Notas sobre o Ler

João Pedro Monteiro
Revista Preta de Ciências Sociais
5 min readJan 21, 2021

Quem conhece este que vos escreve sabe que eu sou absolutamente viciado em iniciar projetos de leitura. Adoro ler: leituras conjuntas, leituras individuais, tanto faz. Sou apaixonado pelo modo mágico como uma página cheia de letras é capaz de me transportar para um universo completamente novo, a um só tempo compartilhado e inteiramente meu, onde o esforço — muitas vezes um esforço gigantesco, diga-se de passagem — é recompensado ou com a clarificação de uma ideia, ou com a capacidade de me encher de questões frutíferas, ou simplesmente com o acessar de um sentimento paradoxalmente indescritível. É claro que ler um texto é um ato carregado de intencionalidade. Ninguém lê sem pressupostos, aliás, ninguém chega a um texto sem que o próprio caminho pelo qual se chega denuncie essa intencionalidade. Essa reflexão é um pouco sobre esses pressupostos-intenções: sobre como estas não podem deixar de conter em si a consciência dessa intenção, nem a dimensão crítica tanto em relação a ela como em relação a como o autor atende a estas expectativas.

Em primeiro lugar, é bom ter em mente que um texto é sempre uma visão parcial da realidade. Dependendo da qualidade desse texto, essa visão não se constitui numa unidade tão clara como faz transparecer: um texto é um encadeamento de visões, resquícios de leituras, ao mesmo tempo pergunta e resposta sobre um dado problema. Um texto é conteúdo, argumentação e encaminhamento de problema, mas é também um molde, uma forma de olhar que se constitui como lógica interna que excede seu conteúdo imediatamente cognoscível. Ou seja, um texto vai além do que ele imediatamente diz: subterraneamente está nele o modo pelo qual se fala do que se fala e esse modo é uma construção que se constitui, digamos, “à parte” das conclusões às quais ele chega.

Nesse sentido, um texto não pode ser tomado apenas pelas suas conclusões. O elemento da crítica reside naquele espaço entre a conclusão e o enquadramento que permite a conclusão, de interrogar do texto se o seu ponto de chegada é autorizado pelo caminho que se percorre para chegar até este ponto. O interrogar desse caminho é ao mesmo tempo trilhá-lo; mas não o trilhar pura e simplesmente: é um trilhar de forma cautelosa, observando as possíveis armadilhas, solavancos, empecilhos que podem estar nele. É também um trilhar atento a se a trilha indica outros caminhos, ou de observar a mudança de caminho que o próprio texto pode assumir no seu interior. Ou, ainda, atentar a como a trilha vai se constituindo como limite que justificam este caminho e não outro, isto é, como ela constrói os muros argumentativos que não te deixam visualizar outras possibilidades. Muitas vezes esses muros são justificados, pois outros caminhos podem ser de fato enganosos; outras vezes porém constituem apenas um limite de visão que pode ser transposto dependendo do quão atento está o viajante-leitor. Como nos indica Vladimir Safatle (2012), é necessário

estar atento às regiões textuais nas quais o projeto do sistema filosófico é impulsionado pelo encadeamento implacável de conceitos que insistem em abrir novas direções; estar atento a estruturas que atravessam a consciência do texto e deixam marcas nos caminhos trilhados pela escrita.

O que Safatle nos indica é para a característica de ser um texto “um campo de linhas divergentes de força” que internamente se encadeiam como autoprodução de sentido em perpétua atualização. Como atualização, trata-se de um exceder das intenções do autor em sua escrita. Nesse sentido, o que o autor intenciona com o texto não é o fundamental: no momento em que o texto torna-se objeto de leitura de outros, ele torna-se polissêmico, isto é, ele torna-se um outro do que é para o autor. Como é para o leitor, encadeia-se nos diálogos propostos pelo seu leitor e, como resultado, torna-se objeto dele e seu sentido é constantemente reinterpretado por ele.

É claro que há um limite para a polissemia: o limite está dado, na nossa metáfora, pelos limites próprios da trilha. O trilhar é sempre renovação do caminho porque o leitor que se aventura trás consigo suas próprias visões, leituras, interpretações e objetivos prévios. Desse modo, há um conflito inerente à leitura frutífera: ao deixar-se trilhar pelo caminho proposto pelo autor, o leitor engaja com o texto; mas esse deixar-se levar é sempre mediado pelos seus próprios interesses. Resta então a consideração do leitor do que é o seu interesse, qual é o seu objetivo, de modo que não caia no artifício de sobrepor ao texto suas próprias conclusões, exceder o caminho que o texto lhe permite. É também necessário o cuidado de não deixar-se levar pelo texto no que ele pode ter de reafirmação de suas próprias conclusões, de não torná-lo puro viés de confirmação de seus próprios pensamentos. Como sublinha Safatle, trata-se de uma “operação tensa de negociação”, tanto o texto quanto a relação com ele.

Ler é, então, um negociar. Uma negociação é uma via de mão dupla entre iguais; mas, nesse caso, um dos lados tem nas suas mãos uma vantagem muito importante: a capacidade de ver o que foi feito desse texto ao longo da história, explorar suas consequências, buscar de que forma o texto excedeu a si próprio e foi reaparecer em lugares inesperados. É justamente essa vantagem que nos permite, como resultado da negociação, construir nosso próprio pensamento sobre o problema, bem como fundar nossas próprias práticas de aproximar-se dele. Podemos, pela distância temporal, observar a comédia de erros da história, as formas mais diversas de apropriação e crítica daquele pensar, de que modo ele se desenvolve e como ele se particulariza nesta folha de papel diante de nós e não em outra; ou, ainda, em muitas mas de diferentes formas. Nesse sentido, ler é um rastrear, um buscar; torna-se, nesse espírito, um pesquisar.

As formas pelas quais esse processo pode efetivar-se variam tantas quantos são os leitores. Mas acredito aqui ter dado algumas deixas pelas quais é possível compreender algumas coisas desse incrível processo. Não ouso me colocar como autoridade desse assunto, nem pretendo encerrar a conversa: aprendo enquanto escrevo, escrevo conforme sou capaz de aprender. Acredito, porém, que devemos refletir sobre a nossa postura diante do texto. Devemos, sempre que possível, deixar ligados todos os nossos sensores críticos e permitir que o texto nos toque exatamente ali onde ele pode nos transformar. Está ai a beleza da coisa.

Referências

SAFATLE, Vladimir. Grande hotel abismo - por uma reconstrução da teoria. São Paulo: Editora WWF Martins Fontes, 2012.

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João Pedro Monteiro
Revista Preta de Ciências Sociais

graduando em ciências sociais. estudo sobre gênero e sexualidade. posto um trabalho ou outro da faculdade para disseminar esse conhecimento.