A arte na guerra: como a cultura sobrevive em um combate

Leticia Araújo Linhares
Revista Provisória
5 min readMar 26, 2022

Há pouco mais de um mês, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia é ilustrada por cartazes patriotas espalhados em Lviv. O conflito, que teve como principais causas a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na Europa e o desejo de Vladimir Putin de restaurar a soberania da União Soviética, também envolve um desentendimento no âmbito cultural.

O território leste Ucraniano possui duas regiões (Donetsk e Lugansk) onde a maioria da população prefere o idioma russo, entretanto, os locais têm incentivo do governo federal para o uso da língua ucraniana na educação e administração pública. “O último censo apontou que havia cerca de 8 milhões de russos nessas localidades, mas se você considera ucranianos com visões russas, esse valor aumenta para 20 milhões de pessoas”, disse Tito Livio Barcellos Pereira, mestre em ciência política e relações internacionais pela UFF ao UOL. Os fatos citados, inclusive, são usados como argumentos culturais pelos pró-Rússia, o que pode ter estimulado Putin a reconhecer a independência da localidade três dias antes da invasão.

As guerras são pontapés para diversos movimentos, inclusive artísticos, e essa não poderia ser diferente. Mesmo com pouco tempo, como consequência dos bombardeios, a fim de apoiar os soldados ucranianos e desencorajar a Rússia, Volodymyr Kotovich, dono de uma gráfica ucraniana, vem produzindo cartazes, assim como os famosos das ruas de Kiev, porém com um tom crítico ao presidente russo. Esse tipo de movimento artístico é comum durante e após guerras, retratando as problemáticas da população e a destruição durante o contexto.

O grito, obra de Edvard Munch, foi inspiração para o movimento expressionista. Apesar de não ter guerra em seu contexto, representa a angústia e o desespero (Reprodução)

Outra semelhança foi a criação de personagens fictícios para criar a impressão de heroicidade nos combatentes defensores da Ucrânia. Assim como o Bosman, super-herói bósnio criado durante a guerra da Bósnia, que representava os combatentes do país, os ucranianos desenvolveram o Fantasma de Kiev, os três guardas fronteiriços e o engenheiro que se sacrificou, tendo cada a sua jornada e enredo.

Mais do que incentivar, é preciso proteger

Além de usar a arte como protesto, é necessário também proteger o patrimônio já existente. A cultura do território tem forte influência eslava pela sua história de fundação. Como bem imaterial, é imprescindível citar as danças típicas, com roupas coloridas e coroas de flores, a culinária característica e o artesanato, como as babuskas (bonecas de madeira) e os pysanka (ovos pintados).

Também é importante citar que o ballet do país é uma das principais companhias de dança do mundo, juntamente com o Ballet de Bolshoi, em Moscou. Durante os ataques russos, Artyom Datshihin, um dos principais bailarinos do corpo de baile do balé ucraniano, foi atingido em um bombardeio em Kiev, e faleceu após três semanas de internação.

O bailarino já havia participado de peças como O quebra nozes, lago dos cisnes (como na fotografia) e bela adormecida (Reprodução: UAENews)

Após a declaração do presidente russo que disse que “não há nação ucraniana, não há identidade ucraniana”, os museus e galerias, que acomodam obras de arte históricas, vêm procurando maneiras de conservar quadros e esculturas de ataques em bunkers ou até mesmo exportando-os. Mesmo assim, nem tudo é salvo, quase quatro semanas após o início dos combates, o Teatro Dramático de Mariupol, construção de 1960 que estava servindo como abrigo aos ucranianos, foi ao chão. Em outro ataque, a Russia atingiu uma localização próxima ao Babi Yar, um memorial da época do Holocausto, onde foram executados mais de 34 mil pessoas em apenas dois dias. Ainda, segundo o Ministério de Relações Exteriores da ucrânia, 25 obras de Maria Prymachenko foram queimadas no incêndio do Museu de Ivankiv, após ataques.

O coletivo Asortymentna Kimnata, entretanto, vem fazendo um ótimo trabalho quando o assunto é preservação. As artistas, que tinham o objetivo de apoiar a arte local, agora se esforçam para defendê-la e, em 10 dias de guerra, já protegeram mais de 20 acervos de galerias de várias cidades do país.

O Museu Território do Terror de Lviv, representado pela diretora Olga Honchar, desenvolveu o fundo de crise Museu Ambulância, com o amparo da Comissão Europeia e da associação multicultural MitOst, que auxilia os museus financeiramente, a fim de embalar corretamente e salvar os objetos usados em exposições.

O Conselho Internacional de Museus, declaro, em nota, a apreensão em relação à situação. “O Icom está especialmente preocupado com os riscos enfrentados pelos profissionais dos museus, bem como com as ameaças ao patrimônio cultural por causa desse conflito armado” escreveu o comitê.

Exportação cultural ucraniana

A saída dos objetos de exposição para o resguardo não é a única maneira que pessoas de fora do país têm de apreciar a cultura ucraniana. No Brasil, por exemplo, tivemos a oportunidade de conhecer Clarice Lispector, escritora, de origem ucraniana que se mudou para o Brasil com seis anos de idade e nos deixou como herança alguns textos como “A hora da estrela”.

Na televisão, Adolpho Bloch fundou a rede Manchete após trabalhar algum tempo com Roberto Marinho na editora Rio Gráfica. O jornalista e empresário migrou para o país em 1917, na época da revolução russa, para fugir de complicações, visto que ele e sua família eram judeus.

A arquitetura brasileira também foi influenciada por ucranianos. Gregori Warchavchik veio para o Brasil em 1923 com pensamentos modernos aplicados à construção. O Museu Lasar Segall, na Vila Mariana, em São Paulo, foi sua antiga residência e, claro, um de seus trabalhos.

O mobiliário do local possui linhas predominantemente retas, com um visual discreto, características da Bauhaus alemã (Reprodução: Folha de S. Paulo)

Com esses exemplos, é possível ter esperança de que o fim da cultura ucraniana não está próxima. São hábitos resistentes que se adaptam e se renovam, inovando a visão de todo o mundo e implementando um pouco de sua história em cada canto do globo terrestre.

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Leticia Araújo Linhares
Revista Provisória

Jornalista em formação tentando se descobrir no mundo da comunicação.