Depois Daquele Beijo, só nos resta a pós-verdade

Maurício Sellmann Oliveira
Revista Salsaparrilha
9 min readDec 31, 2016

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Pós-verdade: substantivo relativo a ou indicando circunstâncias nas quais fatos objetivos possuem menos influência na formação da opinião pública que apelos à emoção ou crenças pessoais. (Oxford Dictionaries)

Ao compilar e analisar tudo o que o republicano Donald J. Trump disse em público recentemente, o site de checagem de fatos PolitiFact chegou à conclusão de que apenas 4% era totalmente verdadeiro (contra 25% da democrata Hillary Clinton). Mais ainda: 51% era absolutamente falso. Isto não impediu que o Colégio Eleitoral dos EUA o elegesse com 306 votos. No fim de 2016, propaganda oficial do governo brasileiro enumerava fatos “positivos” dos 120 dias do governo Michel Temer (quando, na verdade, ele já dura 232 de facto). No Reino Unido, o político profissional conservador Michael Gove inflamava os eleitores a votarem pela saída da União Europeia porque “os britânicos estão cansados de especialistas”. Após a votação do plebiscito do Brexit, explodiu entre os britânicos cansados de especialistas a procura pela frase “O que acontece se deixarmos a União Europeia” no Google. Por conta da avalanche de mentiras sobre a eleição presidencial norte-americana, o Facebook enfrentou pressão para coibir postagens falsas em seu feed de notícias. Infelizmente, as chances de êxito dessas medidas são muito baixas uma vez que as pessoas preferem acreditar naquilo que lhes convém, por mais que os fatos mostrem o contrário. Por essas e outras, a Oxford University Press — que edita os dicionários Oxford — escolheu post-truth (pós-verdade) como a palavra do ano de 2016.

Embora a palavra “pós-verdade” tenha bombado a partir do fim de 2015, o cinema já vem mostrando há muito tempo que o valor dos fatos é superestimado. Do Verdades e Mentiras (F for Fake, 1973) de Orson Welles ao Mera Coincidência (Wag the Dog, 1997) de Barry Levinson, exemplos não faltam. Mas foi um cineasta italiano quem melhor definiu esse processo de autoengano como a marca de nossa época em Blow Up — Depois Daquele Beijo (Blow-Up, 1966).

O relançamento do filme de Michelangelo Antonioni nos cinemas brasileiros — e em edição comemorativa da Criterion Collection, em DVD e Blu-Ray, em 2017 — não poderia ser mais oportuno. Blow Up registra um dia na vida de Thomas (David Hemmings), um celebrado fotógrafo de moda. Quando não está trabalhando no seu estúdio ou sendo assediado por aspirantes a modelo (a musa Jane Birkin, entre elas), ele vai visitar o vizinho Bill (John Castle), um pintor abstrato, e sua esposa, Patricia (Sarah Miles), com quem mantém um relacionamento platônico. Numa tarde, para escapar de tudo isso, visita um antiquário numa rua afastada e resolve passear por um parque (o Maryon Park, em Greenwich) ali perto com sua câmera à mão. Numa clareira afastada, avista um casal namorando. A mulher (Vanessa Redgrave) percebe que está sendo vigiada e exige que Thomas lhe entregue os negativos. Ele se recusa e ela o segue até o estúdio para seduzi-lo. Thomas consegue ludibriá-la. Mais tarde, encontra algo estranho nas fotos do parque. Por meio de repetidas ampliações (ou blow-ups), acaba descobrindo detalhes chocantes. A foto identifica um fato, ou será que não?

De qualquer forma, tudo em Blow Up promove uma sensação de transe ambíguo. O filme ficou famoso como documento da efervescência cultural londrina da década de 60. Estão lá a trilha datada (de Herbie Hancock, com o tema contagiante de guitarras elétricas e trompete), a moda geométrica, a modelo Veruschka, Jimmy Page e Jeff Beck tocando nos Yardbirds. A mera menção da Swinging London, satirizada décadas depois na série de filmes de Austin Powers, cria logo a expectativa de uma paleta de cores vibrante. Mas não. Basta dizer que Londres parece mais colorida no preto-e-branco de Os Reis do Ié-Ié-Ié (A Hard Day’s Night, 1963), o musical dos Beatles dirigido por Richard Lester, do que no Technicolor de Antonioni. Carlo Di Palma, o diretor de fotografia predileto de Woody Allen, não conseguiu encontrar nada mais intenso que tons pastéis e fuligem para trabalhar. Até o verde do Maryon Park é esmaecido — mesmo na cópia restaurada. A música da trilha sonora se interrompe no meio das cenas, como se o ar estivesse tão rarefeito que ela não tivesse oxigênio suficiente para florescer. Embora Antonioni tenha pintado grama, paredes e objetos com cores intensas para realçar uma certa atmosfera abstrata, a feiúra nublada da cidade sempre sobressaía.

O italiano não foi o único estrangeiro a ver o abismo que esperava nos fundos da euforia de Londres. Na mesma época, o polonês Roman Polanski retratou uma metrópole desesperadora para contextualizar o colapso mental da personagem de Catherine Deneuve em Repulsa ao Sexo (Repulsion, 1965). Já Blow Up começa com jovens, fantasiados e de caras pintadas, correndo as ruas num clima de festa. Logo depois, somos apresentados a Thomas saindo de um albergue para indigentes numa área miserável. Ele estava ali disfarçado tirando fotos para uma exposição. É pela câmera que ele filtra sua interação com o mundo.

O espectador vê Thomas que vê o beijo (e muito mais) em Maryon Park.

Pela câmera de Antonioni, porém, temos uma experiência diferente da dele. Numa cena icônica (inspirada no trabalho do fotógrafo David Bailey), Thomas monta em Veruschka, deitada no chão do estúdio, para tirar fotos enquanto ela improvisa poses sensuais. Pode ser extremamente erótico para a audiência, mas a máquina fotográfica, na verdade, impede qualquer contato sexual entre ele e a modelo. Da mesma forma, o fotógrafo não demonstra ser afetado pelo que viu no albergue de moradores de rua. Quando as fotos de lá finalmente aparecem na tela, o diretor as mostra em sequência de closes para provocar impacto não no personagem, mas no espectador.

Não é à toa que Antonioni mudou Roberto Michel, o dublê de fotógrafo amador e escritor do conto original de Julio Cortázar (Las Babas del Diablo), para Thomas (como o apóstolo de Jesus que precisou ver para crer), um profissional das lentes. Fotógrafos são mestres em transformar o fato em emoção instantânea. O preço disso é que, para disparar a máquina, ele precisa se distanciar do acontecimento. Da sua frieza de momento, supõe-se, a verdade se extrai.

No caso de Thomas, a verdade se extrai da aproximação — ou ampliação. Na sequência mais importante de Blow Up, acompanhamos o seu olhar ao examinar as fotos do parque e decidir quais e como serão ampliadas. À primeira vista, entendemos que somos apresentados à verdade que as fotos ocultam, reveladas por um especialista. Subimos com ele para quartos escuros, operamos aparelhos de última geração (pré-digital) para trazer à tona os segredos por trás daqueles beijos. Até aí, tudo muito objetivo.

Daí em diante, Antonioni executa um truque tão sutil que muda tudo sem que a audiência perceba. Ele nos mostra as fotos numa sequência narrativa dos eventos — ou o que Thomas acredita que assim seja. O silêncio do estúdio dá, então, lugar ao canto de passarinhos e ao barulho do vento desgrenhando árvores. Não só a quantidade de tempo que Antonioni reserva para cada foto como a ordem e o som tornam tudo muito claro, mas também subjetivo. São elementos adicionais ao que está na foto. Exatamente como Chris Marker (do curta La Jetée, que inspirou Os 12 Macacos) faria, também em 1966, no média-metragem Si j’avais quatro dromadaires, Antonioni transforma imagens documentais num pequeno filme: sua verdade.

Em entrevista de 1982 ao jornal Corriere della Sera, Antonioni explicou melhor a sua construção visual para Blow Up: “Eu queria questionar ‘a realidade da nossa experiência’. Esse é um aspecto essencial no visual do filme, já que um de seus temas principais é ver ou não o valor correto das coisas.” Pois o próprio Thomas, depois de algumas reviravoltas e retornos ao mesmo parque, também começa a duvidar da objetividade da lente; afinal, ela são seus olhos.

Antonioni prepara Vanessa Redgrave para filmar aquele beijo.

O mundo ao seu redor só faz entorpecer suas certezas. Aquela caminhando no meio da multidão de Regent Street não é a mulher do parque? Ele corre para a casa de seu amigo e empresário (Peter Bowles) para informar-lhe o que descobriu. Ao chegar lá, encontra Veruschka no meio de uma festa de arromba. “Eu pensava que você tinha de estar em Paris”, ele comenta genuinamente surpreso. Sem perder o rebolado e o baseado, a modelo retruca: “Eu estou em Paris!”

Susan Sontag defendeu que fotografias de atrocidades fariam pouco para reverter a opinião pública norte-americana sobre a Guerra da Coreia (1950–53). Afinal, a população apoiava a narrativa da batalha do mundo livre contra a União Soviética e a China, no auge do boom econômico e da patriotada da Guerra Fria. Para provocar mudança de ideias, uma foto necessita do contexto de sentimentos e atitudes favorável, concluiu Sontag. Patricia vai ao estúdio e observa a maior ampliação da foto no parque. Mesmo que Thomas lhe conte a história por trás daquela imagem, a sua reação é blasé: “Parece uma das telas do Bill.” A foto supostamente reveladora não consegue perfurar a bolha do mundo onde ela vive.

A lente não mente, certo?

O leitor atento percebeu que eu me referi a uma foto apenas no último parágrafo. Onde foram parar as outras? Antonioni planta sua semente para a paranoia que explodiria no cinema na esteira da Guerra do Vietnã e do escândalo de Watergate — semente esta que ele mesmo cultivaria na história do jornalista que troca de identidade com um morto em Passageiro: Profissão Repórter (The Passenger, 1975). No meio de tantas incertezas, Thomas resolve seguir o torpor da multidão e voltar à sua câmara de eco. Seu empresário pergunta “O que você viu no parque?” e o fotógrafo titubeia.

Nesta toada, ele regressa uma última vez ao parque, onde se depara com a algazarra levemente ameaçadora daqueles jovens fantasiados do início do filme. Sob o olhar dele, o grupo ocupa a quadra de tênis e se empenha numa mímica de partida, sem quaisquer objetos à mão. Thomas entra no clima e começa a acompanhar a “bola” com os olhos. Antonioni aplica o mesmo truque sonoro que usara com as fotos do parque. Logo, nós e o fotógrafo escutamos o estalar ritmado de uma bola em raquetes. A dissolução do último plano de Blow Up somente confirma que a realidade está à disposição para que a vejamos como melhor nos aprouver.

Num tempo em que a realidade virtual torna-se cada vez mais presente em nossas vidas, as mentiras que os homens públicos contam importam menos do que como contam. Simulacro 1 x 0 Realidade. As imagens enganadoras de Blow Up já nos mostravam isso. Como disse outro diretor chegado no lado escuro das coisas, o austríaco Michael Haneke: “O cinema, óbvio, é sempre uma mentira. Ele nunca conta a verdade.” A vida real, óbvio, também não. E cá estamos nós, neste século XXI, assistindo àquela partida de tênis pós-verdadeira.

Blow Up — Depois Daquele Beijo está ainda em cartaz num cinema perto de você. Também pode ser encontrado em DVD no Brasil. A norte-americana Criterion Collection lança cópia remasterizada e uma fortuna de extras, em Blu-Ray e DVD, em março de 2017.

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Originally published at revistasalsaparrilha.com on December 31, 2016.

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Maurício Sellmann Oliveira
Revista Salsaparrilha

PhD in Latin American Cultural Studies at the University of Manchester. Só por curiosidade. Também encontrado no Almanaque Semanal (Substack).