através do trabalho de tessitura dos significados como em: “[…] eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. (…) Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.” Ou ainda em: “[…]Quando puis a comida o João sorriu. Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia.” (JESUS, 2014, p.43).

Conforme corrobora Coronel (2010), a representação identitária mais forte na obra diz respeito à situação de pobreza. São reiteradas no livro as cenas de privação, de busca desesperada de alimentos no lixo, de desentendimentos com os três filhos em virtude da falta de comida. Desta forma, ainda que tivesse ganhado muito dinheiro, praticamente do dia para a noite, a autora não conseguiu administrar sua fortuna. Enfrentando o preconceito de uma sociedade que, em grande parte, relacionava o seu talento com a figura do jornalista Audálio, homem branco e letrado. Além disso, seus livros posteriores não alcançou o sucesso desejado e nem o lucro que havia feito com sua primeira publicação, chegando, então, a voltar a pegar papel na rua para sobreviver, até sua morte, em 1977.

No entanto, Carolina Maria de Jesus tornou-se uma referência de mulher negra brasileira, um ícone de força por sua história, origem e percurso, e chegou a publicar, além de Quarto de Despejo (1960), as obras: Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963), Provérbios (1963), Obras póstumas, Diário de Bitita (1977), Um Brasil para Brasileiros (1982), Meu Estranho Diário (1996), Antologia Pessoal (1996), Onde Estaes Felicidade (2014) e Meu Sonho é Escrever: contos inéditos e outros escritos (2018). Mas, Quarto de Despejo foi mesmo o primeiro e maior sucesso de Carolina Maria de Jesus.

Enfim, o título do livro é atribuído à imagem que Carolina tem da favela enquanto um quarto de despejo, pois tanto ela quanto tantos outros, que ali habitavam, haviam parado ali por ordem do governo, que recolhia os moradores de rua e os despejava nessas áreas, que, futuramente, viriam a tornar-se as favelas. Percebemos, então, que tão essencial quanto por um livro nas mãos e fazer-se leitor, é descobrir tantas capacidades temos de desenvolvê-lo para que possamos chegar à condição de escritor.

REFERÊNCIAS

ALVES, Ana Rodrigues Cavalcanti. O conceito de hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe. Lua Nova, São Paulo, 80: 71–96, 2010. Disponivel em: https://www.scielo.br/pdf/ln/n80/04.pdf. Acesso: 30 mar 2021

CORONEL , Luciana Paiva. Da margem para o centro: a representação do negro em quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. In: X Encontro Estadual de História. O Brasil no Sul: cruzando fronteiras entre o regional e o nacional , Anpuh/RS, 2010. Disponivel em : http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/resources/anais/9/1279485834_ARQUIVO_TextAnp102_final.pdf. Acesso em 29 mar 2021

D’ANGELO, Helô. Quem foi Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista brasileira. Revista Cult. Editora Bregantini, São Paulo-SP. 10 de novembro de 2017. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/centenario-maria-firmina-dos-reis/. Acesso: 28 mar 2021

FERREIRA, Stael Moura da Paixão. SILVA, Rosangela Villa. Língua, literatura e identidades culturais da fronteira Brasil-Bolívia. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufms.br/bitstream/123456789/3596/1/L%c3%adngua%2c%20literatura%20e%20identidades_BR-BO.pdf. Acesso: 28 mar 2021

FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Imagens do negro na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1998.

HUTCHEON, Linda. A poética do pósmodernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991

OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. A Representação do negro nas poesias de Castro Alves e de [Luiz Silva] Cuti: de objeto a sujeito. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=107870. Acesso: 28 mar 2021.

NASCIMENTO, Erica Peçanha. Vozes Marginais na Literatura. São Paulo: Aeroplano, 2009

PROENÇA FILHO, Domício. A Trajetória do Negro na Literatura Brasileira. Estudos Avançados. vol. 18, nº 50. jan./abr. São Paulo, 2004. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100017&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt . Acesso em 30 mar 2021

VIANA, Maria José Motta. Do sótão à vitrine: memórias de mulheres. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1995

SERBENA, Carlos Augusto. Considerações sobre o inconsciente: mito, símbolo e arquétipo na psicologia analítica. Revista abordagem gestalt. Vol.16, nº1. Goiânia, jun. 2010

STAEL MOURA DA PAIXÃO FERREIRA

Prof.ª Pesquisadora UFMS — Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; MESTRADO em Estudos Fronteiriços/Letras: Contatos Linguísticos, Sociais, Culturais, Literatura, Memória e Diversidades na Fronteira Brasil-Bolívia pela UFMS/CPAN; ESPECIALIZAÇÃO em Docência do Ensino Superior pela UCB — RJ e ESPECIALIZAÇÃO em História e Cultura Afro Brasileira (IBRA — MG); GRADUAÇÃO/ LETRAS — Português / Inglês pela UFMS/CPAN.

DOUTORANDA em Estudos de Linguagens (PPGEL) Aluna Especial, na Faculdade de Artes, Letras e Comunicação (FAALC- UFMS); Aluna do Curso de Produção Cultural (Instituto de Desenvolvimento Artístico).

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ORGANIZADORES DO NECS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. POR MEIO DESTA REVISTA OFERECEMOS ESPAÇO PARA DIVERSOS PENSAMENTOS E CONTRIBUIÇÕES ACERCA DAS SOCIEDADE, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE.

--

--