Raiva como ferramenta protecionista dos corpos negros — Por Pamella Lima

Utilizando filosofias como a de Lelia Gonzalez, Silvio Almeida, Winnie Bueno, Malcolm X, e o movimento dos Panteras Negras entende-se o radicalismo dos movimentos negros como consequência do racismo estrutural e da desigualdade racial. Assim, como os estereótipos envolvendo os corpos negros são os geradores da raiva e insatisfação da população negra, a agressividade é atualmente utilizada como medida de proteção para a comunidade negra. Isto é, seja por meio de manifestações coletivas não-pacíficas ou pela performance de uma postura pseudo agressiva baseada na hipermasculinidade buscando sua autopreservação.

Silvio de Almeida classifica o racismo estrutural do Brasil não como uma anomalia, mas como parte da normalidade de uma sociedade; como sua forma de racionalidade. Ou seja, o racismo está presente nas ações conscientes e inconscientes do indivíduo. Ele disseca o racismo evidenciado na sociedade brasileira em três dimensões: empregado na economia, política e subjetividade. Na economia pode-se observar a desigualdade no sistema de salários onde a mulher negra, estando ela na base da cadeia hierárquica do país, recebem, em média, menos da metade dos salários dos homens brancos (44,4%) exercendo a mesma tarefa.

Na política, as mulheres negras representam apenas 2% do Congresso Nacional e são menos de 1% na Câmara dos Deputados. Uma das razões dessa baixa representatividade política está nas questões estruturais da sociedade inserida, como o machismo e, principalmente, o racismo. Durante as eleições municipais deste ano (2020) quase oito entre dez mulheres negras que foram candidatas a prefeita e vereadora sofreram algum tipo de violência virtual durante a campanha. Dentre elas 78% relataram ataques racistas em suas páginas na internet, entre os autores dos ataques há opositores, grupos racistas, anti-feministas e neonazistas.

Em ambientes acadêmicos é possível observar a reprovação quanto a metodologia dos movimentos antirracistas. Em um plano geral, o caráter elitista das grandes universidades marca uma forte presença do racismo estrutural na sociedade. Tal forma de preconceito é justificada até hoje pela “revolta violenta” proferida pelos movimentos negros, visão essa que põe a luta tendo um cunho extremista. Porém, é necessário observar a origem de tal “raiva” ou “violência”. Sintetizar e apagar toda a história que concebeu tal sentimento de frustração por parte da comunidade negra é também uma estratégia racista de apagamento e deslegitimação do movimento.

Um exemplo desta estratégia é encontrada na forma como a mídia apresenta as manifestações, sempre como atos violentos e sem base, ignorando o princípio causador da revolta. Nas redes sociais, durante manifestações do movimento negro contra a violência policial, é facilmente encontrado vídeos mostrando agentes em posição de arrependimento, ajoelhando e pedindo desculpa pelo erro de seus colegas. Em contrapartida, as imagens de manifestantes são sempre de atos violentos: quebrando vidraças, pondo fogo em ônibus e atirando objetos contra os policiais. Esse pensamento também é encontrado na forma como os noticiários passam a imagem dos entes das vítimas, sempre mal arrumados e exaltados.

Esta técnica serve para deslegitimar as manifestações, e pintar os policiais como os “bonzinhos”, usa-se o discurso de que aqueles que proferem violência a população negra “são apenas maçãs podres” e que não deve-se “generalizar” toda a instituição. Assim ignorando a concepção sistêmica da corrupção das corporações militares. No Brasil por exemplo, a criação das unidades policiais foi objetivamente para proteger a branquitude e para repreender ao máximo os recém “libertos” da escravidão.

Durante os protestos pelo assassinato de George Floyd e Breonna Taylor pela polícia americana, Chris Rock, comediante americano, em um de seus stand-ups fez um discurso que ficou muito conhecido onde ele diz que “em alguns trabalhos não podem haver maçãs podres, em alguns trabalhos todo mundo precisa ser bom, tipo pilotos de avião; a American Airline não pode falar: sabe, a maioria dos nossos pilotos sabem pousar, a gente só tem algumas maçãs podres que batem com o avião em montanhas”.

As organizações por melhorias sociais para a comunidade negra não tem como único objetivo a revolução contra as desigualdades sociais que a atinge, é também um ambiente que prega o amor, a lealdade e a irmandade entre os povos. Em 29 de maio de 1964, em Nova York, Malcolm X, revolucionário do movimento mulçumano negro, profere o discurso chamado: O terror da “gangue de ódio” do Harlem, onde diz para seus iguais que “(…) a opressão os tornava irmãos; a exploração os tornava irmãos; a degradação os tornava irmãos; a discriminação os tornava irmãos; a segregação os tornava irmãos; a humilhação os tornava irmãos”.

Este pensamento seria uma resposta à estratégia colonialista de divisão e conquista , com o argumento de que para “vencer a luta” e alcançar seus objetivos seria necessário a união fraternal do grupo social em questão. Essa visão sobre as questões raciais são comumente excluídas do debate para que assim os envolvidos na luta possam ser enfrentados como indivíduos insatisfeitos, não como um grupo organizado conquistando melhorias a sua forma.

Outro exemplo de movimentos negros que pregam a revolução com objetivo de alcançar a paz é a organização urbana socialista revolucionária dos Panteras Negras fundada por Bobby Seale e Huey Newton nos Estados Unidos, em outubro de 1966. Em sua doutrina há o plano de dez pontos onde organiza-se os direitos, exigências, objetivos e deveres da população negra. Por suas condições destaca-se “Queremos Terra, Pão, Moradia, Educação, Vestuário, Justiça e Paz”.

Além disso, em 1992, o rapper Tupac Shakur tendo contato com o movimento dos Panteras Negras a partir de sua mãe, Afeni Shakur, que era membro da organização, ajudou a criar o código T.H.U.G.L.I.F.E. Nesse código existiam exigências como “Respeite nossas irmãs, respeite nossos irmãos”, “Concertos e festas são territórios neutros; sem tiro!” e “Os danos às crianças não serão perdoados.” e um conjunto de diretrizes destinadas a controlar a violência na comunidade negra, que se tornou cada vez mais presente devido ao surgimento das gangues de rua.

Uma grande diferença entre a radicalidade dos autores abordados dá-se ao perceber os discursos categorizando-os em práticos e teóricos. O Movimento dos Panteras Negras é visto como radical quando ultrapassam a teoria e decidem militarizar sua organização, utilizando armas para defender-se da violência policial, algo comumente visto em seu dia-a-dia. Já nos discursos de Malcolm X, Lélia Gonzalez e Silvio de Almeida a violência é posta em segundo plano e a radicalidade é resumida às suas falas.

Na lógica escravista, que colocam mulheres e homens negros no lugar de hiper-sexualização e servidão, existe uma “mistificação de sua agressividade”, onde são vistos como brutos, agressivos, uma verdadeira ameaça. A população negra é alvo de muitos mitos que combinam: a erotização de seus corpos; a deslegitimação de suas habilidades; a articulação de seus lugares de trabalho, ignorando suas capacidades e liberdade de escolha; roubando sua individualidade e narrando sua história. Nesse sentido pode-se observar outros tipos de atos racistas proferidos contra a comunidade de forma velada, como é o caso dos estereótipos.

Os estereótipos ligados aos homens negros são resumidos à pornografia e violência. O homem negro é atrativo se tiver um corpo musculoso, se for alto mas principalmente se for “bem dotado”, sendo diminuídos apenas às suas genitálias e por quão “negão” eles podem ser. Se são sensíveis são descartados, tem de performar a masculinidade imaculada e quando a fazem em demasia são definidos como seres agressivos, primitivos ou sem alma. Além disso, a eles foram reservados os empregos mais brutalizados do mercado desde o período colonial: pedreiro, trabalhadores de estaleiros, cargos mais baixos do corpo militar e outros.

Já os estereótipos ligados à mulher afro-brasileira são ligadas exclusivamente a sua aparência, Para eles existe a “nega ativa” aquela que é atraente ao olhar, porém não é vista como mulher e sim como um objeto sexual, nas palavras de Lélia Gonzalez: “Quanto querem falar do charme, da beleza da mulher brasileira, pinta logo a imagem de gente queimada da praia, de andar rebolativo, de meneios no olhar, de requebros e faceirices”.

Existe a negra doméstica ligada a visão da ama negra, ou da mãe preta, que apenas é vista como serviçal que “quase faz parte da família” pois vive para servir e tornar a vida de seus patrões mais fácil, seja arrumando-lhe a casa seja cuidando de seus filhos. E por último, existe a “negra do cabelo duro” que apenas não é levada em questão, não é atraente, não lhe serve para ter relações afetivas, só serve para ser humilhada e menosprezada.

Em seu texto, “A quem serve o mito da agressividade da mulher negra”, Winnie Bueno expressa sua indignação sobre a forma como a sociedade atribui à mulher negra uma raiva livre de motivação, quando em suas palavras “as coisas pequenas e cotidianas na vida de uma mulher negra são tão massivas e destrutivas que é surpreendente ainda estar viva”. Na atualidade mulheres negras utilizam desse “mito” para se proteger em situações de vulnerabilidade, como quando performam certa “masculinidade” e “violência” para se manterem longe dos olhares assediadores na rua.

Desse modo, é necessário entender conceitos como o de racismo estrutural e o mito da democracia racial para compreender o radicalismo do movimento negro. Assim como só é possível ter entendimento da raiva e insatisfação da população negra quando se tem conhecimento dos estereótipos envolvendo seus corpos. Da mesma forma que a agressividade negra se tem como um pré conceito gerado em cima de uma realidade escravocrata, tem-se como ferramenta protecionista para a comunidade em situação de vulnerabilidade.

Bibliografia

Mendonça, Heloísa. Mulheres negras recebem menos da metade do salário dos homens brancos no Brasil. EL PAÍS, São Paulo, 13 Nov. 2019. Matéria do Dia da consciência negra.

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/11/12/politica/1573581512_623918.html

Autor desconhecido. A participação de mulheres negras na política importa! Entenda os motivos. Oxfam, 25 Junho 2020

https://www.oxfam.org.br/blog/mulheres-negras-na-politica/

Grellet, Fábio. Quase 80% das candidatas negras em 2020 já sofreram violência virtual. Estadão, São Paulo 5 Nov. de 2020.

https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,quase-80-das-candidatas-negras-em-2020-ja-sofreram-violencia-virtual,70003503195

Vernon, Jeremy. The Black Panthers’ 10-Point Program. Black Power in American Memory, 18 Abril 2017 http://blackpower.web.unc.edu/2017/04/the-black-panthers-10-point-program/

Bueno, Winnie. A quem serve o mito da agressividade da mulher negra. Medium 26 Jan. 2017.https://medium.com/@winniebueno/a-quem-serve-o-mito-da-agressividade-da-mulher-negra-da59ef1fcb89

Almeida, Silvio. O que é Racismo Estrutural?. 2016. (10:28). Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=PD4Ew5DIGrU

Rock, Chris. Bad Apple Metaphor. 2020 (1:43). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1h5sRgW6sQY

Conceição, Jaqueline. Lélia Gonzalez: O racismo estrutural. 2020. (8:46). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=X2ruqJntOWc

Gonzalez, Lélia. RACISMO E SEXISMO NA CULTURA BRASILEIRA In: Revista Ciências Sociais.Hoje,Anpocs,1984,p.223–244. acesso em: 9 Dez. 2020 https://drive.google.com/file/d/1Fgvf2j5CDHGivCYL0SAapnvjo9EMwd2V/view

Pamella Lima tem 20 anos, reside em Niterói-RJ e é graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Seus temas de interesse apresentam-se do espectro das relações étnico-raciais. Políticas sociais como abolicionismo penal e movimentos negros e indígenas encontram espaço dentro de suas pesquisas.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ORGANIZADORES DO NECS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. POR MEIO DESTA REVISTA OFERECEMOS ESPAÇO PARA DIVERSOS PENSAMENTOS E CONTRIBUIÇÕES ACERCA DAS SOCIEDADE, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE.

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