Torcida única nos clássicos paulistas: a ineficácia da medida que quer combater a violência nos estádios

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6 min readMar 30, 2022

Por: Ana Beatriz Kubata

No último dia 25 de março (sexta-feira) a batalha da Inajar completou 10 anos. O confronto entre torcidas de Palmeiras e Corinthians resultou em um ciclo de mortes e vinganças que mudou o rumo da história dos torcedores que frequentam os estádios no estado de São Paulo.

A Batalha de Inajar envolveu as torcidas de Palmeiras e Corinthians e terminou com a morte de um torcedor alviverde. — Imagem: Globo Esporte

Há quase seis anos os clássicos paulistas não contam mais com ambas as torcidas nos estádios. Em abril de 2016 , o Ministério Público de São Paulo estabeleceu que os jogos entre São Paulo, Palmeiras, Corinthians e Santos deveriam contar apenas com torcedores do time mandante. Segundo as autoridades, seria necessário abrir mão da presença da torcida mista para, assim, garantir a segurança nos estádios e minimizar os casos de violência no ambiente do futebol paulista.

Desde então, todos os confrontos entre os quatro maiores clubes paulistas contam apenas com uma das duas torcidas. Os números, porém, mostram que mesmo com apenas uma parcialidade nas arquibancadas, a violência continua sendo um problema latente na rotina do futebol paulista.

A Batalha da Inajar

No dia 25 de março de 2012, um grupo de palmeirenses se reuniu em um posto de gasolina localizado no cruzamento da Avenida Inajar de Souza, uma das mais importantes na cidade de São Paulo. Lá, foram surpreendidos pela chegada de um ônibus lotado de corintianos que ali desembarcaram partiram em direção aos torcedores alviverdes — André Alves Lezo e Guilherme Vinícius Jovanelli Moreira foram as duas primeiras pessoas a morrerem espancadas no episódio trágico — e não seriam as últimas vítimas do cenário de rivalidade brutal tão presente no futebol brasileiro. O caso gerou uma onda de revolta e se tornou um marco da disputa entre torcidas organizadas no estado e mudou a configuração das arquibancadas paulistas.

A Avenida Inajar de Souza virou um símbolo de confronto entre torcidas — Imagem: Globo Esporte

As investigações sobre esse caso foram encerradas em 2015 após o Ministério Público condenar 29 pessoas — sendo 16 corintianos enquadrados nos crimes de duplo homicídio associação criminosa, enquanto 13 palmeirenses foram denunciados como parte de associação criminosa. Até hoje, ninguém foi condenado e o caso espera por julgamento que está travado por recursos que não foram analisados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Os números da violência nos estádios hoje

Desde abril de 2016 a torcida única nos clássicos paulistas é uma realidade. A decisão anunciada pelo então Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Alexandre de Moraes, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), completa 6 anos de vigência no estado. O decreto é visto pelas autoridades como forma de prevenir, e combater, a violência nos estádios — mesmo que para isso seja necessário abrir mão da alegria da dualidade nos jogos. Mas a sequência de acontecimentos e a permanência dos casos de confusão e briga entre torcedores, mesmo impedidos de dividir arquibancadas, mostra que o problema da violência no futebol é muito delicado e não se restringe ao local da disputa.

A maior parte das ocorrências acontece longe dos estádios. Um artigo publicado no site Placar por Maurício Murad, sociólogo e pesquisador da violência no futebol há mais de 30 anos, traz dados que comprovam a ineficácia da decisão do MP/SP no combate às brigas entre torcedores rivais. Segundo ele, 90% dos confrontos aconteceram em locais que se encontram a até 60 quilômetros distantes do estádio. Em 2019, das 161 mortes registradas causadas por brigas de torcidas, 96% delas ocorreram longe de onde o jogo aconteceu.

A invasão do torcedor ao gramado na disputa da semifinal da Copinha em 2022, decisão entre Palmeiras e São Paulo, também foi palco e prova da ineficiência do poder público e de como faltam iniciativas e políticas que cuidem, de fato, da segurança dos torcedores durante as disputas. No episódio em questão, a camisa na arquibancada era 100% do time do Morumbi e houve uma confusão quando alguns integrantes da torcida tricolor invadiu o gramado na tentativa de agredir os jogadores palmeirenses. Um tempo depois, foi encontrada uma faca no campo, que teria sido arremessada da arquibancada. Ninguém se machucou durante o ocorrido.

Na semifinal da Copa São Paulo de 2022, torcedores são paulinos invadiram o gramado e foram contidos pelos jogadores do São Paulo — Imagem: R7 Esportes

Outro episódio emblemático que dá sequência a essa problemática aconteceu no último dia 30 de janeiro de 2021, quando integrantes da Mancha Alviverde, principal torcida organizada do Palmeiras e membros da Gaviões da Fiel, a maior uniformizada do Corinthians, entraram em conflito no dia da decisão da Copa Libertadores. A partida, entretanto, não envolvia o time de Itaquera. A final foi entre Palmeiras e Santos, no Maracanã, Rio de Janeiro. Na briga, o corintiano Wallace Tomaz, de 29 anos, foi morto a tiros em Sacomã, bairro da zona sul paulistana. Outro corintiano também foi baleado na ocasião, mas resistiu aos ferimentos.

O posicionamento das instituições têm pouca expressão

A Federação Paulista de Futebol (FPF) é contra a restrição e chegou a enviar ao Ministério Público um pedido formal pedindo revisão da decisão. Porém, a solicitação não obteve sucesso e a promotoria informou aos clubes que o cenário não mudaria na temporada de 2022. Os clássicos paulistas permanecem com obrigatoriedade de torcida única.

Uma reportagem do portal O Tempo questionou os quatro grandes clubes de São Paulo sobre o decreto. Apenas o Corinthians respondeu ao questionamento e afirmou não ser favorável à medida pela evidente ineficácia do combate a violência. O time do Parque São Jorge também pede que a restrição seja revista pelas autoridades.

Um cenário que não está restrito ao futebol

A permanência dos casos de violência no futebol paulista mostra a ineficiência da medida que proíbe a torcida visitante nos estádios — visto que a crise de segurança no ambiente esportivo não foi solucionada. A decisão pela restrição das torcidas mostra uma tentativa dos poderes públicos de responder, de forma midiática, a um problema que não está limitado ao futebol. O cenário de violência é um quadro que estampa a realidade de diversos grupos sociais marginalizados no Brasil. Em todo caso, é numericamente desproporcional considerar que quem pratica as agressões é maioria no meio em que vivemos. Na verdade, os grupos violentos representam a minoria dentro das torcidas — cerca de 5% das maiores uniformizadas do país representam esse perfil. Dito isso, é preciso entender que as políticas públicas devem ser instrumentos de alcance geral e, portanto, não devem se basear em fatos que expressam uma minoria dentro de um todo da sociedade.

O que precisa ser desenvolvido no Brasil é uma iniciativa articulada que busque, de fato, a reestruturação das dinâmicas realizadas — também pelas torcidas — mas, principalmente, pelas forças de segurança que atuam nos estádios e em outros espaços que contam com a presença dessas dualidades. Mais uma vez, devemos lembrar que a violência engatilhada pelo futebol não é exclusiva do ambiente esportivo, e sim um reflexo do viés da violência social que permeia o país. Enquanto não houver discernimento e estruturação por parte das autoridades que comandam a segurança do estado e, consequentemente, do futebol paulista, medidas restritivas continuaram sendo ineficazes. Tratar os conflitos que envolvem uma paixão tão forte quanto o futebol de maneira punitiva jamais resolverá o problema da violência nas arquibancadas, muito pelo contrário. Essa repressão, além de incitar ainda mais revolta por parte da torcida, mostra como os órgãos de segurança pública não entendem a configuração social do Brasil e muito menos sabem como lidar com episódios violentos que quase sempre acabam em tragédia, dentro ou fora do estádio, em dia ou não de jogo.

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