Pena Capital: Trump deixa sua marca na história dos EUA

Maria Tereza Ribeiro
Revista Provisória
10 min readDec 15, 2020

Quando Alfred Bourgeois recebeu a injeção letal na Penitenciária de Terre Haute, em Indiana, no último dia 11 de dezembro, ele se tornou o décimo a ser executado pelo Governo dos Estados Unidos em 2020 depois de 17 anos sem mortes em âmbito federal. Aos 56 anos, o americano condenado em 2002 por torturar e assassinar sua filha entra na longa lista de pessoas que perderam suas vidas pelas mãos da justiça nacional. No total 1529 nomes já foram executados no país desde 1976, quando a pena capital foi restabelecida após um hiato de quatro anos. Os Estados Unidos, junto com a China, Vietnã e Tailândia, são uma das poucas nações que ainda aplicam a punição regularmente em seu território, sendo a única ocidental.

De acordo com o Centro de Informação Nacional (Death Penalty Information Center — DPIC), os primeiros registros da aplicação da pena de morte nos EUA são do século XVII, mais precisamente 1608, ainda durante o período colonial. Na ocasião, o Capitão George Kendall foi morto depois de ter sido descoberto que ele atuava como um espião para a Espanha. A princípio utilizada para punir apenas aqueles que atentassem contra a segurança nacional, a exemplo de Kendall, a pena capital não demorou muito até ser vista como “solução” para culpados de assassinatos e estupros, fazendo a taxa de execuções aumentar exponencialmente conforme o passar dos séculos.

Gráfico mostra a evolução no número de execuções ao longo dos séculos nos EUA — Imagem: Death Penalty Information Center

Ao longo dos primeiros 200 anos a aplicação da pena capital não possuía uma regulamentação clara sobre seus critérios e métodos, sendo só melhor organizada no início do século XIX, quando os estados foram redigindo seus respectivos Códigos Penais. Maine, Wisconsin e Michigan aboliram a punição de seus territórios ainda nesse período, este último sem um único registro de execução desde que se tornou um estado em 1837. Apesar de uma movimentação contra o uso da pena capital no país, os EUA viveram seu grande pico de mortes entre os anos de 1900 e 1967 com mais de sete mil execuções. Os altos números observados em um curto espaço de tempo fizeram uma discussão sobre a punição ser levantada, questionando justamente sua aplicação descontrolada por parte dos júris.

Aqueles contrários à pena capital alegavam que seu uso era cruel e inconstitucional, pois esbarrava na Oitava Emenda da Constituição Americana, que condena a aplicação de medidas consideradas desumanas. Já para aqueles à favor, a sentença representava justiça pelos crimes cometidos, algo próximo da linha de pensamento “olho por olho, dente por dente”, do Código de Hamurabi. O debate, que foi ganhando força no decorrer da década de 60, alcançou seu ápice quando em 1972 a Suprema Corte dos Estados Unidos reduziu a condenação de mais de 600 pessoas que estavam no chamado “Corredor da Morte” para prisão perpétua após três casos ganharem relevância no país por criticarem o uso arbitrário da pena capital.

Furman e Jackson, julgados no estado da Geórgia, e Branch, no Texas, foram os responsáveis por levar a Suprema Corte à decisão. Os três acusados, junto com suas respectivas defesas, questionavam o fato de terem sua culpa e pena determinada por meio de deliberações entre um grupo de pessoas orientadas a sentenciá-los a morte, mesmo sabendo que suas execuções representariam a violação de duas importantes emendas constitucionais (8ª e 14ª). Em razão dessa incoerência entre o texto da Carta Magna e o uso da punição, foi promovida uma votação na Corte em que foi decido, por cinco votos a quatro, que a liberdade de julgamento prevista no Código Penal poderia resultar em condenações arbitrárias, portanto, sem respaldo legal.

Membros da Suprema Corte que votaram à favor do caso Furman v. Gerogia — Imagem: www.ncadp.org

O resultado da votação também fez a Suprema Corte americana revogar 40 estatutos estaduais que previam em seus Códigos a pena de morte e, por quatro anos os Estados Unidos não registraram nenhuma execução em seus presídios. Em 1976, no entanto, ao invés de abolir de vez a punição, novos textos foram redigidos pelos estados, desta vez mais detalhados em relação aos critérios e sem as partes que deram abertura para os questionamentos em 72. É válido destacar que por serem um país que prevê em sua Constituição a autonomia de seus estados, os EUA funcionam em dois níveis distintos, o federal e o estadual. Ou seja, cada um dos 50 territórios americanos funcionam sob uma legislação diferente, existindo situações legais em uma região que ao cruzarem a fronteira passam a ser crimes, além das leis que se aplicam ao país inteiro.

A autonomia, portanto, também se reflete na aplicação da pena de morte, que, segundo o DPIC, é prevista em 28 estados, três deles sob moratória governamental (está no Código Penal, mas se encontra suspensa). Dentre esses territórios, o que mais aplicou a punição foi o Texas com 570 execuções nos últimos 46 anos, um pouco mais de um terço do número total, no momento em 1529. Disparado o que mais cumpre com suas condenações, atualmente menos de 220 pessoas estão no “Corredor da Morte”, o estado também aparece entre os primeiros quando o assunto é executar possíveis inocentes. Dos 18 casos com fortes indícios de inocência no país, dez foram no Texas. Um dos mais conhecidos é o de Cameron Todd Willingham, retratado nos cinemas no ano de 2018.

O filme “Justiça em Chamas”, estrelado por Lauren Dern e Jack O’Connell, conta, então, a história de Willingham, condenado a pena de morte depois de ter sido considerado culpado da morte de suas três filhas em um incêndio tido como proposital pela justiça do Texas. Visto como o suspeito perfeito pelas autoridades estaduais, Cameron sempre alegou inocência perante as acusações, mesmo quando foi oferecido a ele um acordo para evitar a pena capital. Através do longa metragem e das informações presentes no DPIC fica claro que houve falha nas investigações e na perícia feita no local do incêndio. Para seus defensores, a justiça texana só queria alguém para acusar e entregar a sociedade, sendo sua culpa nunca de fato comprovada. Até hoje, 16 anos após sua morte, sua condenação é questionada com evidências de que o caso foi, na verdade, um trágico acidente.

Cena do filme “Justiça em Chamas” mostra Cameron Willingham (Jack O’Connell) e Elizabeth Gilbert (Lauren Dern) — Imagem: Reprodução

Willingham foi julgado e condenado em âmbito estadual no ano de 1992, sendo todo o processo até a execução, em 2004, realizado sob a jurisdição do estado do Texas. Para alguns casos específicos, no entanto, considerados de alta gravidade, a exemplo de crimes de ódio, assassinatos múltiplos, brutais e atentados contra a segurança nacional, o julgamento e a condenação passam a ser responsabilidades do Governo Federal e do Departamento de Justiça, e não mais do estado em que o crime ocorreu. Extremamente raras, as execuções federais foram restabelecidas em 1988, 12 anos depois do retorno em nível estadual, representando apenas 1,17% do total registrado desde 1976.

Foram realizadas 13 execuções até o dia de publicação desta matéria, 15 de dezembro, dez delas só em 2020. Sob o mandato de Donald Trump, defensor assumido da pena capital, o “Corredor da Morte” federal, que estava parado a 17 anos, voltou a andar. A Suprema Corte já havia autorizado a retomada dos procedimentos em julho de 2019, porém pedidos de adiamentos, recursos judiciais e a própria pandemia da Covid-19 atrasaram em praticamente um ano os planos do presidente de cumprir uma de suas promessas de campanhas. Trump afirma estar agindo para garantir que a justiça às vítimas e suas famílias seja feita, sendo um dever do Estado levar a sentença adiante.

Sem mais possibilidades de reagendamento, a Suprema Corte não acatou os pedidos de suspensão e adiamento por parte dos familiares das vítimas de Daniel Lewis Lee, 47, e confirmou sua execução na madrugada do dia 14 de julho deste ano. Horas mais tarde, Lee, condenado em 1999 por assassinar um casal e sua filha no estado de Arkansas três anos antes, recebeu a injeção letal na Penitenciária Federal de Terre Haute, se tornando o primeiro em quase duas décadas sem mortes em âmbito nacional, o último tinha sido Louis Jones Jr, em 2003, acusado de estuprar e matar uma jovem militar no ano de 1995.

Daniel Lewis Lee durante julgamento, ele ficou 21 anos no Corredor da Morte até ser executado no dia 17 de julho de 2020 — Imagem: DAN PIERCE / AP

Não demorou muito para a quinta execução federal ser realizada. Dois dias depois da morte de Lee, Wesley Ira Purkey, 68, também teve o mesmo destino de seu companheiro de prisão. Os defensores do acusado até tentaram mudar sua pena para prisão perpétua alegando graves problemas neurológicos por parte de Wesley, porém o esforço foi em vão. Com uma injeção de pentobarbital (paralisante muscular comumente utilizado para eutanásia), Purkey, culpado pelo estupro, assassinato e esquartejamento de uma adolescente de 16 anos em Kansas City, Missouri, no ano 1998, foi morto após pedir perdão à família da vítima, que foi para Indiana acompanhar sua execução.

Pouco mais de 24 horas depois, foi a vez de Dustin Lee Honken, 52, o terceiro condenado a sofrer a pena capital pelas mãos do Governo Federal em uma única semana. Considerado culpado pelo assassinato de cinco pessoas, entre elas duas crianças, em 1993, Dustin foi o primeiro a ser sentenciado à morte no estado de Iowa em um período de 40 anos. Seu caso, que ficou conhecido nacionalmente na época em função de sua brutalidade, foi levado ao âmbito nacional, sendo sua execução realizada também no Presídio Terre Haute, o único federal com espaço para o procedimento.

As três mortes na sequência representaram um aumento de 100% nas execuções federais, que ainda teriam mais setes nomes para entrar na lista em 2020. Como citamos no começo desta matéria, Alfred Bourgeois foi o último condenado a receber a injeção letal neste ano, mas antes dele o Departamento de Justiça cumpriu sua agenda com Brandon Bernard, 40. Acusado de ser cúmplice do assassinato do casal Todd e Stacie Bagley, em 1999, Brandon, que na época tinha 18 anos, foi sentenciado à pena capital em 2000, junto com o autor dos disparos fatais, Christopher Vialva, executado em setembro deste ano pelo crime.

Brandon Bernard com sua mãe (ao centro) e seus irmãos — Imagem: Divulgação

No “Corredor da Morte” durante 20 anos, seu caso gerou grande repercussão na mídia nacional após cinco jurados dos 12 que o condenaram, além de uma promotora, declararem publicamente que Brandon não merecia ser executado por um crime que ele não cometeu. De acordo com sua defesa, o então jovem foi responsável por incendiar o carro onde estavam os corpos de Todd e Stacie, mortos por Vialva, e não assassinou ninguém como apontava a investigação apresentada ao júri, sendo, portanto, a pena capital extremamente severa e arbitrariamente escolhida, o que viola os Códigos Penais.

Apesar dos inúmeros esforços não só de sua defesa, mas também de figuras públicas importantes, como Kim Kardashian West, em mudar sua sentença para prisão perpétua, a Suprema Corte não revogou sua decisão e manteve programada a execução de Brandon Bernard. Na noite da última quinta-feira, 10 de dezembro, aos 40 anos de idade, o americano recebeu a sua dose da injeção letal. Segundo testemunhas presentes em Terre Haute, Brandon fez questão de falar com a família de uma das vítimas, ele disse: “Eu sinto muito. Essas são as únicas palavras que posso dizer que captam completamente como me sinto hoje e como me senti naquele dia”.

Além das dez execuções já realizadas este ano, o Governo de Donald Trump ainda tem mais três marcadas em seu calendário: Lisa Montgomery, Cory Johnson e Dustin Higgs. É a primeira vez, em pouco mais de 100 anos, que um presidente americano cumpre com tamanho número de penas em período de transição de governos. Serão seis mortes em menos de dois meses e meio (de novembro de 2020 a janeiro 2021). Se você somar com as outras sete execuções já feitas, o recorde se estende e Trump se torna o Chefe do Executivo a ter mais mortes federais em um mesmo ano nos últimos dois séculos.

Presidente Donald Trump — Imagem: EPA/Photo

A posição assumida por Trump em seu governo vai contra a opinião da sociedade americana, que majoritariamente prefere a prisão perpétua à pena de morte, como mostra a pesquisa realizada pela Gallup no mês passado, em que cerca de 60% dos americanos são contrários à execução de condenados. Esta é a primeira vez na história do país que a preferência muda de lado. Para os especialistas, o resultado comprova uma tendência que já vinha se formando entre a população nacional nos anos anteriores. Um exemplo disso está no número de estados que aboliram completamente a pena de seus Códigos Penais, hoje são um total de 22. Entre aqueles que ainda a possuem, menos da metade de fato aplicam a pena capital.

Trump deixará a Casa Branca no próximo dia 20 de janeiro com um saldo de 13 execuções federais, um verdadeiro recorde para um mandatário. No seu lugar entrará o democrata Joe Biden, contrário a pena de morte, que já anunciou sua intenção de abolir a punição em âmbito nacional e de incentivar os estados a seguirem o mesmo caminho. Apesar de não ter conseguido a reeleição, nos quatro anos em que ficou à frente dos Estados Unidos, Trump conseguiu deixar sua marca na história do país. Defensor de políticas conservadoras, o futuro ex-presidente da maior nação do mundo saí pela porta dos fundos com a imagem de tolerância zero e com a sensação de dever cumprido.

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Maria Tereza Ribeiro
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Estudante de jornalismo apaixonada pelo mundo da comunicação e, pelo esportes e suas histórias!