Eleições na Coreia do Sul: antifeminismo, COVID-19 e crise imobiliária

Felipe Wiira
Revista Provisória
10 min readMar 30, 2022

A Coreia do Sul foi às urnas no começo de Março para eleger seu próximo presidente. Depois de cinco anos de mandato de Moon Jae-in (Partido Democrático), Yoon Suk-yeol (Partido da Força Popular) e Lee Jae-myung (Partido Democrático) foram os principais nomes numa eleição decidida por menos de 1% dos votos.

Yoon Suk-yeol foi eleito pela menor margem da história das eleições sul-coreanas — Foto: SeongJoon Cho / Bloomberg

Com pouco mais de 77% da população coreana apta a votar comparecendo às urnas, o escolhido foi Yoon Suk-yeol, da oposição, e ex-procurador geral do governo de Moon. A Deutsche Welle descreve como uma das disputas presidenciais mais “agressivas” do país, que já teve 19 mandatos presidenciais.

A legislação da Coreia do Sul não permite a reeleição, portanto Moon Jae-in não poderia disputar novamente o cargo. Moon assumiu em 2017 após o impeachment de Park Geun-hye, envolvida em casos de corrupção, abuso de poder e coerção de empresas sul-coreanas, e condenada a 32 anos de prisão. Park recebeu perdão do governo, uma decisão de Moon Jae-in, e foi liberada da prisão no último dia de 2021.

O novo presidente eleito, Yoon Suk-yeol, só assumirá o cargo na ‘Casa Azul’ (o prédio presidencial) no dia 10 de maio de 2022. No entanto, até lá, múltiplas pautas precisarão ser discutidas entre o novo líder da Coreia do Sul e sua equipe.

A principal questão que aflige o país no momento é a crise imobiliária: os preços de moradias, principalmente nos grandes centros do país (com destaque para a capital Seoul), vêm crescendo exponencialmente. Novas gerações são incapazes de atingir esse poder de compra e também gerando um aumento de empréstimos e, consequentemente, dívidas.

Porém, outra questão pivotante para a população sul-coreana, principalmente para a parcela feminina dela, são as políticas sobre igualdade de gênero. Esse fator se coloca como um dos núcleos das eleições sul-coreanas, ainda mais com uma diferença mínima de votos para o vencedor. Isso, porque o bloco da população definida como ‘antifeminista’ se torna atrativo para os candidatos como uma potencial força definitiva para as eleições.

Outro ponto que veremos mais à frente é a política internacional, com um simbolismo de aproximação de Estados Unidos e Japão. No entanto, Yoon terá que resolver problemas grandes logo no seu primeiro ano eleito, como os recentes testes de mísseis norte-coreanos — e como será o tratamento ao vizinho da península —e a invasão russa à Ucrânia.

Além da tensão com Pyongyang, clima antifeminista e crise imobiliária, a COVID-19 ainda ‘resiste’ na Coreia do Sul. Entre o fim de janeiro e durante o mês de março deste ano, o número de casos totais no país cresceu em 14 vezes, tendo a pior onda de novos casos desde o início da pandemia.

As relações exteriores

Kim Jong-un (esq.) e Moon Jae-in (dir.) se encontraram no Korea Summit em 2018, na tentativa de pacificar relações — Foto: Korea Summit Press Pool / Getty

Yoon Suk-yeol assumirá a Coreia do Sul em uma situação e época delicadas para as relações internacionais. Primeiramente, o conflito entre Ucrânia e Rússia é uma pauta urgente que deverá ser retratada logo em seu início no cargo, porém é apenas um dos pontos que afetam as relações exteriores sul-coreanas.

A invasão russa coloca uma fragilidade no mercado internacional, já sentida atualmente mas com uma consequência ainda imensurável para o futuro global. No entanto, Yoon firmou sua posição em outros fatores no tabuleiro geopolítico, principalmente sobre seus maiores aliados.

A recorrente tensão entre Estados Unidos e China tem o potencial de influenciar o comércio internacional da Coreia do Sul. Com empresas gigantes no mercado, como a Samsung e Hyundai, por exemplo, o novo presidente terá que lidar com cuidado essa relação, já que ambos os países são seus maiores parceiros econômicos.

Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2021, a Coreia do Sul exportou quase US$ 163 bilhões em produtos para a China, o maior importador de produtos sul-coreanos do mundo. O segundo colocado é o EUA, com US$ 96,3 bilhões em 2021. Somados, os dois ‘rivais’ no comércio internacional representam pouco mais de 40% da exportação da Coreia do Sul. Yoon já endereçou uma maior aproximação comercial com o Japão, quinto na lista (US$ 30 bilhões).

Contudo, a maior preocupação para o mandato de Yoon Suk-yeol será a vizinha da península, Coreia do Norte. Isso, porque recentemente Pyongyang retornou com seus testes de mísseis, encerrando em 2020 a ‘declaração de moratória’ de suas práticas militares.

Desde o início de 2022, o país liderado por Kim Jong-un já testou nove mísseis (segundo reportagem da CNN de 10 de março). Talvez o mais alarmante deles, no entanto, ainda não estava nessa contagem: o do dia 16 de março deste ano. De acordo com informações da Coreia do Sul e do Japão, os norte-coreanos teriam testado um ICBM, ou míssil balístico intercontinental.

A questão com o ICBM testado é que o último treinamento com este modelo foi em 2017. Na ocasião, lançaram o Hwasong-15, que, segundo especialistas, poderia alcançar os Estados Unidos numa trajetória padrão. Já o testado mais recentemente, em 2022, em tese, seria o Hwasong-17, apresentado em 2020 mas sem testes até o momento.

O presidente Moon Jae-in teve como uma das premissas de seu governo a tentativa de paz com o país vizinho, e apesar de ter avançado muito nas negociações, o tratado foi interrompido e tido como uma das ‘falhas’ do mandato. Agora, numa tentativa de separação do atual e futuro ex-presidente, Yoon Suk-yeol promete uma abordagem mais direta, com aumento das atividades militares sul-coreanas e cogitando até um ‘ataque preventivo’. Outro ponto seria estreitar os laços de proteção com o Japão.

De qualquer maneira, as relações com aliados e possíveis inimigos será um dos principais pontos de atenção na análise do governo de Yoon Suk-yeol desde o início.

A crise de gênero

Protestos #MeToo foram impulsionados em 2018 na Coreia do Sul — Foto: Indranil Mukherjee / AFP / Getty

Além das tensões comerciais internacionais e militares com a vizinha Coreia do Norte, a Coreia do Sul enfrenta também um movimento interno que foi participativo também nas eleições: o antifeminismo.

Segundo a BBC, citando uma pesquisa de jornal local sul-coreano, 79% dos homens jovens se sentem “seriamente discriminados” por seu gênero, e isso, claro, foi pautado na disputa eleitoral.

Se aproximando de uma corrida acirrada pelo cargo presidencial, Yoon Suk-yeol apelou exatamente para essa fração da sociedade que poderia representar uma parcela significativa dos votos. O candidato eleito prometeu, por exemplo, encerrar o Ministério da Família e da Igualdade de Gênero, mesmo sendo uma pasta com custo quase simbólico do PIB nacional.

Ainda segundo a BBC, o Ministério é responsável por cerca de 0.2% do orçamento anual do país. Apenas 3% disso vai para uma melhora no quesito de igualdade para as mulheres.

Mesmo assim, os homens que compõem essa fração da sociedade sul-coreana defendem seus argumentos para o fim dessa discriminação com os homens do país. De acordo com eles, citando aqui BBC e CNN, os homens perdem no competitivo mercado de trabalho por causa do serviço militar obrigatório, enquanto o mesmo não ocorre para as mulheres. Referenciando a entrevista que Laura Bicker fez com Min-young, ele também coloca que “O sistema patriarcal do país também deu às mulheres o dever de educar as crianças, [o que significa que] os homens têm o dever de prover as capacidades econômicas.”.

Mesmo com tanta revolta dos ‘antifeministas’ com o aparente favorecimento completo às mulheres, a realidade salarial ainda é desigual. Segundo o Ministério do Emprego e Trabalho da Coreia do Sul, em 2020, a média salarial das mulheres era 67,7% quando comparada com a dos homens. Apenas 19% dos assentos na Assembleia Nacional são ocupados por mulheres; e dos cargos seniores e de gerenciamento, somente 15,6% são ocupados por mulheres.

Em 2018, o movimento #MeToo chegou a Coreia do Sul, principalmente após a publicização do caso da promotora Seo Ji-hyeon, que acusou um funcionário do Ministério da Defesa de assediá-la sexualmente num funeral em 2010. A divulgação do caso estimulou movimentos para divulgação de casos de abuso, assédio e até tentativas de estupro.

Mais tarde, no mesmo ano, as manifestações focaram também na alta de casos de filmagens ilegais de banheiros femininos, enquanto, para as manifestantes, a polícia nacional pouco fazia para combatê-las.

Entre casos de crimes sexuais, filmagens ilegais e desigualdade econômica, as mulheres e o movimento feminista ainda foram utilizados como escada eleitoral ao favorecer os antifeministas. Com mais cinco anos do mandato de Yoon Suk-yeol, a situação das mulheres no país dificilmente mudará por decisões públicas, e a Coreia do Sul seguirá sendo, como coloca o The Economist, o pior país desenvolvido para uma mulher trabalhar.

A situação da pandemia

Coreia do Sul teve em março recorde de infecções e mortes pela COVID-19 — Foto: Jung Yeon-Je / AFP

Apesar do avanço das vacinações no mundo e na própria Coreia do Sul, o início de 2022 se tornou o pior cenário do país desde o início da pandemia da COVID-19.

Até o início de 2022, pouco mais de 630 mil sul-coreanos haviam testado positivo para o coronavírus, pouco mais de 1% da população total da Coreia do Sul. No entanto, entre os meses de fevereiro e março, essa contagem subiu exponencialmente.

Dos 630 mil, o número chegou a 12 milhões e 350 mil habitantes infectados pela COVID-19. Saindo de pouco mais de 1%, o número cresceu para 20%, com a marca de que a cada cinco sul-coreanos, pelo menos um já testou positivo para o coronavírus.

Nesta onda de infecção, a Coreia do Sul teve o dia com mais mortes por causa da COVID-19 desde o início da pandemia, com 470 mortos no dia 23 de março, segundo a CNN. Foi cerca de uma semana antes o pior dia em infecções diárias, com quase 405 mil casos apenas no dia 18 de março.

Mesmo com dados históricos da pandemia de COVID-19, a Coreia do Sul ainda se beneficia da alta taxa de vacinados no país, com quase 86% da população com duas doses aplicadas e pouco mais de 63% já tendo recebido a dose de reforço.

Segundo uma fonte da CNN no Ministério da Saúde e Bem-Estar sul-coreano, essa será a crise definitiva para um possível retorno para a normalidade. Caberá a Yoon Suk-yeol também administrar as possíveis consequências da alta taxa de infecções: seja para um aumento em hospitalizações, seja num possível relaxamento das medidas preventivas.

A crise imobiliária

Preço de apartamentos em Seoul é um dos mais caros do mundo quando comparado à renda — Foto: Kim Hong-ji / Reuters

Apesar dos esforços de Moon Jae-in para reverter a situação imobiliária no país, a crise de preços de casas e apartamentos, e a quantidade de dívidas criadas por esse motivo, continuarão sendo um fator de peso para o novo presidente da Coreia do Sul.

Mesmo sendo uma das suas promessas de governo entre 2016 e 2021, Moon não conseguiu solucionar e chegou até a piorar o caso. Em algumas partes de Seoul, segundo a Coalizão de Cidadãos pela Justiça Econômica, os preços chegaram a dobrar. O Le Monde Diplomatique ainda cita que os preços do metro quadrado na capital sul-coreana podem variar de US$10,770 até US$38,880. O preço médio de um apartamento em Seoul, segundo dados do Kookmin Bank, é de 1,2 bilhão de wons (cerca de US$ 1 milhão).

Em cima de toda a crise imobiliária — que Moon colocava como principal culpada a especulação imobiliária — ocorreu um escândalo dentro da agência de construção de novas cidades. Conhecida como ‘LH’ (a Corporação da Coreia de Terreno e Habitação), ela é a responsável pelo desenvolvimento e planejamento de novos locais para habitação. E em 2021, o esquema de especulação de nove funcionários foi divulgado: eles compraram cerca de US$8 milhões em terras num terreno que seria a nova cidade, e ainda se aproveitaram de um ‘bônus’ que precisa ser pago pela empresa pública referente a quantas árvores estão plantadas no local.

A crise, a falta de moradias acessíveis e um escândalo de uso de informações confidenciais levaram a popularidade de Moon Jae-in para 43% neste ano, bem abaixo dos 84% de quando foi eleito. Ainda assim, essa crise passa para Yoon Suk-yeol, que já declarou que suas políticas serão completamente opostas às de Moon.

O governo de Moon tentou utilizar taxas sobre o controle de moradias, ter um controle mais rígido dos bancos, e até ter impostos sobre as vendas de apartamentos. Já a equipe de transição de Yoon Suk-yeol reforçou a oposição a essas medidas, principalmente a lei sobre as jeonse.

A jeonse é uma modalidade de locação específica da Coreia do Sul: ela fica entre o aluguel (wolse), pago mensalmente, e comprar o imóvel (jaga), com o preço cheio. No caso da jeonse, o locador paga uma porcentagem por um contrato de dois anos, com uma lei de Moon permitindo por mais dois anos de renovação. Isso ainda acabou tendo um efeito negativo: a menor oferta de imóveis tornou os jeonse mais caros e raros na sociedade sul-coreana.

Enquanto isso, o endividamento familiar coreano, na porcentagem de dívidas sobre renda, chegou aos 201% em 2020. Foi o país que mais cresceu na estatística entre 2016 e 2020, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O já eleito presidente da Coreia do Sul, Yoon terá que negociar a mudança nas leis imobiliárias se quiser relaxar as taxas e pressões econômicas do governo no quesito. Isso, pois a Assembleia Nacional ainda terá maioria do Partido Democrático, com 172 dos 300 assentos.

Assim, os próximos cinco anos de Yoon Suk-yeol, que começam apenas a partir do dia 10 de maio deste ano, prometem muitas mudanças (inclusive na localidade do prédio presidencial). Será necessário observar se haverá solução para a crise imobiliária e como ficarão as relações internacionais, com uma possível militarização sul-coreana.

A atenção fica voltada também à situação das mulheres na Coreia do Sul, com uma perspectiva de ainda mais retrocesso num país marcado internacionalmente por sua desigualdade de gênero. A popularidade de Yoon já desce nos primeiros meses de transição, enquanto o mesmo é a esperança da ala conservadora no país.

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Felipe Wiira
Revista Provisória

Futuro jornalista, aficionado por esportes e suas histórias.