Caminhos da floresta (e do coração?)

A gerência
Revista Salsaparrilha
8 min readJun 7, 2015

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Por Tiago Ramos

Dentre todos os gêneros do cinema, o terror destaca-se por ser aquele que mais depende do envolvimento do espectador para obter os efeitos desejados pelos realizadores. Vejamos: na comédia, raramente precisamos criar um vínculo afetivo com o que estamos assistindo para rir de uma boa piada. Já no drama, as experiências dos personagens precisam encontrar algum paralelo nas nossas para nos comover, é verdade, mas não precisamos de vivências idênticas para nos emocionarmos. Por outro lado, no terror, o medo e a ansiedade dos personagens necessitam ser igualmente nossos para que a obra seja bem-sucedida. Precisamos esquecer da segurança de nossas poltronas, transportar-nos para o outro lado da tela e sentir a mesma angústia dos nossos avatares cinematográficos se formos terminar a sessão sem querer o nosso dinheiro de volta.

Enquanto isso, os videogames vêm aprimorando seus mecanismos para inserir o jogador em seus mundos fictícios a passos largos. Do advento dos first-person shooters, jogos nos quais tudo é mostrado da perspectiva do personagem por nós controlado, passando pelo Kinect e até o futuro Project Morpheus, a indústria dos games domina o conceito de imersão como nenhuma outra. Diante disso, não deixa de ser surpreendente que títulos de terror sejam tão pouco explorados pelas desenvolvedoras, com jogos como Alien: Isolation e o recente The Evil Within sendo relativamente raros. Nenhum deles, entretanto, oferece uma experiência tão envolvente quanto a proporcionada pelo assustador Year Walk, aplicativo para dispositivos portáteis lançado em 2013.

Apesar do gênero em que se enquadra, a trama do jogo gira em torno de uma história de amor. Tudo tem início no último dia do ano de 1893, em uma floresta coberta de neve no interior da Suécia. Seu personagem — cujo nome é revelado apenas posteriormente — encontra-se secretamente com uma garota, objeto de sua afeição, em um moinho. Lá, a moça confessa que, apesar de nutrir um grande carinho por você, ela decidiu aceitar a proposta de casamento de outro pretendente. Inconformado com a rejeição, você então retorna para seu casebre determinado a realizar, a partir da meia-noite, uma perigosa caminhada ritualística por entre as árvores em busca de uma visão do futuro. Seu objetivo: descobrir se a garota realmente levará a cabo a intenção de casar-se com o seu rival ou se ainda resta alguma esperança de vocês dois viverem felizes para sempre.

Um encontro às escondidas.

O ritual iniciado por seu personagem — denominado Arsgang ou Year Walk (em português, algo como “caminhada anual”) — desperta também cinco criaturas sobrenaturais. Elas demandarão, uma após a outra, a solução de quebra-cabeças para que você possa, ao final, enxergar o futuro e descobrir o destino da sua amada. As soluções para os puzzles compõem a primeira evidência da imaginação investida pela empresa sueca Simogo em seu aplicativo. Por se tratar de um jogo para celulares e tablets, os criadores não puderam contar com a multitude de botões e a complexidade de comandos disponíveis em um Xbox ou um Playstation. Em seu lugar, eles exploraram as características inerentes da plataforma escolhida — como os acelerômetros dos aparelhos e o touchscreen — forçando o jogador a frequentemente pensar em saídas que vão além do que se ouve e vê na tela para avançar.

Sob o aspecto narrativo, o jogo abraça suas referências cinematográficas com orgulho e prazer (ora, você estava achando que minha breve digressão sobre filmes de terror foi à toa?). Contado integralmente a partir do ponto de vista do protagonista (pense em A Bruxa de Blair transformado em game), Year Walk possui gráficos chuviscados e trêmulos, como se gerados por um projetor velho, resgatado de um antigo cinema de bairro. Em alguns momentos, é possível até mesmo ouvir o barulho do aparelho imaginário em operação. Alinhada com essa decisão estética estão a iluminação baixa e a paleta de cores quase que integralmente limitada a tons pastéis, aproximando o visual do jogo ao de um filme em preto-e-branco. Com isso, intensifica-se a força do contraste entre o branco da neve e o vermelho do sangue.

Não que o aplicativo seja graficamente violento (tematicamente, porém…). Antes de mais nada, Year Walk é um jogo de raciocínio e exploração, exigindo do jogador atenção e criatividade para a resolução dos enigmas, cujas recompensas são sempre a possibilidade de adentrar novos pontos da floresta onde a caminhada acontece. Como nas melhores obras de terror, o medo nasce mais da sugestão, da ansiedade sobre o que se esgueira no desconhecido e menos do que é efetivamente mostrado. Os principais truques do gênero são empregados com perfeita moderação: as imagens de impacto psicológico mais forte, os sustos aplicados quando menos se espera e até mesmo a esparsa trilha sonora. Um dos momentos mais aterrorizantes do game deriva justamente da repentina inclusão de uma música, indicando que o jogador está prestes a visitar um local, até então inacessível, onde algo desagradável o espera. Se você sair do aplicativo às pressas e levar alguns dias para reunir a coragem necessária para continuar, tenha ao menos o consolo de que não foi o único.

O Year Walk Companion.

Por mais assustador que o game seja, você talvez o conclua sentindo-se um tanto desapontado com a superficialidade de seu enredo. Exceto pelo diálogo inicial no moinho e outro próximo ao fim (com quem e em quais circunstâncias deverão permanecer em segredo), tudo o que você faz é perambular por entre as árvores e encontrar soluções para os empecilhos impostos pelos monstros. Após aproximadamente duas horas, você finalmente saberá o que o futuro reserva para a sua história de amor, e assistirá aos créditos começarem a subir. Essa aparente simplicidade é enganadora. Na verdade, a sequência final fornece uma informação relevante para um outro aplicativo, o Year Walk Companion. Será nele que a riqueza da trama pensada pelos desenvolvedores se revelará plenamente ao jogador.

O Companion, apesar de seu título, é componente essencial para a experiência que o game se propõe a oferecer. À primeira vista, ele se apresenta como um breve dossiê sobre o Arsgang e as criaturas encontradas na floresta. Por meio deste segundo aplicativo, aprendemos sobre o arcabouço folclórico do jogo, todo fundamentado em autêntica mitologia escandinava. Descobrimos que o Year Walk era um ritual pagão efetivamente praticado em algumas regiões da Suécia desde o início do século dezenove até o começo do vinte, conduzido por pessoas que desejavam obter alguma informação relevante do futuro (o resultado de suas colheitas, por exemplo). Ainda, entendemos melhor as motivações das entidades que dificultam nosso caminho durante o jogo, e como as respostas aos quebra-cabeças por elas apresentados quase sempre guardam relação com suas raízes folclóricas.

A mais assustadora das criaturas.

É sua base histórica que leva Year Walk a transcender seus objetivos como entretenimento e tornar-se um fascinante evento cultural. Talvez a fonte deste encantamento seja a descoberta de uma mitologia completamente nova. Ou talvez seja porque as macabras origens e hábitos das criaturas folclóricas que cercam o ritual do Arsgang fazem os nossos Saci-Pererê e Mula-Sem-Cabeça parecerem inofensivos Teletubbies em comparação. Seja qual for a razão, o mundo apresentado pelos aplicativos parece clamar por uma investigação mais aprofundada. Ávido por material adicional sobre o tema, revirei livrarias virtuais sem sucesso, apenas para descobrir que tais rituais e monstros foram praticamente esquecidos ao longo do tempo. Felizmente, o interesse despertado pelo jogo tem levado alguns acadêmicos a revisitarem esse rico folclore. Você pode ler um excelente artigo sobre um desses casos aqui.

A chave obtida ao final do game, quando transposta para o Companion, revela exatamente detalhes de uma outra pesquisa — esta fictícia — sobre o ritual e a trama encarnada pelo jogador no primeiro aplicativo. Entrar em grandes detalhes é arruinar por completo a experiência, sendo suficiente dizer que a faceta oculta do Year Walk Companion nos apresenta um segundo protagonista, este vivendo nos tempos atuais. Enquanto o desolado rapaz de coração partido em Year Walk se arrisca para descobrir os segredos do futuro, o novo personagem busca desvendar o passado. Suas ações revelarão a história completa de ambos, uma inesperada conexão entre os dois, e conduzirão o jogador a caminhar pela floresta uma última vez.

Como escrevi no início, muitos dos efeitos do terror dependem da completa imersão do espectador / jogador para funcionar. Aqui, a mesma regra se aplica. Recomendo, assim, que você reserve algumas horas sozinho no escuro, apanhe seu celular ou tablet (preferencialmente este último), municie-se de um bom par de fones de ouvido e permita-se transportar para uma congelante madrugada sueca no final do século dezenove — e de volta para o presente. Você pode até duvidar, mas a semana dos namorados que ora se inicia me parece o momento ideal para fazê-lo. Nada como uma horripilante história de amor — se seu final é feliz ou não deixarei a cargo do leitor descobrir — para nos fazer valorizar quem nos permitiu ser parte tão importante de suas vidas. Afinal, se você tem alguém com quem celebrar a data que se aproxima, você sabe que, no fundo, a única coisa a temer é não tê-los caminhando ao nosso lado na floresta.

Year Walk está disponível para dispositivos móveis baseados no sistema operacional iOS aqui, ao preço de US$ 3,99. O Year Walk Companion pode ser obtido gratuitamente neste outro link. Uma versão do jogo para computadores — levemente diferente da original — pode ser adquirido via Steam ou Mac App Store.

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Originally published at revistasalsaparrilha.com on June 7, 2015.

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