Vícios de linhagem

por Luci Collin

Revista Rosa
Revista Rosa #4

--

O que é que a inocência vem fazer aqui?
S. Beckett

A Golda quando apareceu com aquela tatuagem enorme no braço me causou um sentimento de dúvida. Eu fiquei com medo daquilo porque era mal feito, as cores dum fosco medonho nem sei se a superfície mole flácida gigante movediça atrapalhara o trabalho do artista. Contraditório: também me trouxe uma emoção diferente, acho que as voltinhas escrotas simulando cuidado, o estilo, a intenção, e eu perguntei pra criatura (Golda) Quer encostar a cabeça nos pelos brancos do meu peito?

Ela disse algo sobre não ter cabeça ou eu não ter pelos brancos ou eu não ter pelos brancos no peito. Tenho sentimentos porra (sabe quando o balde bate lá no fundo do poço? nunca vi, mas imagino) e quando olhei pra Poline ela estava com os olhos cheios d’água porque tinha tomado algo forte: uma overdose de lantanídeos (sim, curte muito os elementos de transição interna). É dada a sofisticações as quais jamais pude acompanhar. Com aquele olhar especialíssimo a Poline compreendeu a essência do desenho na pele. E mais além, compreendeu o que eu vira em meu próprio olhar. Pele um papel. Às vezes eu tenho orgulho da Poline, mas às vezes enche o saco ser irmão de um traveco porque a casa tem cheiros inusitados, tipo acetona da promoção, tipo novos conceitos de comida congelada, tipo outras coisas que nem sei. Desculpa aí o desabafo. Eu bem que comia a Poline se ela não fosse minha irmã — cara, acho bom conferir melhor essa história porque agora bateu um branco: será que é mesmo sangue do sangue?

É que às vezes a gente repete tanto uma história, um fato, um acontecimento que primeiro fica parecendo que é verdade e depois é verdade. Agora não me venha com essa de que a Gorda [sic] é parente. A Golda era afinadíssima mas só na minha cabeça. Pensei em sexo. Algo remoto e demorado, tudo aquilo. Dispensei. Como sempre, olhar para os pés com botas, com chinelos, com nada, os pés serão sempre a salvação imediata. Olhei. Para tanta esquisitice a salvação.

Lá longe escuto um sujeito desconhecido gritar pra Azulita: Para de roer as unhas. Isso me deu um estremecimento. Como o cara se mete no destino dos outros. E se eu me ponho a pensar vem uma lista e eu passei a vida toda fugindo das listas.

Bom mesmo era ver a Rima com a boca cheia de sangue. Ela ficava feliz fácil: porrada. Tá aí uma mulher firme em suas convicções. Sangue, eu disse, não porra. Era uma mulher definitiva. A Rima saía pelas ruas rindo feito aquela sacolinha de plástico voando por aí. Fiquei com inveja da Mulher Grande (não, não era a Golda) que matou a Rima. Matou esfaqueou cortou em pedaços e depois queimou e pôs numa mala (panela?) e jogou uma parte num barranco e outra num rio. Deu um trabalhão pra polícia juntar o quebra-cabeças. É complicado identificar partes. Me intrigou isto: onde foi achar mala barranco e rio? A Rima sim, era decidida.

A Golda, não sei. Tatuagem de índio norteamericano com cocar não dá muitos pontos. Tem uma num flanco — vi de longe. Presumi outras coisas também mas presumir é pura pretensão e aquilo me deu vergonha. Se eu tivesse com quê eu diria pra Golda Vou te comer mas ela me lembrou bem que eu não tenho cabeça nem pelos brancos perdidos pelo corpo. Nenhuma experiência. (Peraí, quem não tem cabeça, declarou-se desde o princípio, é ela e a coisa está tomando rumos falhos filosóficos fílmicos). O cara que tinha gritado aquela pérola agora retrucou: Deixa de ser viado, filho-da-puta. Mas ele falou isso pra Azulita e a Azulita é um mulherão, tem cabeça, tem pelos brancos no peito, rói unha a uma velocidade indescritível.

Por que o cara falou aquilo? Que injusto! Tem uns peitões, a Azulita, de dar inveja a qualquer padre. E ela tem dentinho pra frente já que nem era moda consertar torturas e desvios lá na cidade de onde ela vem. É do interior. Cara, sim, foi injusto. Ele tem um braço de madeira tratada. Faz sucesso.

Uma vez me contaram que ele comeu o olho de um marinheiro. Mas eu não acreditei, claro. Onde é que ele ia arranjar um marinheiro?! Isso é coisa de historinha de criança. De gibi de latrina. Tem coisas que não existem, por que que a gente fica vivendo como se se insuflassem? Irmã, por exemplo. Pode ser apenas um conceito. Depois que manda um litro de vodka pra dentro é direito natural do proponente mudar o curso da história, da embarcação, da porra que seja e da porra nenhuma. Ninguém pode falar melhor de direitos do que eu, duvida?

Golda, goldinha linda, vem sentir os pelos brancos dos meus peitos inexistentes. A Golda é (ou se faz de) surda. Isso foi humilhante. Só ia pedir pra pararem com a tal da licença poética. Se eu tivesse voz. Dá licencinha? Meto um socão na fuça da loyraça e espirra sangue e dente. Emporcalha a parede verde. Acho que falar verdinha é uma bichice. Eu não falo. Olhinhos verdinhos é coisinha de frutinha. Vermelho e verde quase que dá um semáforo. Passagem legalizada. Tá melhorando. A Golda sua muitíssimo.

O Dell declarou em júri que era irmão único da/do Poline e que a mãe deles morreu pulando do oitavo. O pai, bastante sincero, nunca existiu. Isso abre uma nova perspectiva. Em termos de parentesco. Pedi pro garçom trazer uns olhos pra gente aqui na mesa e ele se fez de desentendido. Me encarou com uma seriedade mórbida (exagerada) e soltou essa: Garçom o caralho, meu!

Coisa que eu nunca admiti em mim foi bigodinho. Acho tudo pose de quadro. Pode ser do branco e da falta do branco pelo corpo. Glóbulos. Coágulos. São as cores que nos impedem de exercer despojamento. Eu queria ser simples e, se fosse o caso, até faria voto. Mas lá em casa nunca se admitiu tamanha frescurinha. Reminiscência é leucorreia. Mas passou do tempo, me distraí com outra coisa: Golda. Uma tatuagem no rabo pode valer a pena. Fera. Caracteres chineses. ACDC ou língua pra fora. Qualquer merda.

A coisa mais triste da minha vida foi quando vi aquela carta chegar lá em casa e passou de mão em mão e ninguém era aquele nome escrito no destinatário e ninguém sabia quem era o remetente e o carteiro já tinha sumido e aquilo ficou ali sobre um balcão da salinha de visitas/quarto do vô. Não, o/a Poline não está nestas memórias. (O único irmão que eu tive, sinceramente, se chamava Rin-Tin-Tin). Porque era tudo conceito.

A Golda sua entrelinhas. (A Golda quando apareceu com aquela tatuagem enorme no braço me causou um sentimento de dádiva). O Dell declarou em júri e eu penso nos rostos e nas expressões do júri não sem hesitação: onde será que escondem tantas metáforas?

Olha bem e de frente: a possibilidade não cumprida. Dava até pra meter um ponto de exclamação neste pedaço. Digo, trecho. Meter mesmo. Então a gente deixava de ser conceito infâmia e estátua de sal. Mas não exclamo, interrogo.

Goldinha de olhinhos verdinhos deixa eu comer um deles que seja?

--

--

Revista Rosa
Revista Rosa #4

Revista de arte e literatura com temática Queer/LGBT