Pornô sob os escombros — Sobrevivendo ao Colapso Colonial

Revista Rosa
Revista Rosa #5
Published in
5 min readDec 25, 2014

--

por Jota Mombaça

0. Esgotar o colapso colonial é uma questão de sobrevivência. Conduzi-lo a um limite, acelerar suas convulsões, forçá-lo à ruína e desertá-la. Enquanto as cidades camuflam a miséria que produzem, higienizando paisagens, e os corpos só podem ser experimentados em confinamento, percorro trajetórias avessas, confundo a geografia com meus passos trocados, escorrendo, rastejando, vazando pelas brechas. Eu desconfio que há algo fluindo paralelo aos esgotos, em circuito expandido, nas sendas sujas da cidade, e é isso que persigo: a gosma da cidade, resíduo da cidade, a porra contaminada fecundada nos baldios da cidade. Para infeccionar desejos com delírios mutantes; desobedecer regras básicas — higiene, bom senso, civilidade; afundar a “saúde dominante” com gestos à borda — meu sexo público, minha genitália murcha; escavar o pornô sob os escombros; e, pelo prazer da anomalia, ferver o pulso da precariedade.

1. Imensa ponte de concreto entre duas praias. Eu me espraio sob sua sombra, sentindo a pedra fria arranhar minha pele enlameada. É meio dia, terça-feira de carnaval, eu estou na Redinha depois do transe sujo do Bloco dos Cão. A alguns metros, um corpo politicamente categorizado como homem (cis) prepara um cigarro. Eu o olho. Mordo os lábios. Ele me chama. Imensas vigas ocas de 70m de altura sustentam a ponte nova: um monumento ao progresso atolado de merda, latas recortadas e lixo. Por baixo, a imensa ponte recém construída cheira a ruína. Dois escombros, eu e o homem, malocades no vago da ponte, fumamos crack e fodemos.

2. Como uma pedagogia, a pornografia mainstream — por mais que se segmentarize — define um programa sexual repetitivo, baseado numa economia de corpos adequados, aceitáveis segundo os marcos de uma excitação sexual politicamente regulada. Em outras palavras, pode-se dizer que a pornografia, como indústria sexopolítica, define um regime de excitabilidade que não cessa de des-realizar corporalidades e usos subversivos do corpo, ou alocá-los em posições subalternas.

Foto: Yanna Medeiros

3. Seja com a mão que executa a eutanásia ou com o comprimido que garante a sobrevivência, tudo o que esta sociedade já não produz é potência de vida, porque quer-nos reduzir à biomáquina: à manutenção dos corpos e do sistema que sustentam: bioasceses (dietas, rotinas de academia, baterias de exames), espelho hiperreal (a perfeição é tecnicamente possível — o sanduíche do mcdonalds e o modelo de cueca são sempre mais bonitos na fotografia), xerife interior (não mais a torre central de observação, mas um xerife interiorizado policiando a si mesmo e tudo à sua volta).

4. Corpo, território ocupado pelo sex-Império. Objeto a ser moldado pela tecnocultura heterocapitalista. Corpo de macho. Corpo de macho castrado de cu. Corpo-colônia. Corpo marcado. Corpo usurpado pelos sistemas classificatórios. Corpo lacrado, embalado a vácuo ou triturado e encapsulado para facilitar o tráfego. Tráfico de corpos. Corpo produto. Corpo de macho emburrecido enlatado. Corpo-colônia. Corpo desencarnado. Corpo submisso ao Eu, à identidade transcendente. Corpo de macho dominador submisso. Corpo de macho enclausurado em seus privilégios. Corpo de macho vigiado. Corpo de macho drogadicto e vigiado. Corpo de macho covarde drogadicto e vigiado. Corpo devastado. Corpo photoshopado devastado. Corpo photoshopado sarado devastado vazio. Corpo desabitado. Ruína de corpo. Corpo bombardeado em Gaza. Corpo que se atira da ponte. Corpo suicidado. Corpo sem vida. Corpo impensável. Corpo, território isolado pelo sex-Império. Corpo prozac. Corpo scotch. Corpo cocaine. Corpo desidratado. Corpo de nóia. Corpo amputado de nóia desidratado. Economia de corpos. Corpo, objeto a ser moldado e descartado pela tecnocultura heterocapitalista. Corpo gramacho. Corpo de lixo. Lumpencorpo.
Então… Como vergar esse corpo? Como dobrá-lo?

5. Como resistir? A esse corpo-colônia… A essa cidade em colapso… Como resistir? Aos desejos padronizados, às gramáticas sexuais, ao gênero como ideal regulatório… A essa arquitetura distópica, às montanhas de escombros, à duração da ruína… Como resistir? À mutilação biopolítica… Às redes de vigilância que não cessam de nos enquadrar… Como resistir? Quando mesmo as formas de resistência, a esquerda, a contracultura e a vanguarda parecem sitiadas… Como resistir?

Foto: Yanna Medeiros

6. O lumpencorpo é, ao mesmo tempo em que o resíduo miserável da sobrevida contemporânea, a potência mesma para a desagregação desta, à medida que, em sua incompatibilidade, produz posturas extraviadas, formas desniveladas de vida, vozes dissonantes. Quando o controle nos reduz, eis que resta uma potência inaudita prestes a explodir: o feio que se desnuda ataca a vida nua, o lumpencorpo que se rebela contraria a lumpenvida à qual estamos todes subjugades. A sociedade do nosso tempo produziu tecnologias narcóticas as mais avançadas para impermeabilizar a existência, destituí-la da potência de vida, mas fracassou — e fracassa: a pulsação errática das baratas remanescentes da hiroshima simbólica, a potência contida em cada aleijo, em cada corpo fora da rota, é a sensibilidade (o poder de afecção) capaz de converter abjeção em enfrentamento, fazer da consternação revolta e da fraqueza uma força.

7. O corpo informe que se apresenta a uma plateia insensível, que se expõe em sua fragilidade, que opera rasgos no horizonte e que desenha na cena sua irregularidade, sua imperfeição, sua inadequação, é o corpo que sai do armário para, nesse processo, inscrever sua beleza insuspeitada na hiperrealidade feia da paisagem photoshopada, normalizada, controlada e paranoica.

Foto: Yanna Medeiros

8. Estou de quatro, nu, num corredor da universidade federal. Algumas pessoas passam rápido, outras param e se posicionam, curiosas, para assistir a ação que se segue: um corpo desidentificado, vestindo preto da cabeça aos pés, com uma pá, pega pedras de uma pilha e as arremessa sobre mim.

9. Meu corpo caminha, pega ônibus, enfrenta filas, rouba abacates no supermercado, compra cigarros nas mercearias, espalha coisas inúteis pelos cômodos da casa, mas eu estou nas correntezas sujas da cidade: sou o chorume, a lama, a parte que escorre pelos grandes dedos da cidade, o que resiste a todo molde.

Jota Mombaça pode ser chamade Monstrx pode ser chamade K-trina Erratik. Estuda descentramentos, compõe pop guerrilhas e gosta de moléculas.

--

--

Revista Rosa
Revista Rosa #5

Revista de arte e literatura com temática Queer/LGBT