Uma mulher atemporal: reflexões acerca de Carolina Maria de Jesus

O presente texto tem como objetivo trazer algumas reflexões sobre Carolina Maria de Jesus. Neta de escravizados, Carolina nasceu 14 de março do ano de 1914 no interior do estado de Minas Gerais. Aos 23 anos de idade muda-se para capital de São Paulo onde realizou trabalho como faxineira, empregada doméstica e escritora, de forma concomitante também era única responsável pelos cuidados de três filhos. ‘’ Quarto de Despejo’’ uma narrativa autobiográfica é a obra de maior reconhecimento da autora, dos quatro livros publicados (FRAZÃO, 2020). Desse modo, Carolina Maria de Jesus, é a primogênita de uma série de intelectuais negras brasileiras, como: Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo e Sueli Carneiro.

Em uma época em que ainda acreditava-se em democracia racial, no seu primeiro livro Carolina Maria de Jesus denunciava problemática das diferentes manifestações da desigualdade. Com uma escrita testemunhal, autora conta o cotidiano da favela do Canindé, em que aborda as questões como a violência contra a mulheres e crianças, a fome e as corriqueiras vezes em que deixou de alimentar-se para alimentar os filhos. Entretanto, Carolina questionava os governantes pela situação vivencia

Os políticos só aparecem aqui nas épocas eleitorais. O senhor Cantidio Sampaio quando era vereador em 1953 passava os domingos aqui na favela. Ele era tão agradável. Tomava nosso café, bebia nas nossas xicaras. Ele nos dirigia as suas frases de viludo. Brincava com nossas crianças. Deixou boas impressões por aqui e quando candidatou-se a deputado venceu. Mas na Câmara dos Deputados não criou um progeto para beneficiar o favelado. Não nos visitou mais (JESUS, 2014, p. 32).

Ainda no refere-se a sua obra Quarto de Despejo, autora traz algumas observações cotidianos sobre as relações étnico racial em uma perspectiva também norteada à branquitude. ‘’ O guarda civil é branco e há certos brancos que transforma preto em bode expiatório. Que ignora que foi extinta a escravidão e ainda estamos em regime da chibata?’’ (JESUS, 2014, p. 108). A ação do suposto guarda analisado por Carolina Maria, refere-se em uma perspectiva Colonial, segundo Grada Kilombo:

O sujeito negro torna-se então tela de projeção daquilo que o sujeito branco teme reconhecer sobre si mesmo, neste caso: a ladra ou o ladrão violenta/o, a/o bandida/o indolente e maliciosa/o. Tais aspectos desonrosos, cuja a intensidade causa extrema ansiedade, culpa e vergonha, são projetadas para o exterior como um meio de escapar dos mesmos. […] No mundo conceitual branco, o sujeito negro é identificado como objeto ‘’ruim’’, incorporando os aspectos que a sociedade branca tem reprimido e transformado em tabu […] (KILOMBA, 2019, p. 37).

Em continuidade, segundo Freire (1997), a colonização foi fortemente devastadora, à base da exploração econômica e do trabalho escravo, inicialmente do nativo e, posteriormente, do africano. Consequentemente, o Brasil torna-se uma sociedade fechada, uma sociedade colonial escravocrata e antidemocrática, em que o país nasce e cresce sem experiência de diálogo entre diferentes culturas. O fato é que, de acordo com Grada Kimlomba (2019), aqueles que foram colonizados estão empregues na posição de marginalidade, onde sua voz não é escutada e compreendida por aqueles que estão no poder. ‘’ Essa ausência simboliza a posição subalterna como sujeito oprimido que não pode falar porque as estruturas da opressão não permitem que essas vozes sejam escutadas, tampouco proporciona um espaço para articulação das mesmas’’ (KILOMBA, 2019, p. 47).

Através dos seus escritos Carolina Maria de Jesus enfrenta uma lógica dominante, considerando todos os seus atravessamentos como negra, mulher e favelada. No contexto dos anos 1960 através de um olhar imanente, a autora rompe com o silenciamento e narra o modo de vida dos favelados. Assim, Quarto de Despejo

‘’ O nome da obra está relacionada a percepção de Carolina de que a favela e a cidade eram partes de um mesmo mundo se comparadas com uma casa, e nesta casa a cidade seria a ‘sala de visitas’ e a favela ‘quarto de despejo’, onde eram amontoados todas as coisas que não serviam mais[…]. Essa percepção tem como base o processo de modernização de São Paulo, quando as casas térreas, moradias nas regiões central da cidade, passam ser demolidas para dar lugar aos prédios e edifícios […]. Nesse momento, os pobres são despejados e ficam residindo em baixo de pontes ou favelas, ‘quarto de despejo’ que, em São Paulo, passam ser ‘construídas’ nas várzeas dos rios […] ‘’ (SANTOS, 2018, p. 384).

Em continuidade, a fome era companheira inseparável de Carolina onde achava refúgio na literatura e na escrita. Maria lia tudo que podia: livros, revistas, papeis amassados, sujos e sempre que a fome permitia, escrevia para passar o tempo. Era sua diversão, seu hobbie e o que a fazia acreditar que um dia deixaria a favela. ‘’ A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago’’ (JESUS, 1997, p. 39). ‘’ E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual — a fome’’ (JESUS, 2014, p. 32). Dessa forma, a fome era algo constante na vida da escritora, em um trecho do seu livro ressalta as empresas do ramo alimentício que preferiam jogar fora e destruir as sobras do que doá-las aos mais pobres, Carolina comenta preta tal qual sua vida e sua pele (JESUS, 2014).

Assim, conforme Lélia Gonzáles é preciso a escuta das mulheres negras e não naturalização das suas representações:

Lélia pontuava a necessidade da construção de um viés interpretativo a partir do olhar e da experiência das mulheres negras e suas vivências sem naturalizá-las. Em suas análises acerca das representações sobre mãe preta e mucama, doméstica e mulata, destacava-se a questão dos estereótipos em torno da mulher negra que limitavam seu lugar na sociedade. De mucama a mulata profissional, de mãe preta a doméstica, para as mulheres negras a linha entre a esfera doméstica e o mundo do trabalho permanecia imprecisa. E ainda permanece, pois trata-se de uma pauta importante na agenda do feminismo negro contemporâneo. Dessa forma, Lélia Gonzalez inaugurou outro eixo fundamental do pensar feminista: abordar, enfrentar e desconstruir representações essencialistas sobre as mulheres negras (GONZALEZ, 2020, p.16)

Contudo, os problemas narrados não são apenas de ordem pessoal; são, também, questões de classe. Questões que perpassam pela economia e pela política do país, pela cultura hegemônica marcada pela exclusão de raça e gênero que tanto incomoda a autora. Como tantas outras mulheres negras pobres, Carolina poderia ter “nascido” para o silêncio, para o anonimato, para o mundo do trabalho, percurso considerado “natural” para sua condição no tempo e no local em que viveu. Por fim, como relata a autora, o Brasil deveria ser dirigido por alguém que já passou fome. A fome também é professora, aquele que passa fome aprende a pensar no próximo.

Referencias

FRAZÃO, Dilva. Carolina Maria de Jesus: Escritora brasileira. [S. l.]: Ebiografia, 5 jun. 2020. Disponível em: https://www.ebiografia.com/carolina_maria_de_jesus/. Acesso em: 30 mar. 2021.

FREIRE, Paulo. Sociedade Fechada e Inexperiência Democrática. In: FREIRE, Paulo. Educação Como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. Disponível em:<http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/otp/livros/educacao_pratica_liberdade.pdf>. Acesso em: 31 maio 2020.

GONZÁLES, Lélia. Por um feminismo Afro Latino Americano. 1. ed. S.I: Zahar, 2020. 376 p.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo — diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 1997.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: Diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: Àtica, 2014. 200 p.

KILOMBA , Grada. Memórias da Plantação. 1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 248 p.

SANTOS, Jorge Luis Felizardo. Quarto de Despejo: Uma Análise sobre o Racismo e a Branquitude. Revista Crioula, São Paulo, v. 1, ed. 21, p. 378–403, 1 set. 2018. Disponível em: file:///D:/DOCUMENTOS/Downloads/142719-Texto%20do%20artigo-298406–2–10–20180630.pdf. Acesso em: 6 abr. 2021.

SOBRE A AUTORA:

Natália Ferreira Pereira, é natural da cidade de Pelotas. Formada em Serviço Social em 2020 pela Universidade Católica de Pelotas. Atualmente é mestranda em Política Social e Direitos Humanos também pela Universidade Católica de Pelotas.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ORGANIZADORES DO NECS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. POR MEIO DESTA REVISTA OFERECEMOS ESPAÇO PARA DIVERSOS PENSAMENTOS E CONTRIBUIÇÕES ACERCA DAS SOCIEDADE, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE

--

--