Declaração anarcatransfeminista contra “vítimas”(*), o Politicamente Correto, e a Polícia RadCis(**)

Revista Rosa
Revista Rosa #5
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8 min readDec 25, 2014

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Autoria anônima

(*) Vítima — pessoa que recusa a se responsabilizar por sua própria vida, assumindo um papel de passividade

(**) [“RadCis” — Cissexistas Radicais. Trata-se de uma paródia do termo “RadFem” (Feministas Radicais). Refere-se a pessoas que parasitam teorias do “feminismo radical” para defender discursos e práticas cissexistas perseguindo e intimidando pessoas trans*. Diferencio “RadCis” de “RadFem”, por entender que nem todas as feministas radicais adotam esse tipo de prática)

Alguém disse que requer menos esforço mental condenar do que pensar

– Emma Goldman

Somos les monstres que sobrevivemos ao desafio diário de viver rodeades de merdas e normas que aprisionam nossos corpos e desejos. Somos les monstres que não são bem-vindes praticamente em nenhuma parte. Somo les monstres, as feias, as ásperas, as putas, les foragides do gênero, as bruxas, les animais, les degenerades, les pervertides, les maleducades, les punks. Somos les que vemos uma verdadeira possibilidade de transformar realidades, porque sabemos que transformar este inferno é a única forma que temos para evitar o suicídio ou o desejo de matar pessoas.

E algumes destes monstres temos algo importante a dizer.

Estamos fartes de vocês: fascistas do politicamente correto, pessoas sexofóbicas , les transfóbicas , ativistas que não querem nada mais que ser gente “normal”, aquelas que escolhem adaptar-se às normas do patriarcado, e todas as demais que estão julgando nossos desejos.

Estamos fartas de sua hipocrisia e de suas formas de comunicação sujas e traiçoeiras. Durante anos, estivemos construindo pontes e vocês se dedicam apenas a levantar novas fronteiras. Estamos fartas do veneno que seu ódio a vocês mesmas e sua ignorância estão injetando no nosso tempo e no nosso espaço.

Vocês, e toda a gente que não podem ir além dos genitais, que não se permitem a si mesmas pensar livremente, que não são capazes de ver a beleza na sujeira, que não vão além dos estandartes e das normas do pré-estabelecido, que não podem transpassar o espelho: estão apoiando o sistema heteronormativo-capitalista constantemente, relegando-nos a nossas posições de dor, precariedade e raiva.

Vocês são parte do puto inimigo e não vamos aceitar seus ataques por mais tempo. Desse modo, chamemos a isso de guerra aberta. Podem agora tirar suas máscaras cínicas, e assim finalmente poderemos ver nossas caras. Talvez nunca nos olhem nos olhos nem nos digam de frente as coisas que dizem pelas costas. Porque vocês têm medo de dizer o que pensam livremente, porque engoliram sua medicina e aprenderam a ser covardes. Chamemos a isso de guerra aberta… e lhes destruiremos com um sorriso.

Usam os códigos do Politicamente Correto como escudo, porque lhes faltam inteligência emocional, empatia e amor para criar novas ideias. É possível que estejam tão fodidas que, ao invés de buscar uma solução, preferem satisfazer seu desejo de auto-destruição destruindo as coisas sábias e belas que construímos constantemente, as que emanam de nossa felicidade, nossas vidas, nosso amor incondicional diante de nós e todes les outres monstres.

Vocês nos desprezam porque não são capazes de liberar suas mentes o suficiente para nos desfrutar, para nos amar ou simplesmente para serem vocês mesmas. Mas ainda assim preferem estar ao nosso lado, tratando de regular o que fazemos desde dentro dos espaços que criamos com nossos corpos, corações e mentes. Ao invés de lutar pra aprender a amarem a si mesmas, ao invés de lutar junto a nós por nossos interesses anarcatransfeministas comuns, tratam de nos estrangular com suas normas, nos asfixiam com sua infinita e egocêntrica necessidade de atenção, com suas histórias de infâncias fodidas, com sua patética autocompaixão e com sua incapacidade de crescer sobre esses traumas e tornar-se fortes com isso. Essa incapacidade é o que nos incomoda sobre vocês.

Estão nos reprimindo desde dentro de nossas comunidades de uma forma rasteira e injusta. Não sabemos qual será sua seguinte forma de nos foder, porém devemos nos proteger de vocês como de qualquer inimigo tentando nos atacar.

E vocês são capazes de fazer isso porque nós o permitimos, porque somos as únicas pessoas que respeitam e apoiam seus caprichos, somos quem lhes entrega de coração nosso tempo, companhia, inspiração, nosso entretenimento grátis-ou-de-contribuição-voluntária, nossa comida reciclada, nossos equipamentos roubados, nossas feiras grátis. Tomam tudo o que podemos oferecer e logo não aportam nada a nossas comunidades, a não ser conflitos e arame farpado.

Por essa traição, cuspimos em suas caras de classe média.

Os protocolos do Politicamente Correto nos chegam como uma imposição da sociedade normativa, como um vírus em um sistema de software livre. São um instrumento do sistema capitalista para nos submeter, para nos converter em nossa própria polícia (já que a sua não chega aos espaços que construímos), dentro de nossas cabeças, dentro de nossas corpos/prisão.

Esses mecanismos nos chegam vestindo uniforme ou moicano colorido, podem ter pica ou buceta, podem também ser extremamente discretos ou até mesmo invisíveis.

É óbvio que pessoas tiranas e idiotas podem estar em qualquer parte da sociedade: podem ser marceneiros ou políticos, podem ser famílias perfeitas ou hippies, podem ser negras, brancas ou amarelas, pobres ou ricas e sim, também podem estar chamando a si mesmxs de “feministas”.

O mais triste de nossas vidas é que inclusive dentro dos nossos “grupos de afinidade” ou nossas “comunidades”, temos que lidar cada puto dia com censuras, discriminações, exclusões e violência emocional. Cada dia temos que lidar com babaquices de mentes normativas e quadriculadas.

Baseando-se nos protocolos do Politicamente Correto, tudo o que vocês fazem é jogar um jogo simples, uma coreografia de manipulação. No entanto nós, les monstres, gostamos de fazer as coisas de forma ética e justa e, ao contrário de vocês, o fazemos com uma combinação de intuição e coração. Nos ensinamos umes a les outres como nos comunicarmos ativamente e com respeito, ao invés de escolher armas covardes como os vetos, as expulsões ou a censura que vocês usam para restringir nossos desejos.

Uma das melhores estratégias para entorpecer qualquer tipo de luta antissistema é controlar a luta desde dentro. Neste sentido, o papel de “vítima” é a forma mais poderosa de infectar uma comunidade anarca-feminista. Reconhecer-se a si mesme como “vítima” significa que não há forma de nos protegermos, defendermos ou apoiarmos, é contraproducente. E permite a essa pessoa adotar um papel passivo desde o qual só pode pedir ajuda e, desta forma, extrair o poder das demais sem dar nada em troca.

Quando uma “vítima” aparece em um movimento antissistema, normalmente requer todas as energias das lutadoras. Há muitas formas de ajudar alguém a sair desse papel, de lhe ajudar a tratar seus problemas de uma forma ética e saudável, a se levantar sobre as experiências dolorosas que sofreu, ensinar-lhe a fazer esse importante trabalho emocional como nós o fizemos antes ou como estamos fazendo agora mesmo. Em nossas comunidades, devemos elaborar dispositivos capazes de fazer desse conhecimento algo acessível para todes, sem ter que estar perdendo toda nossa energia cada vez que uma “vítima” aparece. E, seguramente, o primeiro passo para trabalhar com esses métodos é rechaçar a ideia de ser uma “vítima” e começar a se implicar em formas coletivas de autoempoderamento.

Nós, les monstres, rechaçamos ser chamades ou nos autodenominamos vítimas. Durante anos lutamos ativamente para superar nossas feridas mediante uma troca respeituosa com les demais, para nos curar o quanto antes e poder continuar a luta ombro a ombro com outres monstres.

O protocolo do Politicamente Correto serve somente à gente adaptada, à gente que quer ser normal. Está aí para ajudar aos covardes a evitar discussões reais, para evitar conexões verdadeiras, para evitar que cheguem a um entendimento real do que querem e necessitam les demais. Mas nós, les monstres, les humanxs anarcatransfeministas, nunca tivemos a pretensão de nos adaptar às condições do sistema, de modo que devemos nos proteger desse tipo de imposição e deveríamos nos dar conta de que chegou o momento de rechaçar esses protocolos de uma vez por todas.

Nossa força e nosso poder radica do nosso humor, nossa alegria e nossa independência, nossa forma de lutar, viver, respirar, foder, amar, desejar… Além disso, cada monstre tem um senso especial de justiça e ética dentro de si mesme. Ou, pelo menos, cada monstre deveria desenvolvê-lo. Essa intuição se converteu na nossa única arma efetiva para devolver o golpe, uma poderosa habilidade que pode nos salvar da depressão, da destruição e da chatice.

A única possibilidade de sobrevivência que temos é a aliança com outres monstres frente ao nosso inimigo comum. As lutas internas supõem somente o princípio do fim, e devemos parar com isso antes que seja tarde demais.

Nós, les monstres, estamos aqui para lhes dizer que vamos lutar pelo direito de ver e de escolher, ao invés de aceitar caladamente sua cegueira imposta. Vamos lutar pela liberação de todos os corpos perante qualquer tipo de repressão. Estaremos contra a (por vezes realmente sutil) violência que tratam de exercer sobre les que queremos escolher livremente e decidir como, quando, onde e com quem compartimos experiências sexuais.

Vocês, les bastardes camuflades, a merda da polícia do Politicamente Correto, les inimigues da imaginação e de nossa luta por liberdade, são prisioneires de vocês mesmes e não temos nem o tempo, nem a vontade, de lhes resgatar.

Vão embora e deixem nossos espaços, vão embora para viver com a gente heteronormativa, unam-se a suas famílias, seus empregos e seu puto sistema patriarcal.

Não lhes queremos do nosso lado, dentro de nós, não lhes necessitamos e lhes queremos fora de nossas vidas e políticas, dos nossos corações e de nossas camas!

Vocês não são bem-vindes nas esferas de les monstres!

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Nota de esclarecimento: Este texto começou como uma tentativa de tradução da “DECLARACIÓN ANARKAQUEER FEMINISTA EN CONTRA DE LO P.C.*, LAS VÍCTIMAS* Y LA POLICÍA QUEER”, disponível no link http://monstersdeclaration.wordpress.com/esp/ . De autoria anônima, o texto toma por alvo de crítica uma série de situações que se passaram no contexto Queer de Berlim.

Conforme traduzia, entretanto, via que as diferenças entre o contexto brasileiro e o de Berlim demandava adaptações no sentido de dirigir-se a outras interlocutoras e tomar outros alvos de crítica. Nesse sentido, possibilitando que funcionasse como uma cartografia da nossa realidade local.

Por decisão própria (e seguindo as sugestões de le próprie autore em suas notas de esclarecimento), transviei o texto para dirigir-me a pretensas ativistas que utilizam da palavra “feminismo” para erguer espaços de censura, perseguição e repressão contra pessoas trans* — e que, via de regra, furtam-se a qualquer problematização de sua transfobia adotando posturas de autovitimização.

Entre o primeiro texto anônimo e as adaptações aqui feitas, pode-se dizer que surgiu um novo texto, de autoria híbrida. Mudam as identidades e as cenas — mas mantêm-se as problemáticas, bem como nossa raiva e indignação.

A quem puder ler em espanhol ou inglês, recomendo fortemente a leitura do texto original — com plena ciência de que se trata de um texto distinto.

E mantenho em aberto o convite copyleft para traduzir, distorcer e adaptar as palavras aqui presentes conforme lhes servir melhor.

Lurya Grimm — Criatura mutante transfeminista. Oferece: masturbação intelectual, textos ativistas e massagens eróticas em troca de alianças afetivo-políticas.

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Revista de arte e literatura com temática Queer/LGBT