Almanaque Salsaparrilha — Fevereiro de 2018

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3 min readFeb 5, 2018
O cineasta russo Sergei Eisenstein pronto para o corte.

E estamos de volta.

Depois de (quase) um ano de hiato, voltamos a armar nossa tenda na internet. Agora, em vez das receitas, um tanto impessoais, umas folhinhas de almanaque para ler enquanto se toma café. Afinal, salsaparrilha é planta de mil e uma utilidades, como um bom almanaque. É neste formato que essa newsletter chegará a você a cada mês com uma colagem do que publicamos no período e do que vimos por aí.

Colagem lembra, claro, o monstro de Frankenstein. No início de janeiro, relembramos a primeira publicação do romance de Mary Shelley, que teve um número grande de versões, cada uma com seus defensores, até chegar à edição final da autora, de 1831, mais humana, mais direta, mais complexa. Nunca é demais enfatizar a importância de uma edição. [“Prole Hedionda: Frankenstein 200”, Parte I e Parte II]

No caso de Raymond Carver, que escrevia principalmente contos sobre a vida sem rumo e sem saída de uma classe média baixa norte-americana, cortes feitos pelo editor Gordon Lish em seus contos mudam tudo. O Carver de Lish é seco, de poucas palavras; o Carver sem os cortes pode ser mais sentimental. Leia 68 Contos de Raymond Carver e Iniciantes, e escolha você mesmo o seu.

É de se imaginar se um outro clássico, agora no cinema, teria o mesmo sucesso se não fosse a interferência de editores talentosos. Na verdade, como mostra este curto documentário (com legendas em português), Guerra nas Estrelas (1977) teria sido um desastre cósmico se George Lucas não tivesse deixado a montagem nas mãos dos talentosos Paul Hirsch, Marcia Lucas (esposa do diretor) e Richard Chew, que deixaram a história mais clara e dinâmica e ganharam um Oscar por isso. Não por acaso, Lucas meteu os pés pelas mãos de novo vinte anos depois, quando quis reviver sua história com a prequela Star Wars: Episódio I — A Ameaça Fantasma (1999). O documentário oficial dos bastidores da produção (em inglês sem legendas) revela que o diretor estava completamente perdido quando apresentou a versão preliminar do filme. A poucos dias do lançamento nos cinemas, não havia muito que os editores Ben Burtt e Paul Martin Smith pudessem fazer.

Guerra nas Estrelas, aliás, deve vários elementos à saga em quadrinhos dos Novos Deuses, criada por Jack Kirby para a DC Comics na década de 1970. Em sua biografia sobre o quadrinhista (Jack Kirby: O Criador de Deuses), que faria cem anos em 2017, Roberto Guedes conta que o fracasso de vendas dos gibis dos Novos Deuses se deve à ausência de um editor de pulso firme para controlar Kirby. Não foi o caso das suas histórias em parceria com o roteirista Stan Lee na Marvel, na década de 1960. Lee era também editor, e dos bons, o que explica em parte o sucesso duradouro de Homem-Aranha, Quarteto Fantástico, Vingadores e companhia. Contamos melhor essa história no nosso artigo sobre Kirby e sua biografia. [“Jack Kirby: o deus torto da Rua Suffolk”]

Uma boa edição faz a própria narrativa, seja pelo que mostra como pelo que omite. No videogame Her Story, sete depoimentos da suspeita de um crime são picotados em 271 trechos para que o espectador/jogador os junte e descubra a verdade [Sexo, mentiras e videogame: a narrativa estilhaçada de Her Story]. Mas há uma única verdade? No último romance de John Le Carré, Um Legado de Espiões, acompanhamos um espião aposentado da inteligência britânica enquanto ele revisita documentos e ouve versões para uma história de seu passado que volta para lhe assombrar — e sobre a qual talvez ele nem saiba tudo. A memória, como sabemos, é só a versão mais confortável dos fatos.

Até a próxima edição.

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