Carta de uma pornomacumbeira às emigrades Icamiabas(*)
por Taís Lobo
Adorades amigues,
já não posso escrever desde que terminei uma escrita institucional, que visa, em certo grau, implodir a instituição. Digo-lhes que a implosão da Casa Grande nestas terras se faz tão difícil que sempre corremos o risco de implodirmos a nós mesmes. Como sabem, é a demanda que vem acontecendo neste vulcão que se tornou a Pindorama(**), desde os datados 1500. Na verdade, nós todes sabemos que não houve descoberta, abolição, nem liberdade, nem bosta nenhuma do que nos ensinam as instituições, de modo que neste momento exato, estou tão perdide que nem sei mais em que língua escrever… Escrevo-lhes neste maldito português que me impregna, como poderia escrever no maldito espanhol que agora impregna a língua de vocês, e, confesso, hesitei apenas entre essas duas línguas coloniais: na verdade esta deveria ser-lhes escrita em yoruba, bantu, jêje ou mesmo em tupi; mas quem nos leria por essas terras que lhes hospeda? Vêem como estamos impregnades? Cada orifício de nossos corpos está impregnado de línguas coloniais, essas grandes casas conceituais arquitetadas pela Casa Grande Nação/Instituição.
Quando implodirmos a Casa Grande/Instituição, poderemos libertar as etnias e as singularidades, mas sabemos: restam gerações para operar as ferramentas dessa desconstrução. Bem, a começar por nosso corpo, evidentemente: quantas encarnações serão necessárias para realizarmos essa implosão? Quantas vezes teremos de nos reencontrar para re-articularmos essa luta? Quantos cús mais deverão de ser descolonizados? Quero dizer, quantas peles mais necessitaremos para involuir a Ordem e o Progresso da nossa História, a fim de liberar a Nossa própria estória? Camadas, infindáveis camadas de pele… Vocês sabem, né, falar de pós-pornografia, sobretudo em Pindorama, é falar de descolonização e do re-surgimento de outras cosmologias através de nossa própria subversão cutânea e visceral. Fomos designadas a subverter os orifícios. Falar em dissidência sexual, em Pindorama, é falar em dissidência lingüal: vamos ter que re- inventar a nossa língua, e para isso teremos que transitar, transitar tanto que vira e volta cairemos no Velho Mundo. Afinal, o mundo é vasto e nem mesmo o Velho Mundo era assim nomeado antes de os europeus serem europeus e acreditarem na sua própria mentira, na ficção de que são o centro cerebral do mundo enquanto nós somos o cú. Não sei se por sorte dessa mentira ou se por estratégia política nossa, mas o fato é que estamos mesmo sempre transitando pelo cú do mundo, seja em que merda de nação estamos: somos muitas as filhas do cú do mundo, e lutaremos para que não tapem nossos buracos tão prazerosos e desejantes. Lutaremos ao lado da ancestralidade que nos guia, esteja ela encarnada ou não, pois de uma coisa sabemos: quando o cú se abre, todos os buracos se abrem e, assim, nos tornamos cavales, não de Nações, mas de nosses ancestrais, de nosses guias espirituais. É preciso muita, mas muita abertura para incorporar. Falo disso tudo não para ilustrar, pois a pós-pornografia, efetivamente, me conduziu à abertura do meu cú enquanto ser falante, à abertura da minha boca enquanto ente que joga merda no ventilador e bota o circo a ponto de fulminar, e à abertura dos meus chakras, que fazem deste corpo material cada vez mais rente a todes es guies considerades pelas Nações como verdadeires terroristas mortais: prostitutes, vadies, vagabundes, pirates e marujes, cabocles, negres e os ciganes. Com “e”, efetivamente, porque na Aruanda não há gênero de nada, mas sim a qualidade singular de cada vibração — e é por isso que ela é ontologicamente pós-pornográfica. Quanto mais incorporo mais meu cú é laico, quanto mais incorporo mais posso escrever-lhes por fora das instituições. Por isso uma carta. Por isso pornomacumba. Porno — do grego, prostituta; macumba — do quimbundo, ma (o que assusta) + kumba (soar assustadoramente), um instrumento bantu que brada sons que nos lembra o gemido de uma onça… e, sabemos, um termo usado para insultar a quem é candomblecistas, umbandista, catimbozeiro, mas que cujo insulto já fora re-apropriado como estratégia política por nós, es macumbeires; macumba já é, agora, uma instância utilizada para realizar e arquitetar trabalhos mágicos, onde todos os elementos considerados subversivos pela Casa Grande Nação estão presentes. A pornomacumba é a forma não apenas de subverter a própria Casa Grande que reside em nossos corpos, como também, uma forma lenta, transespacial e transtemporal de implodir a Casa Grande Nação. A pornomacumba é a instância das etnias e das singularidades, é feitiço da puta que conhece bem o cú do mundo, que o adora e que sabe quais são suas múltiplas línguas.
Bem, escrevi-lhes esta pequena e densa carta para estar um pouco mais por essas bandas daí, acalorando vocês com a lava de nossos vulcões em erupção, pois entendo o que é estar emigrade e o que é “ser” imigrante. Senti na pele o que é estar em terras tão mais maquiadas que a nossa Pindorama, entendo o quão duras são as pedras gélidas dos invernos daí, e daqui posso sentir parte de todos os gemidos de vocês. Mas não tenho por que preocupar-me: sei que já estão entre outres pornomacumbeires, pois a pornomacumba não tem Nação, é feitiço transterritorial, conseqüentemente descolonial, e, para tanto, tem de estar em todos-os-lugares-ao-mesmo-tempo. Enfeiticemos e enfeiticemo-nos, pois, cares amigues, porque a pornomacumba é a nossa confraria alquimista transmundial, e quanto mais abrimos nossas pernas, mais encaminhado está o nosso plano de implosão das Casas Grandes que imperam nestes curiosos tempos que nos atravessam.
Com amor e pornô,
Liberta Moròn.
Taís Lobo é documentarista e educadora, formada em Cinema pela UFF. Atua em pesquisas, processos de formação e produções audiovisuais sobre gênero, sexualidade e feminismo.
(*) As Icamiabas foram índias guerreiras e arqueiras que viviam em uma comunidade matriarcal na região do rio Tapajós, em Alter do Chão, no Pará — e que para melhor manusear o arco e a flecha, extirpavam um dos seios.
(**) Pindorama (da língua tupi pindó-rama ou pindó-retama, “terra/lugar/região das palmeiras”) é o termo guarani dada a esta região que, nos supostos mapas oficiais, coincide como sendo “Brasil”.