O paraíso ficou no passado

por João Silvério Trevisan

Revista Rosa
Revista Rosa #4

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Três filmes atuais tematizam a homossexualidade de modo crucial: “Azul é a cor mais quente”, “Um estranho no lago” (ambos lançados comercialmente) e “Fazendo silêncio” (exibido no Festival Mix Brasil de 2013). O impacto da sua abordagem remete a dois outros filmes mais antigos e igualmente emblemáticos: “Algo muito natural” (A very natural thing), filme americano de Christopher Larkin (1974), e “Você não está sozinho” (Du er ikke alene), filme dinamarquês de Ernst Johansen e Lasse Nielsen (1978) — ambos recém lançados em DVD. A comparação entre o passado e o presente evidencia um desenrolar curioso do Zeitgeist em relação ao tratamento da homossexualidade: aquilo que se conquistou foi aquilo que se perdeu.

Ambos os filmes da década de 70 pretendem-se (e chegam a ser) inovadores — cada um à sua maneira, pois trazem duas diferentes abordagens sobre a homossexualidade “natural”. O que sobra de artifício no filme americano surpreende no tratamento sem amarras do filme dinamarquês. “Você não está sozinho” apresenta um olhar legitimamente problematizado sobre a sexualidade adolescente do final da década de 70, buscando fundamentar uma construção amorosa, no quotidiano da vida interiorana. Enquanto isso, “Algo muito natural” tem um viés pretensamente documental, mas acaba mais preocupado com uma normatização da homossexualidade. Espelha sim o momento das lutas libertárias pelos direitos homossexuais, no bojo do movimento maior da contracultura. Mas é também um espelho narcísico: não consegue esconder o orgulho de estar “fazendo História”, numa autocomplacência dissimulada que, daí por diante, instauraria a normatização no escopo de boa parte do movimento pelos direitos homossexuais. Os dois filmes setecentistas valem para evidenciar a distância entre um cinema militante que visa à solidez da integração e outro cinema cuja abordagem acontece na corda bamba entre ser e refazer. Em suma, levanta-se a velha questão hamletiana no desenrolar histórico da consciência homossexual: integrar-se ou desintegrar — dilema que já abordei num artigo inserido como apêndice no meu livro “Devassos no Paraíso”.

Agora, a ressaca quebrou as dicotomias e expectativas. “Fazendo silêncio” mostra no interior da Holanda, país de leis sexuais avançadas, homens que ainda não sabem declarar seu amor e um adolescente simplório que chora de culpa após sua primeira transa — com o fazendeiro mais velho, a quem ama. Enquanto isso, o leiteiro e o fazendeiro que se amam secretamente não conseguem ir além de olhares furtivos, num silêncio ruidoso, incômodo. Em “Azul é a cor mais quente”, o universo lésbico pode sim revelar crueldades na relação entre duas mulheres — outra vez, é a mais jovem que chora de desamparo pela perda do amor da mais velha. Na cama, as amantes se amam como amam, para além de uma suposta naturalidade à base de beijinhos e carinhos. Ao invés, é um amor quase selvagem, que o diretor Kechiche nos mostra de maneira invasiva, durante longos 7 minutos de escancaramento fisiológico. Em “Um estranho no lago”, há os homossexuais liberados que no verão francês vão transar com desconhecidos numa praia nudista gay, à beira de um lago. O dia a dia desses homens é tão obsessivamente sexualizado que eles embotaram seus sentimentos, sem dar importância ao “assassino que está entre nós”. O único que sofre por amor é um bissexual gordo que não entra no padrão de beleza local. O único a ter consciência da perda de humanidade, misturado com pessoas que se tornaram máquinas de fazer sexo, é o investigador da polícia. Ambos deslocados do meio “liberado”.

Quando se procura fechar um ciclo, dos anos setenta até esta segunda década do século 21, topa-se com homossexuais como anjos decaídos. No final quase angelical de “Você não está sozinho”, dois adolescentes se beijam num filme que toda a classe produziu para ilustrar os dez mandamentos. Espertamente, o filme termina ilustrando apenas o primeiro mandamento — como se não importassem os demais, quando o dever máximo é amar, sem pruridos nem medos. Adolescentes são apresentados tomando banho com seus membros à mostra, e um garoto comenta com outro o tamanho surpreendente do pênis do colega que ele ama. Os fatos não são isolados. Tudo isso acontece numa classe de alunos que descobre o sentido da solidariedade — homossexuais ou não — e daí o sentido absoluto do amor. Apesar de não haver artificialismo, certamente alguma coisa mudou desde esse olhar legítimo mas ingênuo demais.

Ao se perguntar se podemos vislumbrar algo desse amor paradisíaco com o qual os homossexuais um dia sonharam, os três filmes atuais mostram que quase não sobrou pedra sobre pedra. Para qual caminho apontam, nenhum deles deixa claro. Talvez os dois adultos holandeses possam algum dia realizar o seu amor, se conseguirem vencer o silêncio que, apesar de tanto barulho libertário, continua imperando na contramão do cinismo das sociedades “integradas” — homossexuais aí incluídos.
(fevereiro de 2014)

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Revista de arte e literatura com temática Queer/LGBT