Porque eu sou uma boneca

por João Gomes

Revista Rosa
Revista Rosa #4

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1. Porque eu sou uma boneca. Ainda que por ironia, eu sempre fui e aceito, ao menos por dentro, de tanto que me chamaram. Se eu não era e assim dizia mamãe quando lhe contava, como quem amanhece, virei toda a noite numa metamorfose de tanto pensar até incorporar uma. Já vim na caixa. Embalada para ser aberta e por braços de novo ser embalada. Dessa vez palavra definiu, acrescentou no procedimento de existir, e pode perguntar no bairro ou no dicionário que estou lá: boneca.

2. Mas eu não dependia de nomes. Saberia, como ainda hoje sei, guiar para o limite do fim a minha narrativa, assim como é posto para dentro no término do expediente os manequins duma loja. Se passei, se fui fabricado, por instantes o mundo teria que me ver. Que se escondessem no armário as roupas que não decidi usar, no estoque o que ninguém deseja comprar. Estava decidido de apenas no caixão me esconder de vez, com tempo de todos me verem e se despedir, para que a boneca aqui descesse, mas só quando algo subisse como sobe a morte à cabeça.

3. Decidi na altura do mesmo solo andar de corpo levado como a vontade pede, ainda que sofrendo a dor desigual. Porque aprendi que só vive quem escolhe e sustenta a escolha, ainda que para se destruir. Nunca fui de especular tanto assim, basta de imprecisões, isso fica pro depois, com a chave do mistério entregue e a morte batendo na porta do camarim dizendo Cinco minutos, linda, agonize um pouco, e vamos por aqui.

4. Recordo a infância, tudo bem que no começo fui uma boneca que menina nenhuma topava brincar, gritando Essa não quando a mãe segurava no peito a mais barata decidindo levar para o caixa. Com exceção somente aos olhos delas que eu não parecia, mas com razão para não me iludir no momento da minha defesa, hoje até agradeço pelos Liga não.

5. Brincar para perder assim que ganha ficou para os meninos, mas não todos, só os que me chamavam, para eles coube a função de me desmembrar, assim como outro dia fez um motorista com o braço dum ciclista em SP. Para eles era difícil encarar o diferente, logo entendi, sabendo encarar sem como segurar o lenço para enxugar as lágrimas.

6. Boneca, assim como as meninas, era plástico maleável, frágil mesmo que tivesse a mesma força para encarar os comentários dos que provocavam. As meninas podiam ser manequins, levadas pelo narcisismo alheio, e logo sentavam, quando faltava assento, no colo de seus donos e permaneciam até entupidas por baixo o plástico furar. Mas nós bonecas, e somente isso e obrigado existência, como objeto interiorizado apenas por átomos sem nenhuma célula, ficávamos com nossos olhos de vidro observando as comparações, o machismo e as suas vantagens.

7. Se esperar já era destino, uma noite a boneca se descabelou, deixou de ser desmembrada para o riso e foi percebida pela sua respiração. Nosso valor se deu mesmo quando o tempo esticou nossa borracha, quando enterrou na nossa cabeça o que decidem fazer os fortes guiados pela busca duma identidade. E como queríamos ser, sozinha ou agarrada a outras bonecas, conjugamos esse verbo que limita e fixa regras. Como a loucura, no vazio dos outros fomos devoradas pelo cego desejo dos que passavam por ali ser uma porta, nada mais.

8. No interesse, alguns dos que gritaram nas esquinas Pega a boneca! tentaram se amigar para comer também, A fome não acaba nunca, viçosa me disse mamãe, no suingue. Esperando por um vejo esses soldadinhos de chumbo que nunca na vida se encontraram, nunca pararam em si, tal qual uma roda gigante num parque de diversões fechado. Soldadinhos de chumbo que só marcharam, que falando em lá trás diz logo Vai com essa ideia pra lá. Por serem vítimas de si mesmos é inalcançável, eu entendo, para eles o passado.

9. Infelizmente, nada criamos, por mais que se peça e tentemos encarar o medo de ficar só, nada criamos fora as doenças que eles deixam no nosso corpo e as lágrimas pelo abandono. Os filhos que não tivemos é que vão nos matar. As lágrimas que derramamos é que vão limpar o caminho que fez nossos pés. Mas os manequins, diferente das bonecas, arriscam na prole da continuidade da espécie, fazem vidas por esporte, descuido, Porque na hora que teve o disparo ele gozou mas estava certo de ser na cara, e no consultório a médica ouvindo sem muito se importar, Mas tome a pílula, e eu ouvia aguardando a enfermeira trazer as camisinhas.

10. Nascem outros manequins para ficarem expostos nas calçadas como mercadoria ou nascem soldadinhos para chumbar mais do que já é os limites de nossa existência. Hoje, no meu quartinho, olho para as bonecas e ursinhos que foram de minha irmã. Penso no só isso e nada mais que eles diziam que eu era, a raiva por saber que outras bonecas, muito ainda de colo, se destratam sofrendo pela liberdade que não aprenderam a conquistar. Seriam bem mais felizes sozinhas, ainda que em vários braços continuando ainda sendo embaladas mesmo se tontas.

11. Por não ter ido batalhar essa noite ele sabe que estou em casa. Não ligo porque sei que seu manequim está cuidando dum velho nessa madrugada, assim como o que faço para me sustentar foi o que arranjou. É tudo enredo e é verdade que por ter de vez virado uma boneca, desde cedo tomo hormônio, emprego nenhum me aceitou. Quando procurava, antes até da entrevista, ouvia o Será algazarra na firma essas suas enormes bolsas de silicone e então pra não começar siga por aqui. Fazendo exclamações de espanto o salto fazia o caminho que me levava a entender que quem dizia sabia que verdadeiro mesmo eram apenas os sentimentos e a vontade de trabalhar.

12. Se é que há o errado espero por ele, o soldadinho de chumbo da manequim, sabendo que seus familiares não o deixariam brincar com uma boneca. Prefiro assim mesmo a vida, não desejo que se tire nada, seria intolerável existir tirando um só detalhe. Se ele não chegar relembro suas outras vindas e gozo grosso e quente do mesmo jeito. As outras vezes, tão mais novo do que já é, sobre mim. Além da demora para chegar faz sempre aquele suspense para se identificar quando chega. Diz que o que faz ainda não se identifica, pensa na porta toda vez que sai do armário. Controlador de opiniões, gosta, ele que disse, quando eu tremo na base por saber que só nela posso me acalmar.

13. Porque sempre vão achar que foi somente uma escolha por eu ser assim num resumido Sim, vou fazer boceta sofrer ou Não, minha terra é boa pra plantar macaxeira. Porque parece que o objeto aqui nada sente fora a quentura da fusão. É fácil perguntar a Deus e não ser respondido para dar a resposta que primeiro vem. A boneca aqui se vai sabendo que para pensar o porquê logo pede-se refúgio no como. Escolhi ser linear para viver minha história, nada de pausas, já que quem eu espero ainda não encontrou coragem para o seu por que. Porque alguém precisa estar pronto. Sempre.

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Revista de arte e literatura com temática Queer/LGBT