A Estante dos Filmes Esquecidos: Tristram Shandy

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Revista Salsaparrilha
8 min readJul 19, 2015

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Por Maurício Sellmann

A Estante dos Filmes Esquecidos é uma seção regular do blog dedicada a caçar filmes que, como o explicativo título mostra, caíram no esquecimento ou nem sequer subiram ao reconhecimento. São obras que pensamos terem sido injustamente subestimadas ou que precisam de uma mãozinha para serem redescobertas.

Não foram poucos os fãs das aventuras de Harry Potter que torceram o nariz para as adaptações cinematográficas porque “faltava” a cena x ou o personagem y. Confundiam adaptação com transposição. O roteiro de um filme de duração de duas horas tem, em média, 120 páginas. O último romance da série de J.K.Rowling tinha 552 páginas (na versão brasileira) — faça as contas. Uma adaptação é uma releitura da obra original para outro meio. Assim, roteirista, diretor e produtor têm como objetivo mais importante capturar a essência do texto e não a totalidade da narrativa. Mas e se o original, além de ser longo, tiver como principal característica a recusa em construir uma narrativa convencional?

Laurence Sterne publicou Tristram Shandy (The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman) em nove volumes escritos ao longo de quase uma década (1759–1767). Considerado ora uma anomalia, ora um precursor do modernismo na literatura ocidental, o romance foi lido na época de seu lançamento por conta do humor escrachado — piadas de pênis abundam (trocadilho não-intencional). Tristram Shandy é um aristocrata inglês do século XVIII que começa o romance tentando contar sua própria história. Entre idas e vindas, finalmente decide-se pelo seu nascimento como ponto de partida. Não, nascimento não; sua concepção. Não, um pouco antes; as desventuras de seu tio Toby na batalha de Namur (1695). Mas esse Tio Toby é um senhor personagem, não? Vamos falar da sua corte à viúva Wadman, então. E assim por diante. Os frequentes desvios da narrativa para becos sem saída, não raro, provinham da insistência do narrador, Tristram, em explicar todos os aspectos relativos a determinado evento nos seus detalhes filosófico-científicos mais profundos. Ele é, possivelmente, o primeiro personagem com um severo transtorno de déficit de atenção da história da literatura. Dessa bagunça nasce a comicidade duradoura do livro, que, por isso, é melhor saboreado se lido em alta velocidade. É fácil ver como Tristram Shandy é difícil de ser traduzido em filme.

De que jeito, então, o diretor inglês Michael Winterbottom e o roteirista Martin Hardy (Frank Cottrell Boyce) realizaram Tristram Shandy (Tristram Shandy: A Cock and Bull Story, 2005)? Criando um filme que chama a atenção para o fato de que é um filme sobre as dificuldades de fazer um filme baseado na obra de Sterne. Steve Coogan interpreta Tristram Shandy e Steve Coogan. Entre cenas da vida do personagem-título, vemos também os problemas conjugais as picuinhas profissionais de Coogan, e as discussões em torno do que incorporar ou cortar no filme dentro do filme. Mais meta, impossível. Parece tudo um tanto confuso, mas a montagem de Peter Christelis jamais deixa o espectador perdido.

Winterbottom, à direita, dirige Brydon e Coogan no filme do filme do livro.

O filme dentro do filme abre com Tristram Shandy citando Marx — não Karl, mas Groucho: “O problema com escrever um livro sobre si mesmo é que você não pode ficar de brincadeira.” É a piscadela ao espectador, sinalizando a autogozação que vai permear o longa. Steve Coogan e Rob Brydon interpretam versões ridículas de si mesmos, algo que eles repetiriam com Winterbottom em Uma Viagem Excêntrica (The Trip, 2010) e The Trip to Italy (2014). O Coogan do filme é um egocêntrico que não leu o romance no qual o roteiro se baseia e vive numa guerra de vaidades com Brydon, que interpreta o outro protagonista da história, o Tio Toby. A mesma dinâmica metatextual ocorre com todos os outros atores que interpretam personagens no filme dentro do filme. Entre eles está Gillian Anderson, numa participação especial que rende uma das melhores piadas. Até Tony Wilson, o lendário empresário e jornalista de Manchester, aparece no set de filmagens para entrevistar Coogan, que interpretou Wilson em outro filme de Winterbottom, A Festa Nunca Termina (24-Hour Party People, 2002).

Já os atores que fazem os membros da equipe de filmagens interpretam personagens totalmente fictícios. Jeremy Northam (de A Rede e Invasores) faz Mark, o alter ego de Winterbottom, que passa o filme inteiro com cara de quem está pagando todos os pecados do mundo. Já o roteirista Joe (Ian Hart, de Harry Potter e a Pedra Filosofal, Michael Collins), parece estar se divertindo com toda aquela confusão. O roteirista de Tristram Shandy, Frank Cottrell Boyce desfez sua longa colaboração (Bem-Vindo a Sarajevo, A Festa Nunca Termina, Riqueza Perdida) com Winterbottom após desentedimentos neste filme. Por isso, assina o roteiro sob pseudônimo. Se o contraste perverso entre Joe e Mark já estava no roteiro de Boyce, Winterbottom, de forma bem masoquista, manteve-o na tela.

“Esse é o touro. Daqui a pouco eu mostro o galo.”

Tristram Shandy reproduz a energia anárquica do romance com afinco. Após sermos apresentados ao Tristram adulto, narrador do filme, somos levados à infância do protagonista. Em seguida, para o seu nascimento. Depois, para sua concepção. Tudo isso é intercalado com os bastidores do filme. Lá pelo terço final, produtores e diretor ainda discutem a natureza da produção e a possibilidade de mudar um filme já em curso. Desse jeito, Winterbottom simula a estrutura de fluxo de pensamento do romance, onde Sterne satirizava a ideia novelesca de uma narrativa com começo, meio e fim. Eventualmente, o filme volta sempre ao problema do início. Afinal, como se pode começar propriamente uma história? Não por acaso, o tema do nascimento, o começo de tudo, consta de várias cenas do filme, seja pela presença do filho recém-nascido de Coogan no set de filmagens, nos inúmeros retornos à cena do parto de Tristram, ou na imagem de um útero gigante com Coogan preso dentro.

O romance incorporava muitas das leituras de Sterne à época, incluindo obras de Francis Bacon, Rabelais e as ideias do filósofo John Locke (complementadas no filme com uma menção a Pavlov e seu cachorro, completa com filminho em preto e branco). Passagens inteiras desses livros foram subvertidas e tornadas cômicas. O filme é mais caótico com suas citações, que incluem múltiplas referências originais ligadas à narrativa dos bastidores. Hedda Gabler, a personagem-título da peça de Ibsen que destruiu um casamento e uma vida por capricho, torna-se Heather Gobbler, uma prostituta que passou uma noite com o homem de família Coogan e ameaça colocar a história nos tablóides. Jennie (Naomie Harris, de Operação Skyfall) tem como diretor favorito Rainer Werner Fassbinder (1945–1982), de quem ela cita alguns filmes. Um deles, O Medo Consome a Alma (Ali: Fear Eats the Soul é o título em inglês), de 1971, é um melodrama sobre uma mulher que se envolve com um homem vinte e cinco anos mais jovem. O quarentão Coogan tem um caso com a jovem Jennie. Para enrolar ainda mais o novelo, a namorada de Coogan, interpretada por Kelly Macdonald (Onde os Fracos Não Têm Vez), chama-se Jenny, tornando a vida pessoal de Coogan autorreferencial.

Naomie Harris e Steve Coogan em um momento mágico do filme.

A própria estrutura do filme é constantemente questionada. Jennie discorre sobre uma cena de duelo de Lancelot do Lago (Lancelot du Lac, 1974), de Robert Bresson. Ela argumenta que as cenas de batalha do filme dentro do filme deviam seguir o estilo austero e despojado de Bresson, cuja adaptação da lenda dos cavaleiros da Távola Redonda concentrou-a em sua forma mais básica. Este é um momento em que o roteirista, o diretor e os produtores do filme conversam sobre o que deve ser adicionado ou não ao roteiro de uma história em que nada é básico, a não ser o narrador. E, claro, a estrutura de Tristram Shandy homenageia A Noite Americana (La Nuit Américaine, 1973), de François Truffaut, em que o espectador acompanhava as dores de cabeça de Truffaut ao fazer um filme de época.

A trilha, como não podia deixar de ser, também é uma colagem de referências a filmes com afinidades temáticas. Michael Nyman fez um arranjo da Sarabande de Handel, usada nas cenas da filmagem da batalha. Sarabande já havia figurado com destaque na trilha de Barry Lyndon (1975), o filme de época de Stanley Kubrick. Além disso, várias composições do próprio Nyman para O Contrato do Amor (The Draughtman’s Contract, 1982), de Peter Greenaway, são usadas, mas, curiosamente, Tristram Shandy não incorpora “The Nose-List Song”, que Nyman havia composto para sua ópera inacabada sobre… Tristram Shandy! Também se ouvem temas de Nino Rota para Amarcord e 8 ½ de Federico Fellini em cenas surreais.

À esquerda, Lyndon. À direita, Shandy.

Para além dos experimentos narrativos, o filme é lindo de se ver. O diretor de fotografia Marcel Zyskind, outro regular da trupe de Winterbottom, pode ser considerado um craque com imagem digital de alta definição (convertida aqui para cópia de 35 mm). Ele tira o máximo de vantagem da iluminação ambiente, à base de velas e lâmpadas de baixa potência. Isto faz com que o filme lembre, em alguns momentos, a cinematografia de John Alcott para Barry Lyndon, cuja luz, por sua vez, remetia a pinturas do século XVIII.

Eu não estarei entregando nada se disser que o filme dentro do filme termina também com o nascimento de Tristram. E como termina Tristram Shandy? Com a última cena do romance, que explica em detalhes o cock (“galo”, mas também a genitália masculina) e o bull (“touro”) do título em inglês do filme. Pode-se dizer, assim, que Winterbottom conclui sua produção ouroboros com o título. Sterne adoraria. Ou processaria Winterbottom, nunca se sabe.

“Você quer realismo? Eu sou um adulto falando para uma câmera de dentro da porra de um útero.”

Tristram Shandy não está disponível para comprar, vender, beber ou cheirar no Brasil. Você pode assisti-lo, porém, no Netflix Brasil. O romance também não pode ser encontrado nas livrarias em português (a não ser que você esteja seriamente pensando em comprar uma edição lusitana de 150 reais). Se você conhecer alguém que trabalhe numa editora brasileira, aí está a chance de sugerir que publiquem uma nova tradução da obra de Sterne.

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Originally published at revistasalsaparrilha.com on July 19, 2015.

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