Da pornochanchada ao Pós-Porno-Terrorismo no Brasil: d‘As Cangaceiras Eróticas ao Coletivo Coiote

Revista Rosa
Revista Rosa #5
Published in
20 min readDec 24, 2014

--

por Fernanda Nogueira e Pedro Costa

No dia 22 de fevereiro, na sexta edição da Muestra Marrana em Barcelona, apresentamos De la Pornochanchada al Post-Porno-Terrorismo en Brasil: de las Cangaceiras Eróticas al Colectivo Coiote. Apresentar esta fala foi muito importante no sentido de visibilizar as ações do Coletivo Coiote, além de marcar um diálogo e conexão com variadas práticas político-sexuais e de gênero dissidentes que estavam ali, sobretudo as latino-americanas. Foi um encontro com uma série de iniciativas internacionais faça-você-mesmx, que estão lutando para refazer no presente o imaginário pornográfico, através de produções artísticas, cinematográficas e discursivas inconformadas, que há muito tempo vem sendo vividas no mundo. Que melhor terreiro, nesse momento político pré-copa do mundo, para fazer esse conjuro entre cúmplices sexorcistas? Para nós, que acompanhamos via internet, do exílio sexual, as injustiças cada vez mais evidentes nas manifestações, temos que ser criativas para contribuirmos de alguma forma com a visibilização internacional e estarmos conectadas. Agradecemos o streaming online ao vivo da mostra, para sincronizar as amigas emigrades com todas que estão no campo de batalha tropikal punk. Kawó Kabiesilé!

Este escrito nasce de uma relação textual e rebolativa, segmentos, fragmentos e pulsões vitais via redes sociais, convulsões e interrogações entre Pedro Solange e Fer Nanda. Surge também de muita raiva, de perceber que muita gente querida e cúmplice ao redor pouco sabe sobre o que rolou e rola nessa terra onde surgimos. Quando começamos a discutir as obras e artistas que queríamos apresentar nesta fala, algumas questões cruciais sobre a nossa condição Sudaka na Europa sempre estavam presentes: Por que é difícil encontrar informações acerca dessas práticas e narrativas? Por que temos muito mais informação sobre as ditas “subculturas” daquele velho primeiro mundo, do que daquelas histórias que aconteceram e estão acontecendo ao nosso lado, em nós? Por que nossas ficções subversivas e realidades liberadoras são invisíveis? O que essa invisibilidade nos diz hoje? A quem interessa tudo isso? E o que essas práticas e narrativas subalternizadas incendiárias podem provocar? Sabemos que o projeto colonial trabalha com o esquecimento, por isso a questão da memória é fundamental nas questões pós-coloniais. Reviver, refazer e recriar a memória é uma resistência!

Ao mesmo tempo nos sentimos provocadas a dizer, frente à grande ausência de informações a respeito desse repertório que estamos tentando conectar nessa grande rede comum trans-temporal/regional, que o projeto colonial não trata só de segregar estas práticas dissidentes e libertárias transformando-as performativamente em minorias e terroristas frente à ditadura heteronormativa, branca e patriarcal. No processo de subjetivação trabalha para nos convencer a não usar as ferramentas da “casa grande” para derrubá-la: as diversas formas de intervenção escrita das memórias, as tecnologias de reprodução de imagens, as variadas mídias, as redes de circulação abertas, livres, anônimas e autônomas. Quando essa barreira no campo da visibilidade é transposta, ainda é necessário enfrentar a censura e controle daqueles que chegam a ter contato com esse material e fazem o “favor” de denunciar esse “escape da norma”. De qualquer forma e apesar de tudo, estamos todas aí!

As Cangaceiras Eróticas (Fonte: frame do filme)

O nosso tema, quando estávamos sentadas em frente a um computador para desenvolver a fala, era sempre: “Que política de invisibilização é essa que continua atuando de forma ferrenha contra toda e qualquer prática de dissidência estética, sexual, de gênero, comunal, social etc?”. Ainda querem nos imprimir a imagem daquele/a bicho/a estranho/rara que colocam nos circos ou nos museus!? As epistemologias não reconhecidas como formas de conhecimento válidas pelo academicismo europeu nascidas nos Terreiros, na Flor do Asfalto, na Boca do Lixo e no Lampião de Esquina, encontram ressonâncias naqueles centros de produção de conhecimento livresco?

Pensa, quem tem o privilégio do acesso a esse conhecimento livresco? Na linha do equador, e em suas margens, se age! E a ação é o pensamento. Roubamos as artes e as pirateamos todas! Agora roubemos as editoras ou criemos as nossas (essa edição pornô e a Rosa fazem parte deste território de resistência, para piratarias e formas de subjetivação divergentes). Esses legados em nossos próprios corpos, essa memória do corpo que levamos com a gente, tem que encontrar saídas, explodir, ganhar o terreno da circulação da informação, ganhar aliad*s e fazer alianças, desestabilizar as certezas de qualquer linguagem experimental e centros de conhecimento. Se, por outro lado, a questão é “ignorar para matar” (ou colocando os três pés na realidade: invisibilizar, subjugar, marcar para matar), pode tirar o seu cavalo da chuva porque nós já invadimos a sua praia com todas as nossas armas e munições… e daqui eu não saio, daqui ninguém me tira!

Aviso a nós, passageir*s: a (nossa) pós-pornografia não nasceu com Annie Sprinkle! E não tem data de nascimento única, como tenta nos fazer acreditar esse academicismo imperialista que sujeita todas as outras temporalidades possíveis à sua! Nossa ética marica derruba qualquer defesa do pioneirismo, da irreprodutibilidade, da originalidade, do copyright, conceitos furados a partir do qual tudo é cópia falsificada e de baixa qualidade. Se quiser assumir esse lado do jogo, somos cópias sim e com muita artilharia pirata! Mas pode ir baixando o seu poder falocentrista porque a missão vai ser cumprida! Salve PaguFunk!

Existe uma quantidade de práticas que persistem e estão aí para serem re-ativadas de uma forma muito mais complexa que vão nos fazer vomitar textos, intertextos, subtextos. Existe uma imensa multidão de produções poéticas-estéticas-políticas-vitais que enredam a nossa história e memória corporal. Desta vez vamos nos agarrar somente em um 0,1% delas: aquelas pesquisadas com carinho nessas genealogias vitais e afetivas através de arquivos do passado (sempre presente), relatos orais, denúncias, imprensa alternativa, e as que já temos em mãos, com materais cuidadosamente downloadeados, pirateados, apropriados e absorvidos.

Histórias que nossas babás NÃO contavam (Fonte: bcc.org.br)

Aqui se fode! A hora e a vez da Pornochanchada

Comecemos por um início hipotético (que poderia ser qualquer outro): a maravilhosa pornochanchada! Maravilhosa por todas as possibilidades de prática videográfica, corpos, práticas e discursos disruptivos que ela pôde reunir. A pornochanchada nasce na Boca do Lixo, na cidade de São Paulo. Uma zona de prostituição de onde saiam atores e atrizes (muit*s acabaram seguindo carreira interpretativa na televisão aberta brasileira), que atuavam na gravação dos enredos que misturavam erotismo, a construção da sensualidade a partir da sexualização de determinadas partes nuas do corpo, com paródia e um repertório popular que atraía um público massivo aos cinemas do centro da cidade.

Sobre o contexto histórico, a pornochanchada toma partido da Lei da Obrigatoriedade imposta na ditadura para cercear a influência da produção cultural/estética/política estrangeira. Esta lei instituía que as produções cinematográficas nacionais, que obviamente passavam pelo controle da censura, ocupassem as salas de cinema pela maior quantidade de tempo possível; exigia que os filmes nacionais que tivessem sido um sucesso de bilheteria ficassem em cartaz até o momento em que o diretor se manifestasse pelo contrário.

Este foi precisamente um dos motivos responsável pelo fim da produção cinematográfica vira-lata pornô. Apesar dos filmes nunca terem sido financiados pelo governo e sim, na maioria das vezes, pelos comerciantes locais da Boca do Lixo, a política cinematográfica imposta garantia o retorno financeiro pelas arrecadações de bilheteria. Com o fim da ditadura militar, cai a Lei da Obrigatoriedade e as salas de cinema passam a ser invadidas não só pelas produções hollywoodianas mas pelo pornô patriarcal/comercial, com cenas de sexo heteronormativo explícito que não faziam parte daquela poética pornô/chancha [em castelhano: porno/marrana]. Nova realidade totalmente compatível com o objetivo de adotar no país uma economia neoliberal através da imposição de uma subjetividade enlatada para o consumo massivo.

Mas outras questões interessam muito mais antes de chegar na decadência da pornochanchada como, por exemplo, como surge essa poética pornográfica? A que poderia estar respondendo? Em poucas palavras, a pornochanchada brasileira devora a chanchada italiana com molho picante e vem oferecer uma paródia daquele comportamento conservador com relação às sexualidades e aos gêneros esperados pelo regime militar no auge da ditadura. Esse momento está marcado pelo silenciamento e violência em nome da ordem e da normalização da vida, sem chances para a discordância ou para as possibilidades de transformação social, viesse de onde viesse, sobretudo da esquerda e de baixo. A pornochanchada, ou a paródia em si, é onde se dissemina a filosofia da desconstrução tupiniquim. A “desconstrução derradeira” que passa pelo riso, pela distância e estranhamento que ele provoca entre o sujeito que atua e a ação, desestabilizando os comportamentos naturalizados e minando os valores familiares.

Surgem, assim, trabalhos como Histórias que as nossas babás NÃO contavam (1979) que provam a contravenção do repertório conservador, por exemplo, dos contos de fadas. Contravenção que aparece também na paródia de clássicos do cinema norte-americano, como A Banana mecânica (1974) e Nos tempos da Vaselina (1979). Ou ainda enredos que, de tão famosos, continuam povoando o imaginário social e ganhando novas versões e adaptações, caso de Dona Flor e seus dois maridos (1976), que confronta o imaginário machista da relação monogâmica e exclusiva (da mulher casada), como privilégio do macho. Ou ainda, A Super Fêmea (1973), que evidencia de forma extrema a construção da feminilidade através da paródia dos estereótipos binários de gênero. A lista é longa! Podemos mencionar ainda Caçadas Eróticas (1984), Cada um dá o que tem (1975), As rainhas da pornografia (1984), A dama do lotação (1978), A noite das taras (1980), Gente que transa… os imorais (1974), Elas são do baralho (1977), O bem dotado — o homem de Itu (1978) etc.

As Cangaceiras Eróticas

Mas o trabalho que mais nos interessa aqui, por toda o sua potência arrebatadora é As cangaceiras eróticas. Rodado em 1974 sob a direção de Roberto Mauro este filme vem, não só reencarnar a figura heróica marginal por excelência d*s cangaceir*s, mas transtornar qualquer idéia tradicionalista do que pode uma mulher tramando coletivamente, em uma narrativa que confronta a docilidade feminina imposta, o lugar de ação da mulher e os papéis que deve cumprir socialmente. Enquanto grupos feministas, nos centros do mundo, discutiam, escreviam e transformavam a sociedade, a pornochanchada atuava sub-repticiamente por uma mudança na cabeça do seu público consumista, (provavelmente) formado por homens heterossexuais. Esqueçamos esse projeto “purista” de ser da esquerda ou ser da direita, de ser libertári* ou conservador. Na América Latina o paradoxo é comum: podemos encontrar impulsos libertários junto a uma força conservadora, no mesmo corpo, no mesmo discurso. Esse foi o caso da pornochanchada.

Vamos à sinopse do filme: “Um bando de cangaceiros está acoitado numa fazenda quando é atacado pela volante, graças à traição de outro cangaceiro, Cornélio Sabiá. O capitão do bando é assassinado. Um de seus mais leais companheiros, Toneco, consegue fugir levando as duas filhas do capitão e entregando-as ao orfanato do Padre Lara. Passam-se anos. O cangaceiro Cornélio Sabiá aterroriza o sertão com seus crimes, enquanto Toneco procura descobrir quem traiu seu chefe e amigo, acabando por ingressar no bando de Cornélio Sabiá. Este fica sabendo que as filhas do capitão estão internadas no orfanato do Padre Lara e são duas lindas moças, ao mesmo tempo em que Toneco descobre o autor da traição ao seu chefe. Cornélio resolve atacar o orfanato e, não encontrando as moças, mata o Padre Lara e uma freira. As moças decidem vingar as vítimas, e depois de intenso treinamento, vão para o sertão. Encontram Toneco ferido. Este, antes de morrer, revela que Cornélio Sabiá fora o traidor de seu pai. Elas partem para a vingança.”

A estória tem lugar no nordeste do país, uma zona nesse momento fortemente estigmatizada pelos centros econômicos Rio de Janeiro e São Paulo. O enredo não se detém no cenário urbano capitalístico, mas nas zonas onde impera o coronelismo e a justiça direta com as próprias armas. Nos primeiros quinze minutos de filme (disponível completo na internet) já aparecem falas tão potentes como “Por acaso o único destino da mulher é a cozinha ou a costura?!” ou ainda “Vem com a gente? Ou prefere ir para a cidade ser escravizada por patrões ou por marido ciumento?”, enunciadas por uma das personagens que assume o papel de liderança nas ações do grupo até o final da trama. Se, por um lado, as expectativas patriarcais são frustradas durante o filme, por outro, é claro que algumas características heteronormativas são reforçadas. Essas características estão presentes nos filmes da pornochanchada. Apesar disso, o que pretendemos focar e visibilizar são os discursos de empoderamento das mulheres e as subjetividades radicais não-normativas.

A ação direta, organizada, programática e justiceira das cangaceiras põe em evidência “o machismo nosso de cada dia” em expressões tão célebres para este momento de ditadura como a questão da “crise moral” representada pela atuação delas. Um jornalista do povoado ao redor de onde elas estão atuando revela o grande mal-estar frente à emancipação daquele grupo de mulheres: “A vergonha não nos permite sair de casa. (…) E para acabarmos com essa desmoralização, é preciso que exterminemos este bando de cangaceiras eróticas. Sugiro que organizemos uma cruzada contra esse bando de delinqüentes sexuais”. Ou ameaças tão claras que espelham diretamente a força terrorista das Cangaceiras frente à ordem patriarcal estabelecida: “Vamos acabar de vez com essas mulher macho”. Já no final do enredo é falada a frase que vincula diretamente este texto ao filme: “Não se pode acabar com a lenda!”. E é exatamente por isso que queremos sim ser agentes na ativação dessas lendas, para que surjam muitas mais!

Esse repertório que nos interessa ativar aqui não está só no campo da pornochanchada. Com a decadência dessa poética cinematográfica surgem também outros enredos que, apesar de não se marcarem numa poética pornô, continuam problematizando a tríade sexo-gênero-sexualidade. Muitos desses filmes foram completamente marginalizados, encontrando saída e visibilidade, mais no exterior do que no Brasil. Esse é o caso do filme Vera.

Bauer/Herzer para sempre

(Fonte: http://lidianacinema.blogspot.com.br)

O filme está baseado na história de vida do transexual Anderson Bigode Herzer quem escreveu o livro A queda para o alto (o processo de escritura do livro é vivido na trama). No filme, a narrativa se centraliza em Vera Bauer, um trans-homem que na fase da adolescência, após a morte dos pais na sua infância e abandonado pela tia, vai viver em um orfanato público de “regime prisional semi-aberto” de São Paulo, a FEBEM / Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (que ironia!).

Ali, naquele “mundo diferente, e severo, morto, desumano, injusto”, num ambiente completamente hostil, ele se sente impelido a proteger e apoiar *s companheir*s que se encontram na mesma situação. Nesse período Bauer recebe o apoio de um professor, o Sr. Paulo, para conseguir trabalho na bilblioteca do Centro Cultural de São Paulo. Ali ele conhece Clara, mãe solteira encarregada do departamento de vídeo da instituição, por quem se apaixona. Amb*s acabarão tendo uma relação amorosa conflituosa, que não se categoriza como uma relação lésbica, muito menos hétero, ainda que para a família de Clara, Bauer se construa como um cis-homem.

Herzer vive o conflito de sentir-se um homem enjaulado em um corpo feminino, e este conflito interfere na elaboração do seu afeto, por um lado, por assumir o papel masculino típico de uma relação heteronormativa, e por outro, por exigir criar uma linguagem sexual própria em meio a esta situação num momento iniciático da sua vida. A sociedade leva Bauer/Herzer ao suicídio ao fazê-lo enfrentar preconceitos e viver crises e conflitos ao assumir a sua identidade masculina. Falamos isso porque não cremos que nesses casos o suicídio seja uma questão de autonomia do corpo, mas uma imposição social.

O filme Vera, dirigido por Sérgio Toledo, é lançado em 1986 e imediatamente ganha o Troféu Candango no Festival de Brasília. No ano seguinte recebe indicação ao Urso de Ouro no 37º Festival Internacional de Cinema de Berlim, ganhando o Urso de Prata. O filme é apagado da cena e não entra em nenhuma sessão de “Vale a pena ver de novo”. Mas na nossa entra com tudo! E vamos todo mundo assistir porque tá online e é uma preciosidade! (Vale ainda anotar que João W. Nery e Léo Moreira Sá são as pessoas que mais levam à frente a luta dos homens-trans brasileiros atualmente).

A Gang do Movimento de Arte Pornô pelo strip-tease da arte: O Pornopoema vai por no poema

Ainda na década de 1980 outras produções poéticas brigaram para intervir no imaginário castrado e castrante brasileiro, imaginário este que vai na contramão de qualquer estereótipo de liberação sexual que se tem do Brasil. Entre 1980 e 1984 o coletivo Gang estava disposto a intervir contra a repressão e a normalização dos corpos intensificada durante a ditadura militar no país (1964–1985). Foram parte do coletivo: Eduardo Kac, o “Bufão do Escracho”; Cairo de Assis Trindade, o “Principe Pornô”; Teresa Jardim, a “Dama da Bandalha”; Denise Henriques de Assis Trindade, a “Princesa Pornô”; Sandra Terra, a “Lady Bagaceira”; Ana Miranda, a “Cigana Sacana”; Cynthia Dorneles, e as crianças Joana e Daniel Trindade, os “Surubins”. Seu programa poético e performático procurava subverter os regimes de visibilidade das sexualidades e promover novas táticas de ação. As propostas do coletivo procuravam despir o corpo e desprender a arte e a literatura dos seus espaços convencionais para apresentá-los de forma livre e provocadora no espaço público.

(Fonte: tecnoartenews.com)

As táticas de guerrilha artística do coletivo incluíram intervenções em teatros, praças, praias, encontros de poesia na Cinelândia, esse coração pulsante e socialmente contraditório do Rio, além das publicações que reuniam as experiências gráficas e performáticas do grupo, como livros de bolso, adesivos, histórias em quadrinhos, fanzines, camisetas, cartões postais, poemas-objeto, cartazes e outros trabalhos de edição própria que circularam também pela rede de Arte Postal, afetando fortemente a percepção do corpo e da linguagem num ambiente ainda restrito pela repressão política.

As reivindicações do grupo integravam um conjunto de expressões do Movimento de Arte Pornô (MAP), ativo durante a década de 80 no Brasil. O movimento se posiciona contra a ortodoxia literária, integrando manifestações que dão impulso a novos modos de vida, comportamento e criatividade. Naquele momento o “pornográfico” já aparecia como uma noção condenável e repleta de ressonâncias negativas. Basta lembrar que no final de 1980 o general Figueiredo (1979–1985) abre a “cruzada contra a pornografia”, liderada pela funcionária do DCDP/ Divisão de Censura de Diversões Públicas conhecida como Solange Tesourinha. O MAP, no entanto, fazia um chamado em defesa não somente da subversão da pornografia tradicional, mas daqueles elementos que exaltavam a libido, a sensualidade, as relações afetivas e libertárias para desconstruir a censura que apagava e desprezava estas relações na linguagem cotidiana. Ao mesmo tempo, colocava em evidência a convivência perigosa com palavras e expressões que se tornaram habituais durante a ditadura, como “tortura”, “desaparição”, “poder”, “censura”, “miséria”, “fome”.

Nesse contexto, a ação da Gang tratava de provocar uma “desabituação” do corpo e da palavra. Os modos de agir propostos pelo grupo iam além do espaço do livro e os suportes tradicionais da literatura. Não havia palavra que não merecesse ser usada, como não havia zona do corpo que devesse ser censurada. O grupo buscava assim desestabilizar aquela normalização autoritária que tinha contaminado o corpo, e que tinha transferido de forma eficaz a censura governamental sobre a informação e os debates políticos à “auto-censura”, cada vez mais generalizada.

(Fonte: tecnoartenews.com)

Se durante os anos da Guerra Fria, que não por acaso coincidem com a ditadura militar no Brasil, o Estado combate com violência as manifestações de esquerda, chegando aos anos oitenta as práticas libertárias de dissidência sexual em diferentes campos (artístico, teatral, musical e, sobretudo, no espaço público), elas passam a ser lidos como uma ameaça à ordem social cultivada pelo governo de fato, uma ordem que não via com bons olhos as minorias, os sem-teto, os vagabundos, os embriagados, os putos, as prostitutas, as travestis e homossexuais.

No contexto da dita “abertura” no final dos anos setenta e início dos anos oitenta, a violência social e de Estado coincide e se concentra naquel*s que representam a diferença dentro da ordem heteronormativa imposta e reafirmada em todas as instituições oficiais. No entanto, são justamente essas comunidades marginais e minoritárias do “submundo” as que conseguirão contradizer o controle da vida pretendido pelo regime daquele momento. A Gang do Movimento de Arte Pornô, coletivo de breve existência e de atuação tática, procurou modos criativos de provocar fissuras nessa estrutura e contra-arrestar de forma direta a seriedade castradora que o Estado totalitário tentou inculcar naqueles passados dezesseis anos de ditadura.

Prestígio, magnífico, maravilha…
Minha amiga Cláudia Wonder, contra o conservadorismo

Se no Rio de Janeiro era o Movimento Arte Pornô que acontecia, em São Paulo a Cláudia Wonder barbarizava. Em 2008 eu, Pedro, convidei a Cláudia para ver o show da Solange, tô aberta! no Espaço Impróprio, casa cultural punk em São Paulo que realizava eventos queer. Não a conhecia pessoalmente mas já a admirava. Ela foi, viu o show, e quando terminou eu corri para ela e perguntei: “O que você achou do show?”. E ela: “Eu achei uma pena não ter vindo com um sutiã bacana para poder tirar minha roupa também. Vamos para o boteco!”. Foi assim que naquela longa madrugada nasceu a nossa amizade. Na conversa, entre goladas de cerveja, ela me diz que tinha acabado de descobrir, aos 46 anos, que tinha nascido intersexo, mas que a família tinha escondido dela. Ela faleceu no início de 2011, quando eu já morava em Berlim, e não consegui acreditar…

É óbvio que tivemos que falar da Cláudia Wonder! O trabalho de Dácio Pinheiro, ao realizar o documentário longa Meu amigo, Cláudia (2009), visibilizou a vida dessa pessoa fundamental na cena artística e na luta pelos direitos das pessoas transexuais no Brasil. E não é só isso, ela foi punk e artista, o que a conectou para além da conquista de direitos normativos. Cláudia também iniciou sua vida noturna nos cabarés da Boca do Lixo e trabalhou como maquiadora com as atrizes dos filmes da Pornochanchada.

Em 1978 ela faz seu primeiro papel no cinema como mulher-trans, no A mulata que queria pecar, filme dirigido por Vitor de Melo, e logo participa de muitos outros. No início da década de 80, no contexto do surgimento da SIDA, ela fazia performances com groselha, representando sangue, uma conexão direta com a nova enfermidade que colocaria em cheque as conquistas feitas pelos movimentos identitários homossexuais, aumentaria a discriminação de forma alarmante e condenaria as pessoas à solidão e ao isolamento (a SIDA continua sendo o grande “ponto de exclusão”, como Sarah Schulman escreve muito bem em sua análise Desafios do Feminismo). Cláudia também trabalhou no Teatro de Revista no final dos anos 1970, quando as travestis começaram a figurar nesse segmento.

Queremos terminar este segmento com uma fala brutal da Wonder no documentário sobre ela: “No fundo ninguém quer ser viado, ninguém quer ser sapatão. Todo mundo quer parecer bonitinho e limpinho. (…) Por que eu tenho que parecer hétero? (…) Por que eu não posso ser travesti? (…) Tem gente que diz que travesti não é nem homem, nem mulher. Não! Ao contrário, meu amor. Eu sou homem e sou mulher!”.

Descolonização-tropikaos anarko-punk-kúia pós-pornô-terrorética

Aqui, cabe falar dessa nova onda de artistas que trabalham confrontando os modos hegemônicos de subjetivação. De alguma forma estão tod*s conectad*s afetivamente. Em 2006 nasce em Salvador a Solange, tô aberta! como um projeto Drag-Punk-Funk ou, como também pode ser reconhecido, queer. Essas palavras em inglês, que talvez não nos representem, estarão aqui presentes (debruçar-se sobre a representação dessas palavras já seria um outro texto, do mesmo contexto).

Solange também traz em seus corpos os desejos transtornados, a questão da paródia em relação a construção binária de gêneros, e propõe a valorização do funk carioca. Exige o reconhecimento da valência cáustica e festiva do proibidão escrito e cantado por mulheres, além de reivindicar o faça-você mesmx. A Solange, mais do que um projeto de arte, é um projeto de vida e afeto. Assim, nesse projeto amplo conectamos pessoas e ações, como as de Jota Mombaça e a ocupação do banheiro da UFRN em agosto de 2013; as ações da diva Michelle Mattiuzzi; as ações da Casa Selvática criada em 2011 em Curitiba; o Espaço Impróprio em São Paulo com os QueerFest; Mamá com seu ex-projeto Gay-O-Hazard, primeira banda gay punk no Brasil, atualmente com o projeto Teu pai já sabe?; os filmes pós-pornô como “Amor com a cidade” (2012), idealizado por Pornô Clown e os realizados por Taís Lobo e amig*s no projeto Antropofagia Icamiaba; Kleper Reis, com seus trabalhos como “O hasteamento da bandeira” e “Cu é Lindo”; e o acontecimento Bloco Livre Reciclato, que reuniu e reúne artistas e coletivos como AnarcoFunk, Teatro de Operações, Museu de Colagens Urbanas, Coletivo Coiote, moradores de rua e muito mais.

Nessa apresentação em Barcelona, por diversas razões poéticas, políticas e afetivas, o nosso foco foi principalmente o Coletivo Coiote. A conexão das ações do grupo com a Mostra Marrana eram clara para nós por representar algo completamente contraposto e confrontador, mesmo dentro de um campo de construção coletiva estética, política e experimental como este evento, referência internacional pós-pornô.

O Coletivo Coiote vem gerando um espaço simbólico e real ímpar de denúncia no Brasil. Não trata simplesmente de mostrar todas as múltiplas formas de violência bruta que estão sendo empregadas pelas forças do Estado no presente imediato para controlar a sociedade, como simples forma de contra-informação (trabalho que estão fazendo as novas mídias independentes e coletivas). O Coletivo Coiote ousou travar um embate que vai no cerne das estruturas coloniais de dominação e que, no Brasil, ninguém ousa d/enunciar de forma pública. Através da ação direta, o Coiote trata de demonstrar como a colonialidade persiste no corpo coletivo.

(Fonte: Lia Ferreiro/Vero)

No caso da performance na Marcha das Vadias no Rio de Janeiro em julho de 2013 (ver na internet as fotografias do Marcelo Santos Braga), por exemplo, a tríade prazer-respeito-violência está presente em cada gesto clamando, em cada um desses conceitos, pelo questionamento “para quem?”. Ler esta ação artística apelando ao “senso-comum”, consciência moral elaborada nesse território a partir da naturalização da violência cristã, seria não só inválido e ingênuo como, em outro nível de discussão crítica, desrespeitar o direito dissidente das minorias subjugadas às normas impostas pelo cristianismo colonizador e sua operacionalização pelo Estado. Principalmente por este motivo, entendemos que o Coletivo vem promovendo uma das propostas estéticas e políticas mais radicais atualmente no Brasil, haja vista as conseqüências repressoras e persecutórias que este acontecimento evidenciou.

A visibilização do Coletivo Coiote em nível internacional, num evento pós-porno faca-você-mesmx, além de dar a conhecer o pós-porno-terrorismo que se realiza no Brasil, foi uma das nossas estratégias políticas para dar suporte a este tipo de proposta radical, evidenciar o Estado de violência enfrentado no Brasil neste momento e chamar a atenção para a necessidade de pensar estratégias de solidariedade anti-sistema trans-border entre as agrupações sexo-ativistas.

Em trinta minutos tentamos falar sobre todo o material que mencionamos aqui, mostramos imagens, denunciamos as absurdas e cruéis atuações da polícia do governo na preparação para a Copa do Mundo e terminamos a fala com o vídeo que está no YouTube, intitulado COLETIVO COYOTE — ANARCOFUNK (2013). Algo entorno de 400 pessoas estavam no galpão lotado do Hangar naquele momento para a Muestra Marrana. Depois da apresentação, muitas delas vieram conversar com a gente, sem ar, extasiadas com este vídeo que tinham visto. E dias depois do evento ficamos sabendo ainda que despertamos o desejo nas pessoas em Barcelona de irem ao Brasil, o palco da cena Pós-Pornô-Tropikaos-Terrorista. Ecobé!

Bixa pobre — AnarcoFunk

Bixa, preta, pobre, vadia, degenerada
infectando a sua mente branca e civilizada
cagando pra cultura, passando a merda na cara
vomitando seus valores, sou a loka afetada.
Limpeza, saúde, sanidade, higienismo
combinam muito bem com a palavra fascismo.
Quero mais é que se exploda a segurança do dinheiro,
a grade do condomínio, o porteiro e o medo
de ser assaltadx, perder o celular, discar 190 e poder legitimar
a câmera na esquina e o tiroteio na favela
pra ser cidadão de bem igual o galã da novela.

Bixa, preta, pobre, vadia, degenerada
que se foda o trabalho, eu não vou me escravizar
pra ficar pagando conta e poder participar
dessa vidinha medíocre de consumo e modinha
tomar uma cervejinha e me vangloriar
da liberdade que eu tenho de poder me conformar.
Aí quando o bagulho ficar louco,
quando tu não tiver dando mais conta da brincadeirinha
você faz o seguinte:
procura um analista, conta pra ele todos os seus traumas e desejos
diz que não queria ser só mais uma mulherzinha que reproduz valores dados;
diz que não queria ser mais um escravo do trabalho,
diz que queria algo mais….
aí o especialista no assunto mostra onde ta você e onde ta o mundo,
ate recomenda uns remedinhos e de repente…
seus problemas acabaram

Bixa, preta, pobre, vadia, degenerada
poesia engatilhada e apontada na tua cara
moro no teu abandono, to comendo do teu lixo
o excesso do espetáculo garante o subsídio
meu look é de recicle, detona fashion week
É o bonde dreadlock apavorando as bixa chique

Bixa, preta, pobre, vadia, degenerada
sou o terror da família, peste negra encarnada
tô de boa do ciúmes, que se foda o casamento
sem herança ou propriedade vou pra comunidade
construir um corpo livre sem normatividade
com crianças e idosos em um pé de igualdade.

Viena-Berlin-Barcelona, janeiro-fevereiro-março de 2014.

FerNanda Nogueira é membro da Red Conceptualismos del Sur, uma plataforma crítica de ativação da memória artística e política latino-americana, e pesquisa práticas estéticas e sensíveis que atacam a normalidade colonial imposta aos corpos, comportamentos e linguagens.

Pedro Costa é Solange, tô aberta!

--

--

Revista Rosa
Revista Rosa #5

Revista de arte e literatura com temática Queer/LGBT