As asas

Por Marcelino Freire

Revista Rosa
Revista Rosa #3

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Estrela quando entrou a boate inteira parou, todo mundo a chamava de Deusa, um grupo fez um círculo em torno dela, o palco ficava no chão, ela desfilava entre as mesas, boquiabertas, soltava a voz, não dublava, havia uma gravação apenas com os instrumentos, eram dela, ao vivo, os gritos e trejeitos de Carmen Miranda.

Por que as travestis se parecem comigo, pensei, Estrela era mais velha do que eu tinha imaginado, cheguei a apostar que fosse ela uma garota, sei lá, os peitos ainda estivessem no lugar, as roupas fossem mais modernas, no entanto ela era uma dama, uma cantora de rádio, enfeitada de plumas, subia as mãos ao céu, mostrava os anéis, os colares magníficos, as falsas pérolas.

O show demorou uns quarenta minutos, depois ela retornou, esvoaçante, às mesas, pessoas puxavam cadeiras para ficar em sua companhia, outras enfiavam dinheiro entre seus seios, montados, ela agradecia com um beijo rápido nos lábios do público.

Preparei o meu ataque, a mesa em que eu estava era embaixo da escada, a mais escondida, que é para onde vão os machos que não se assumem, os maridos infiéis, padres e coronéis, figurões, não era esse o meu caso, é que o meu assunto necessitava de sombra, como se estivéssemos embaixo de uma árvore, em um parque de diversões.

Fiz um sinal, modesto, e Estrela veio, antes chegou até mim o seu cheiro de perfume, seguido do brilho do vestido, cafona, que a apertava por inteiro, pus em sua mão uma ótima quantia e fui logo, firme, direto na veia, sem arrodeios, eu sou amigo de Cícero.

Cícero, o nome do boy morto fez um estrondo, paralisante, Estrela se sentou imediatamente à minha frente, mal deu tempo de agradecer a grana, você sabe que ele morreu, mataram ele, não sabe, alguém muito covarde, eu cansei de avisar para ele não se meter em coisa que não prestava, não era nenhum anjinho o capetinha, ela me encarou, ironicamente, esse mundo é assim, meu bem, e você, meu senhor, quem é que é?

Eu sou Heleno, estou aqui para saber da família do rapaz, eu quero, eu tenho o dever de dar destino ao corpo, para isso preciso entrar em contato com alguém, daí fiquei sabendo que só você pode me ajudar, depende de quanto eu vou levar, ela me disse e repetiu, esse mundo é assim, meu bem, me procure amanhã, aqui mesmo, em cima da boate, viu, é onde eu vivo, é só chegar e perguntar por mim, no final da tarde, não me venha muito cedo, e se despediu, da mesma forma como veio, Estrela e Diva, sem nenhum beijo, sumiu.

[Trecho de “Nossos Ossos”, o primeiro romance do contista pernambucano Marcelino Freire, com lançamento previsto ainda para este ano pela Editora Record, por onde o autor lançou, entre outros, o livro “Contos Negreiros”, Prêmio Jabuti 2006. Para saber mais, acesse: marcelinofreire.wordpress.com]

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Revista de arte e literatura com temática Queer/LGBT