Na mira da bala: Os ataques com armas de fogo nos EUA
“É uma vergonha nacional”, foi assim que o presidente americano Joe Biden definiu os recentes ataques com armas de fogo no país, que em cerca de um mês já mataram mais de 40 pessoas em ao menos sete estados diferentes. O comentário foi feito durante uma entrevista coletiva com o primeiro-ministro do Japão, Yoshihide Suga, na última sexta-feira, 16, um dia depois de um jovem de 19 anos realizar diversos disparos contra funcionários de um centro de operações da empresa FedEx, localizado na cidade de Indianápolis, deixando um total de oito mortos e outros cinco feridos. Em meio a difícil realidade da pandemia da Covid-19, um problema antigo dos Estados Unidos volta para assombrar a população e colocar em discussão o fácil acesso a armas na maior economia do mundo.
“A violência com armas é uma epidemia neste país e é uma vergonha internacional (…) Isso tem que parar!”, afirmou Joe Biden em um discurso no último dia 8 de abril.
O ataque na capital do estado de Indiana foi o sétimo a ser registrado nos EUA em um período de 30 dias. A onda de violência, como tem sido chamada pelos noticiários mundo afora, começou no dia 16 de março com uma ocorrência na cidade de Atlanta. Um homem de 21 anos, identificado como Robert Aaron Long, invadiu três casas de massagem e assassinou oito pessoas. Os alvos do atirador eram pessoas asiáticas, parcela da população que viu o preconceito e a xenofobia aumentar desde o início da pandemia de Covid-19. À polícia, o acusado afirma que suas ações não foram crimes de ódio, mas sim consequências de uma tentação sexual que ele deveria eliminar. Ainda de acordo com as autoridades locais, o autor dos disparos foi preso quando estava a caminho da Flórida, onde planejava realizar uma ação parecida.
Seis dias mais tarde, foi a vez da cidade de Boulder, no Colorado, ser vítima de um ataque cruel. Ahmad Al Aliwi Alissa, em posse de uma pistola, abriu fogo contra civis que realizavam compras em uma unidade da rede de supermercados King Soopers. Ao todo, dez pessoas foram mortas, entre elas Erin Talley, um policial de 51 anos que respondeu ao chamado de tiroteio na região. Segundo as investigações, o suspeito havia comprado a arma utilizada na ação menos de uma semana antes do crime, sendo aprovado sem problemas em uma verificação de antecedentes feita pela loja, um processo padrão utilizado para tentar restringir a venda desses objetos, o qual não é visto como eficaz para aqueles contrários à posse de armas.
“Garantir que todas as vendas que ocorrem em nossa loja sejam legais sempre foi e sempre será a maior prioridade”, disse John Mark Eagleton, dono do estabelecimento que vendeu a arma à Alissa.
Califórnia, Texas, Tennessee e Carolina do Sul são os outros estados que também sofreram com um ataque em seu território nesta onda de violência que atravessa os EUA. O caso mais grave ocorreu na cidade de Rock Hill, no sudeste americano, no dia 7 de abril. Phillip Adams, ex-atleta da NFL, foi responsável pelo assassinato de seis pessoas, incluindo duas crianças de 9 e 5 anos de idade. O esportista, que atuou ao longo de seis anos na elite do futebol americano, chegou a casa do médico Robert Lesslie e lá disparou contra ele e seus familiares, além de dois profissionais que trabalhavam no local no momento do crime, um deles até chegou a ser socorrido, mas faleceu três dias depois. Ainda não foi possível apontar qual foi a motivação de Phillip, que horas mais tarde foi encontrado morto vítima de suicídio.
Com uma conta simples de divisão é possível chegar ao triste dado de mais de um ataque com arma de fogo por dia nos Estados Unidos que terminou com o ferimento ou a morte de quatro ou mais pessoas. De acordo com o portal Gun Violence Archive (Arquivo de Violência com Arma de Fogo em tradução literal), que rastreia e registra toda e qualquer ação envolvendo esses objetos, apenas neste ano de 2021 já foram contabilizados cerca de 156 tiroteios em massa, número que em anos anteriores demorava mais para ser atingido. Até o momento não foi dada uma explicação ou justificativa para o aumento considerável na quantidade de ataques, sendo a única informação existente: a maior circulação de armas entre a população.
Não se sabe exatamente o número de pessoas donas de ao menos uma arma de fogo nos Estados Unidos, isso porque não existe uma solicitação de registro federal ou alguma espécie de regulamentação parecida que consiga apresentar esse dado de uma forma oficial. No entanto, pesquisas particulares recentes de organizações e universidades apontam que cerca de 40% dos americanos têm ou vivem com alguém que possui uma arma em casa, além de 22% que afirmam ter a posse individual, algo em torno de 72,4 milhões de pessoas considerando a população atual do país. Na maioria dos casos, a justificativa é a mesma: segurança, ou pelo menos a sensação de proteção, mas já foi comprovado que na verdade esses lares são menos seguros, justamente por elevar a chance de acidentes e assassinatos domésticos, e suicídios.
Em escala global, a maior potência econômica do mundo também assume a primeira posição quando o assunto é a quantidade de armas em circulação no país. Apesar de possuírem apenas 4% da população mundial, algo em torno de 329 milhões de americanos, os Estados Unidos são donos de 40% do total de armas de fogo, cerca de 400 milhões de unidades, segundo pesquisa realizada por uma organização sueca em 2018. Certamente hoje esse número é maior. A pandemia da Covid-19 trouxe, além de muitas incertezas, medo e insegurança. Com mercados e lojas fechando e abrindo, com a crise econômica, muitas pessoas passaram a temer o aumento de furtos e roubos, o que disparou a venda de pistolas e rifles nos EUA. Apenas em agosto de 2020 foi vendido o equivalente ao ano de 2019 inteiro. Para especialistas, o reflexo desse boom deverá ser sentido principalmente no segundo semestre de 2021.
Caso a previsão se confirme, é esperado que os Estados Unidos alcance a marca de 511 tiroteios em massa (quatro pessoas ou mais feridas ou mortas) no ano, de acordo com o portal Gun Violence Archive, que já registrou 5.622 vítimas fatais de armas de fogo em 2021, 1.166 a mais do que o mesmo período em 2020. Outro dado importante que também sofreu um aumento preocupante é o de número de feridos. Até 20 de abril do ano passado, um total de 7.902 pessoas haviam sido baleadas, enquanto neste ano já são mais de 10.000, incluindo 994 crianças e adolescentes. Dias como este último final de semana, em que os EUA vivenciaram cinco tiroteios, entre eles em uma festa infantil na Louisiana, contribuem para as marcas estarem sendo alcançadas cada vez mais cedo, ao mesmo tempo que pressionam o Governo Federal a endurecer o acesso a armas no país.
Hoje para um americano conseguir comprar uma arma de fogo basta ele ter a idade mínima exigida -pode ser de 18 ou 21 anos dependendo do modelo- e ser aprovado em uma verificação rápida de antecedentes criminais, que em alguns estados nem é obrigatória. Estima-se que cerca de um terço dos donos de armas nos EUA não passaram por qualquer espécie de avaliação ou consulta para adquirirem suas pistolas, isso porque as leis federais não exigem que elas sejam feitas quando trata-se de uma venda privada, fora de uma loja especializada.
Em um comparativo publicado em 2018 pelo renomado jornal The New York Times é possível observar com clareza o quão amplo é o acesso nos EUA. Em menos de uma hora um americano consegue ter em mãos qualquer modelo de arma, enquanto em país como África do Sul, Austrália e Alemanha, o processo é longo e demanda uma série de avaliações psicológicas, cursos práticos, armazenamento apropriado e até documentos de pessoas próximas que comprovem sua capacidade mental de possuir uma arma. No Brasil, onde também o acesso é restrito, é preciso ter o registro junto a Polícia Federal e uma autorização para cada vez que um transporte de um armamento é feito, incluindo o percurso da loja até a residência do comprador.
O Japão é um dos países que possui uma das regulamentações mais duras quando o assunto é adquirir uma arma de fogo. O processo inteiro desde o interesse, por assim dizer, e a compra de fato pode levar mais de um ano. Entre algumas das exigências estão: aulas de tiro e exames teóricos até três vezes no ano, avaliação psicológica, dupla verificação de antecedentes criminais e inspeção de segurança por parte da polícia na casa do comprador. Outra medida utilizada pelos governos nacionais para dificultar o acesso e evitar ações impulsivas é o período nomeado de “cool off” (esfriar em tradução literal), que pode variar entre três e sete dias e foi pensado justamente para prevenir ataques motivados pela emoção do momento, característica observada em parte dos tiroteios.
Apesar da forte pressão pública que o Governo dos Estados Unidos recebe para endurecer sua regulamentação e dificultar o acesso a armas de fogo como fazem os demais países, realizar essa mudança não é tão simples como parece, ainda mais quando esbarra na Constituição. A Segunda Emenda têm sido o principal empecilho para o avanço de projetos que aumentem o controle sobre o mercado de armas, pois ela garante aos americanos o direito de possuir uma. Logo, qualquer ação ou movimento feito com a intenção de restringir esse acesso é fortemente combatido, principalmente por grupos mais conservadores. Porém, com a saída de Donald Trump e a chegada de Joe Biden ao posto de presidente dos EUA, a expectativa é que haja uma nova postura do Governo diante deste problema.
“Nós estamos agindo não só para combater a crise de armas, mas também para aquilo que é na verdade uma crise de saúde pública. Nada que eu vou recomendar aqui esbarra em qualquer forma na Segunda Emenda, existem argumentos sugerindo que ela está em risco, mas nenhuma emenda a Constituição é absoluta (…) Você não pode abrir fogo contra um cinema lotado e chamar isso de liberdade de expressão”, reforçou o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em seu discurso no dia 8 de abril.
O primeiro passo rumo ao endurecimento da regulamentação foi dado na quinta-feira, dia 8 de abril. Na ocasião, Biden anunciou uma série de medidas que restringem a venda de materiais e ferramentas que possibilitem a montagem de uma arma caseira. As gost guns (“armas fantasmas” em tradução literal) são uma grave questão no país, pois elas não possuem número de série ou qualquer espécie de registro, então não há como localizá-las e obter um dado oficial de quantas estão em circulação, e nem identificar seu portador, podendo ele ser uma pessoa menor de idade ou até alguém com problemas mentais.
Nestes quatro anos que Biden estará à frente da Casa Branca sua briga contra grupos pró-armas e a própria bancada republicana certamente será intensa. Ainda existe uma resistência muito forte por parte dos americanos em aceitar a mudança de uma realidade que já dura décadas. As lojas de armas são comuns e elas estão espalhadas pelo país inteiro. Estima-se que atualmente, nos EUA, mais de 50 mil unidades estejam ativas, sem contar os e-commerces e vendedores privados. Normalizar os massacres e os tiroteios é fechar os olhos para um problema sério, que em 2021 caminha para bater recordes. Possuir uma arma não pode ser disseminado como sinônimo de proteção, porque não é. Grande parte dos ataques com armas de fogo vivenciados pelos Estados Unidos poderiam ter sido evitados se lá atrás uma regulamentação competente tivesse sido escrita.