Criaturas sem rumo: os filmes (e a série) de Cary Fukunaga

A gerência
Revista Salsaparrilha
18 min readNov 9, 2015

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por Maurício Sellmann

Quando criança, Cary Joji Fukunaga se mudou bastante de cidade em cidade na Califórnia. Adulto, viajou por conta própria pela Europa e pelo México, em busca de um rumo. Queria ser snowboarder profissional, estudou história e ciência política, e acabou diretor de cinema. Os protagonistas de seus filmes também têm essa necessidade de encontrar um caminho — só que com mais ênfase em “necessidade”: imigrantes ilegais, pequenos soldados, membros de gangues, garotas maltratadas — gente sem pátria procurando um lar ou, ao menos, uma estrada. Sem ser arquétipos, representam grupos inteiros de gente que esse descendente de japoneses e suecos ilumina por amostragem nos três filmes (e uma série) que veremos a seguir.

México/EUA, 2009

Essa produção dos atores e compadres Diego Luna e Gael García Bernal (E Sua Mãe Também) começou a ser pensada cinco anos antes, quando Fukunaga estreou o curta Victoria para Chino, baseado na história real da jornada de imigrantes dentro da sufocante carroceria de um caminhão no sul dos EUA. No primeiro longa do diretor, também autor do roteiro, a undocumented (sem-documentos) é Sayra (Paulina Gaitan), a quem o pai vem buscar na casa dos avós dela em Tegucigalpa, capital de Honduras, para juntar-se à mãe e aos irmãos no estado norte-americano de Nova Jersey. Pai, filha e tio iniciam, então, uma viagem pela Guatemala e, como clandestinos num trem, pelo México.

O caminho de Sayra vai se cruzar com o de Willy “El Casper” (Edgar Flores), membro da gangue barra-pesadíssima Mara Salvatrucha no estado mexicano de Chiapas. No começo do filme, Casper recruta para a Mara um pré-adolescente (Kristian Ferrer) que ganha o apelido de Smiley (risonho) após sobreviver ao brutal ritual de iniciação. Seu tempo se divide entre a gangue e uma namorada secreta, que vai lhe custar caro. Durante um assalto aos ilegais no trem onde está Sayra, Casper trai o chefe da gangue. Sem rumo, ele se junta à família de Sayra na viagem até a fronteira, mas a Mara quer vingança.

Casper tem que pagar um preço alto.

Fukunaga pesquisou a fundo os costumes e histórias das gangues antes de começar as filmagens. Está claro nas saudações e nos rituais dos membros, que contaram com a orientação de integrantes verdadeiros das Maras. Numa história de múltiplos pontos de vista, o pequeno Smiley representa os olhos do espectador na descoberta do mundo da gangue. A primeira vez em que ele entra no quartel-general da Mara assemelha-se à sequência sem cortes em que o jovem gângster Henry (Ray Liotta) atravessa os bastidores da boate Copacabana com a namorada em Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990), de Martin Scorsese. Em ambos os filmes, é o futuro dos personagens que os espera no fim da cena. Apesar da diferença de cenários, o que salta aos olhos, nos dois casos, é a entrada dos novos membros num mundo novo que lhes promete poder e proteção familial. A visão do chefe da gangue, El Sipe (Giovanni Florido), com um bebê no colo no fim da cena em Sin Nombre só reforça esse aspecto.

Todos querem encontrar uma família que os acolha e com quem se identifiquem. Sayra sente-se mais à vontade com Casper do que com seu próprio pai. “A Mara é uma família”, Smiley repete com convicção crescente. Ser aceito por essa família é uma jornada metafórica no caso de Smiley. Para Sayra, ela é a literal travessia de rios e países inteiros, como se partisse do inferno hondurenho por meio do purgatório mexicano para chegar ao paraíso do sonho norte-americano. Ironicamente, Fukunaga filma este esquema com os sinais trocados. A casinha pobre da avó de Sayra em Tegucigalpa é colorida e acolhedora. A favela que a circunda ganha ares de um bucólico presépio, sem sinais de que estamos no meio de uma das cidades mais violentas do mundo. A paisagem do México que o trem corta vai do deslumbrante ao pobre e sujo à medida que se aproxima da fronteira com os EUA. Do outro lado do Rio Grande, o Texas é uma deprimente floresta de cimento e concreto castigada pelo sol. Não seria a única vez em que o diretor faz isso para provocar confusão na plateia, indicando como é difícil aos personagens encontrar o caminho certo.

Venha para o México

A tragédia pode estar na próxima esquina. Com essa atmosfera fatalista, Sin Nombre honra a tradição dos filmes de crítica social dos estúdios Warner Brothers na década de 1930. Por outro lado, a filmagem em locações com amadores e atores pouco conhecidos remete ao neorrealismo italiano, com suas histórias de pequenos anjos trucidados pela realidade miserável durante e após a Segunda Guerra Mundial. Como Vittorio de Sica em Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, 1948), Fukunaga alivia o drama incessante com um pouco de humor. Um exemplo são as cenas de recepção dos viajantes clandestinos no trem por moradores das diversas vilas por onde passam. Beasts of No Nation também vai beber da fonte italiana para encontrar a humanidade de suas situações.

Anjos de cara suja: Smiley não é Dadinho.

De qualquer forma, para o bem e para o mal, Sin Nombre evita a armadilha fácil da romantização da vida no crime, procurando o humano por trás da violência. Smiley não é o Dadinho/Zé Pequeno de Cidade de Deus (2001). Para o filme brasileiro, Fernando Meirelles criou um vilão, sem nuances, mau feito um pica-pau do começo ao fim. O menino-gângster de Fukunaga acredita defender um grupo que lhe deu um rumo — a sua família.

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O trem que vai cruzar o México é aguardado com ansiedade pelos imigrantes em Chiapas. Quando finalmente chega, Fukunaga abandona o estilo semidocumental da câmera na mão em favor do artifício. A máquina se aproxima da estação na penumbra, iluminada por trás por um gigantesco holofote, dando à cena uma atmosfera ao mesmo tempo mágica e sombria. As sombras que pulam desesperadas nesse trem de carga e se aboletam no seu teto — imigrantes de verdade que Fukunaga contratou como figurantes — assemelham-se ao gado manso indo para o abate — ou a prisioneiros resignados seguindo para um campo de concentração.

Inglaterra/EUA, 2011

Considerando a reação de um promotor e da Câmara de Vereadores de Campinas ao tema de uma questão do ENEM 2015 (“Não se nasce mulher, torna-se mulher”), nada mais atual que um filme sobre as agruras de uma mulher na Inglaterra da primeira metade do século XIX. Órfã de pai e mãe, Jane Eyre (interpretada por Amelia Clarkson quando criança) vive com uma tia (Sally Hawkins) que a detesta e com um primo que a atormenta, inclusive fisicamente. Aos dez anos, a tia a manda para um internato de garotas, onde precisa aguentar punições do tipo ficar em pé num banco minúsculo o dia inteiro sem comer nem beber. Ao se tornar adulta (a excelente Mia Wasikowska), Jane é contratada para ser tutora da pequena Adèle, em Thornfield Hall. Lá, ela conhece o taciturno dono do lugar, Edward Rochester (Michael Fassbender), que se apaixona pela nova empregada. Relutante, ela corresponde aos sentimentos dele, mas um terrível segredo a faz fugir de lá.

Esta não é toda a história. O pulo do gato da roteirista Moira Buffini (Byzantium) é começar o filme pela última linha do parágrafo anterior, desprezando a estrutura linear do famoso romance de Charlotte Brontë. Todo o resto aparece em flashbacks inseridos em momentos oportunos, como recordações de Jane. Como em Sin Nombre, estradas e caminhos ficam em evidência durante toda a história. Os charcos e morros do Peak District, no condado de Derbyshire, inóspitos e açoitados pelos ventos, servem como manifestação física dos sentimentos que perturbam Jane. Aqui se percebe a predileção de Fukunaga pela narrativa gótica, privilegiada pelo trabalho de Adriano Goldman (O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias), o mesmo diretor de fotografia do seu filme anterior. Em Sin Nombre, uma cena-chave se passa num cemitério; noutro momento, um membro da Mara aparece na frente de Casper como um mau presságio. Em Jane Eyre, há o romantismo que assemelha as turbulências das vidas humanas à violência da natureza e dos elementos, a obsessão pela morte e seus símbolos. Os ambientes são escuros, Jane ouve vozes e ruídos misteriosos quando está sozinha. Seu primeiro beijo com Rochester é embalado por uma forte ventania repentina. No final da história, ela literalmente terá que atravessar um lugar tocado pela morte para obter respostas.

Nevoeiro e paixão.

Mesmo trabalhando com todos esses símbolos, Fukunaga recusa-se a pintar Jane como uma mulher fora do comum. “Eu devo cumprimentá-la por sua resposta”, diz Rochester a Jane durante uma conversa. “Não há 3 em 3 mil governantas que me teriam respondido desta maneira.” “Então, o senhor não tem passado muito tempo conosco. Sou o mesmo tipo de passarinho sem graça que todas as outras, com suas histórias de infortúnio comuns”, ela dispara.

Smiley era um garoto como tantos outros; Jane é uma entre tantas outras Janes. Brontë a descreve no livro como uma jovem comum e lhe dá um nome à altura: Jane, como na expressão Plain Jane (Maria Sem Sal), e o sobrenome Eyre, que tem origem no verbo francês errer (errar, vagar). A Jane de Wasikowska é uma Maria como tantas outras, em busca de um lugar para chamar de lar e de afirmação numa terra de homens. Mesmo as mulheres de classe social mais alta vivem sob formas de repressão na trama. Um dos gestos recorrentes das mulheres no filme é virar o rosto ou somente os olhos, nervosas, para um homem em busca de aprovação para o que dizem e fazem. O trunfo de Fukunaga é realçar esses aspectos sem esconder que está filmando uma história romântica declarada. No meio disso tudo, ele deixa claro que se Jane achar seu príncipe no fim do caminho, ela o fará em seus próprios termos.

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Fugindo de Thornfield Hall, Jane cai exausta entre os arbustos do Peak District e se encolhe em posição fetal. É o momento mais romântico do filme, em que a heroína encontra conforto para os seus infortúnios no seio da mãe-terra. Fukunaga disse, numa entrevista, que queria filmar Jane Eyre da forma mais naturalista possível, para que o público pudesse mergulhar mais completamente nas situações. No entanto, essa escolha só fez realçar os elementos românticos, como nesta cena. (Se ainda restar dúvidas, basta escutar os violinos da trilha sonora de Dario Marianelli.)

EUA, 2015

Mais conhecido por ser o primeiro filme comprado e exibido pelo Netflix simultaneamente com os cinemas, Beasts of No Nation (Bestas sem Pátria, na tradução) nem chegou a ser exibido no circuito brasileiro. É uma pena porque, assim como os anteriores desta lista, merece ser visto em tela muito grande. Mesmo filmando em digital por causa do orçamento, o diretor — aqui também diretor de fotografia — não sacrificou a qualidade das imagens. Ele aproveita novamente as vastas paisagens à disposição, as selvas de Gana neste caso, para compor uma atmosfera entre o documental e o delírio, que deve não pouco a Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola. Outra fonte visual são as imagens do fotojornalista Tim Hetherington, quando cobriu a guerra civil na Libéria.

Selva do delírio. Acima, Apocalypse Now. Abaixo, Beasts of No Nation.

Tanto o filme quanto o livro original de Uzodinma Iweala tomam o título de uma canção de protesto do lendário cantor e ativista político nigeriano Fela Kuti. Entretanto, nem Iweala nem Fukunaga nomeiam o país onde se passa a história. O lugar é igual a outros tantos da África Ocidental que passaram por anos de convulsão. Um país de bestas sem pátria e sem nome, cuja história de infortúnios comuns a muitos ninguém lembraria noutras circunstâncias — como os outros protagonistas de Fukunaga, caracterizados já nos títulos dos filmes.

O zé-ninguém da vez é o menino Agu (Abraham Attah). O núcleo narrativo de Beasts é o mesmo de Império do Sol (Empire of the Sun, 1987), de Steven Spielberg: garoto tem infância feliz interrompida pela guerra. O desenvolvimento da história de Fukunaga, porém, é mais brutal: após ser separado da mãe e ver o resto de sua família morrer, Agu cai nas mãos de uma tropa rebelde sob as ordens do carismático e perigoso Comandante (Idris Elba, o único ator carismático e perigoso o suficiente para o papel). Submetido a treinamento, provações e lavagem cerebral, o menino vira uma máquina de matar, como as outras crianças-soldados ali. O Comandante ecoa o mantra dos filmes anteriores: “Vocês são minha família”, repete para os seus dedicados meninos-homens. No fundo, porém, Agu continua alimentando esperanças de reencontrar a mãe.

No livro, Iweala faz o leitor experimentar tudo pela voz do próprio Agu, que narra a sua história numa sintaxe enviesada, pegando de empréstimo estruturas de vários idiomas africanos. É também a voz de um garoto esforçado que tenta se comunicar da maneira mais clara possível numa idade em que ainda está a descobrir o mundo, como o menino encarcerado de Quarto (Room), o romance de Emma Donoghue. Fukunaga mantém a voz distinta do personagem em narrações em off aplicadas com moderação. De toda maneira, Agu é o único guia da plateia: vemos o que ele vê e prosseguimos junto com ele. Daí, vem a força e a fraqueza do filme.

O roteiro de Fukunaga desenvolve a história numa cronologia direta, diferente da estrutura em flashbacks de Jane Eyre. Iweala usou a mesma técnica da roteirista daquele filme no seu livro, que começa com a captura de Agu pelas tropas do Comandante. Um dos problemas da adaptação é justamente o destino deste personagem, que diverge do fim mais bem-resolvido de Iweala. Junte-se a isso a duração (cerca de 2 horas e meia) e a segunda metade do filme acaba diluindo o impacto da primeira. Curioso que o diretor tenha experimentado maior dificuldade em adaptar um livro de 140 páginas do que as quase 500 de Jane Eyre, com um roteiro enxuto de duas horas. É como se o próprio Fukunaga sempre precise de mais de uma estrada para contar a sua história a contento. Fato é que ele foi mais bem-sucedido com a polifonia de Sin Nombre (3 personagens principais e mais 2 secundários importantes), e com a “policronia” de Jane Eyre (a ação se desenrola em 3 tempos diferentes). Compreende-se que ele quisesse tomar tempo para tornar as transformações de Agu mais críveis, o que não impede que se fizessem alguns cortes na segunda metade.

Uma temporada no inferno: o Comandante doutrina Agu.

Nada disso, porém, apaga o brilho dos momentos isolados e, especialmente, do grande trunfo do filme, o estreante Attah. Como Agu, ele precisa carregar o filme nas costas, o que faz com uma falsa aparência de facilidade. A cena em que o Comandante o força a matar pela primeira vez — com um facão — é capaz de assombrar o espectador por dias a fio, não pela violência do evento em si mas pela mudança que se opera no rosto do menino. Fukunaga confirma ser ótimo diretor de atores no último monólogo de Agu — uma reprodução fiel das últimas linhas do livro –, que ganha uma enorme carga emocional na voz e no rosto de Attah. O pequeno ator ganense já ganhou um prêmio de interpretação no Festival de Veneza deste ano.

Impossível não ver um close-up de Agu e não lembrar da cena final de Garota Negra (La Noire de…, 1966), de Ousmane Sembene. No filme do senegalês, um garoto que acaba de praticamente botar para correr um francês, numa referência ao fim do período colonial em vários países da África, tira a máscara que estivera usando até então e revela o olhar desafiador que ela escondia. Atrás dele, uma grade; à frente, um futuro livre e cheio de promessas. Quando Agu olha para além da câmera nos últimos momentos de Beasts, há somente a selva e o horror atrás dele. Sua face revela somente o cansaço de quem chegou ao fim de uma estrada e encontra uma encruzilhada, sem saber para onde seguir.

Dois olhares: à esquerda, Ibrahima Boy em Garota Negra. À direita, Attah em Beasts.

Apesar de todas as especificidades de lugar, a história de Agu está longe de se encaixar somente na turbulência de países como Serra Leoa, República Centro-Africana e Nigéria. Parece uma nova versão da vida do Smiley de Sin Nombre. Ou dos soldados-mirins das FARCs colombianas. Ou dos meninos do tráfico retratados no documentário brasileiro Falcão (2006), de MV Bill e Celso Athayde. Ou do adolescente que mata sob a influência de mais um carismático psicopata no australiano The Snowtown Murders (2011), de Justin Kurzel (baseado em fatos reais). É uma experiência universal, resumida por…

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As trincheiras nas quais Agu se move com aparente familiaridade é uma entre muitas imagens na fronteira entre a realidade e o pesadelo do filme. Seja por alucinação ou pela iluminação, a cor vermelha invade algumas cenas de Beasts. O barro destas paredes e a lama por onde o menino arrasta os pés formam um labirinto que parece ter sido construído com sangue. Neste ponto da narrativa, Agu e o espectador já participaram, de uma forma ou de outra, de todo tipo de horror de guerra. É a melhor tradução visual da vida do pequeno soldado, que avança titubeante, acompanhado pela câmera de Fukunaga em uma longa sequência sem cortes, outra marca registrada do diretor. Ele vira para um lado, pára, tenta outra vez, até chegar a uma possível saída, em todos os sentidos.

EUA, 2014 (1ª temporada)

Mesmo contendo 8 episódios, a primeira temporada de True Detective pode ser considerada um grande filme de 8 horas de duração. Trata-se de uma história fechada, característica do formato série-antologia, em que as temporadas são independentes entre si e trazem histórias diferentes, como Fargo ou American Horror Story). Além disso, Fukunaga dirigiu tudo, coisa rara no formato serial televisivo, em que diretores diferentes se revezam e a voz autoral dominante é a do criador. Aqui, o escritor Nic Pizzolatto divide as honras com Fukunaga, que imprime sua interpretação visual do começo ao fim da narrativa.

Nos cafundós da Louisiana, os detetives Rust Cohle (Matthew McConaughey) e Marty Hart (Woody Harrelson, o melhor e mais subestimado ator na série) investigam o assassinato com toques ritualísticos de uma prostituta deixada nos pântanos sob uma árvore. Pistas levam-nos a outros desaparecimentos de mulheres sob circunstâncias cada vez mais nebulosas. A trama se passa em 3 pontos diferentes de um período de quase 20 anos (1995, 2002 e 2012), o que indica que as descobertas vão ficando mais escabrosas com o tempo.

True Detective reúne todos os elementos característicos dos filmes de Fukunaga: uma narrativa em zigue-zague temporal, múltiplas perspectivas, a ambientação gótica (que a Louisiana tem em abundância), a atmosfera fatalista, a ênfase nas grandes paisagens naturais cortadas por minúsculas estradas levando a lugar nenhum. Cerca de 50% da ação transcorre dentro de um carro, onde os detetives não raro conversam sobre a vida e a morte, sob a perspectiva pessimista de filósofos como E.M. Cioran, Arthur Schopenhauer ou do escritor Thomas Ligotti — a estrada como local para se fazer sentido do mundo.

A bela abertura da primeira temporada.

Novamente, Fukunaga trabalha com a inversão de sinais nas imagens e ações. Marty trai a mulher, comporta-se agressivamente, revela-se possessivo, um verdadeiro macho alfa. Ao mesmo tempo, quer desvendar o crime da prostituta para vingar as mulheres vitimadas. Quando visita um prostíbulo, dá dinheiro a uma das garotas para que ela comece vida nova. O tempo passa e Marty torna-se mais religioso, até como forma de combater o vício em álcool, embora seu comportamento passe a ser mais autodestrutivo. No outro extremo, seu parceiro Rust, apesar do ateísmo, comporta-se como um místico, mal escondendo de si mesmo que, de alguma forma, a solução para os assassinatos vai deixá-lo mais próximo da salvação. Deixa o cabelo e a barba crescerem no estilo de um Jesus Cristo caipira. Por fim, há as árvores, que normalmente são símbolos de vida. Em True Detective, são locais de mau agouro e morte. Em Sin Nombre, uma árvore frondosa num cemitério bucólico e colorido é cenário para uma cena trágica. No último episódio do seriado, um emaranhado de galhos secos e plantas emoldura um lugar de depravação e violência. No mundo estranho de Fukunaga, é difícil firmar o pé pois a paisagem nunca aponta para a direção certa.

Sob a árvore da morte.

Nesses detalhes, vê-se também a tensão entre diretor e roteirista. Pizzolatto escreveu sozinho toda a série. Muito por culpa do roteiro, a trama é irregular, com mudanças de ritmo desengonçadas entre os episódios, o que indica falta de domínio de estrutura. As inúmeras cenas de conversa entre Rust e Marty num carro em movimento vão se transformando em autoparódias. (Os comediantes Key & Peele, percebendo isso, fizeram a festa em seu programa no canal Comedy Central.) Muitos diálogos são mais espertos do que aparentam na primeira vez, porém outros tantos são apenas pretensiosos — ou “autoconscientes demais”, como diria o detetive Cohle. Não é à toa que os melhores episódios são aqueles que dependem mais da execução visual que dos diálogos. “Who Goes There” conta com uma sequência de roubo e fuga de seis minutos sem um único corte, que garantiu a Fukunaga um prêmio Emmy de melhor direção em série dramática em 2014.

Mundo confuso: Cohle e Hart em ação.

A execução do episódio final revela mais claramente os conflitos entre roteiro e direção. O diretor encontrou uma casa de plantação sulista apavorante e um vilão de voz profunda — uma atmosfera perfeitamente gótica para a resolução do grande mistério da série. Mais uma vez, o roteiro de Pizzolatto o deixa na mão, trazendo uma conclusão num estacionamento de hospital com um diálogo não mais do que banal sobre a luta entre a luz e as trevas. O roteirista quer indicar um rumo após a confusão dos eventos anteriores, mas está apenas repetindo o óbvio. Pior: desmerece os personagens.

Por outro lado, uma crítica comum a Pizzolatto — misoginia — é injusta. Ainda assim, ela já sugere o elefante no meio da sala, que poucos, Fukunaga entre eles, notaram: a posição das mulheres no mundo de True Detective. Frequentemente, elas são vítimas, sofrendo violências constantes dos homens. No entanto, o ponto central da série é exatamente esse. “Ignorar as mulheres pode ser o ponto cego do seriado, mas também é um de seus temas principais”, argumentou a crítica de TV da revista eletrônica Slate, Willa Paskin. À medida que investigam, Rust e Marty observam que todas aquelas garotas e mulheres desapareceram ao longo de décadas sem que se fizesse barulho por isso. A filha mais velha de Marty, sua esposa traída (Michelle Monaghan), as prostitutas que os detetives encontram — todas essas mulheres tentam fazer algo mais que sobreviver numa terra em que estão fadadas à brutalidade, à decepção e ao esquecimento. Nada mais Jane Eyre.

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Um dos muitos planos panorâmicos define True Detective à perfeição. Seguindo uma intuição, Rust e Marty chegam a uma igreja abandonada num descampado. Do outro lado do rio, uma enorme fábrica fumacenta engole a paisagem. O local de fé, abandonado e caindo aos pedaços, fica à sombra do lugar do progresso, que paira como um fantasma ao fundo, indiferente ao drama daqueles homens diminutos no carro estacionado em frente à igreja. Dali sairá a primeira grande pista que os colocará no caminho de poderosos interesses e os levará a becos sem saída.

“Esta é uma televisão da imaginação”, Agu fala apontando para a carcaça vazia de um televisor. O potencial comprador olha, incrédulo, enquanto o menino o encoraja a chegar mais perto e observar o que acontece do outro lado. Toda a obra de Fukunaga começa com um convite para assistir à vida imaginária que sai de uma tela. A lente de uma câmera aponta para o rosto do detetive Cohle em True Detective. Casper fita um grande pôster do tamanho de uma parede, como quem vê um filme, na abertura de Sin Nombre. Jane Eyre tira o espectador da escuridão abrindo uma porta para o seu mundo. É uma maneira de revelar logo de cara o artifício do cinema. É também um jeito de dizer que esse artifício pode nos indicar caminhos que, embora jamais venhamos a segui-los na vida real, ao menos nos proporcionam a chance de empatia para entender que, na vida, há diferentes estradas possíveis, mas todas apontam para o mesmo ponto de chegada: o lugar em que finalmente encontramos nossa humanidade.

Televisões da imaginação. De cima para baixo: True Detective, Sin Nombre, Jane Eyre e Beasts of No Nation.

Sin Nombre e Beasts of No Nation estão disponíveis no Netflix. Jane Eyre foi lançado em DVD e Blu-Ray no Brasil, e também pode ser encontrado via Google Play e iTunes. A primeira temporada de True Detective pode ser vista em DVD ou pelo aplicativo HBO Go (para assinantes HBO).

O diretor.

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Originally published at revistasalsaparrilha.com on November 9, 2015.

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