Destinos alterados: A assombrosa imaginação de Ghost Trick: Phantom Detective
Por Tiago Ramos
Muitos argumentam, diante da rotina apressada dos dias de hoje, que quanto mais simples algo for, melhor. O cartunista e inventor (dentre outras coisas) Rube Goldberg (1883–1970) acreditava no contrário. Nas primeiras décadas do século XX, ele se tornou conhecido por criar, em suas tirinhas de jornal, engenhocas absurdamente complicadas para realizar tarefas simples. Pense nas máquinas da série de filmes Jogos Mortais (Saw, 2004–2010), apenas com propósitos mais amenos do que arrancar pedaços das pessoas. Jogar fora um chiclete ou limpar a boca com um guardanapo, por exemplo.
A importância de Golgberg, claro, vai muito além de inspirar pornôs de tortura. Tamanha foi a sua relevância cultural que seu nome foi inserido no dicionário Merriam-Webster como um adjetivo. Nos games, mídia na qual mecânicas físicas constituem elemento essencial, a influência do ilustrador pode ser percebida em centenas de títulos, desde quebra cabeças como Lemmings (1991) até os first-person-shooters da série Half-Life (1998–2007). Por sua vez, a franquia The Incredible Machine (1992–2011) evoca abertamente Rube Goldberg ao ter como objetivo a criação de artefatos cabeludos a partir de toda espécie de matéria-prima.
E se a complexidade das invenções do cartunista servisse de inspiração para outros aspectos de um jogo, além do seu gameplay? E se a narrativa de um game fosse, ela mesma, composta por diversos componentes distintos e aparentemente heterogêneos, organizados de maneira improvável? E se, no final, tudo se encaixasse perfeitamente no grande plano de seu criador? Neste caso, teríamos o subestimado Ghost Trick: Phantom Detective (2010).
Como toda história de detetive que se preze, esta começa com um assassinato. Pouco depois do anoitecer, um espírito lentamente desperta em um ferro-velho, sem saber como foi parar ali. Sua atenção logo é atraída para o corpo de um homem loiro, de roupas vermelhas. De repente, um abajur falante (!) informa ao jogador-fantasma que sua desorientação decorre do fato de que ele acabou de ser morto. A alma penada então se dá conta de que não tem memória alguma de sua recém-encerrada vida, nem mesmo de seu nome. O abajur, apelidado de Ray, diz ao confuso protagonista que ele tem até o amanhecer para descobrir quem é (ou foi) e as circunstâncias que levaram ao seu assassinato naquele local — quando o sol raiar, sua consciência fará a transição definitiva para o além. E o primeiro passo para recuperar suas lembranças e desvendar o enigma de sua morte, assegura o misterioso Ray, consiste em salvar a pele de uma investigadora ruiva, cuja vida está sob a mira de uma arma a poucos metros dali.
Mas como fazê-lo? Sob a tutela de Ray, personagem e jogador descobrem, juntos, o que são capazes de fazer. O espírito — cujo nome, logo descobriremos, é Sissel — pode “possuir” objetos inanimados, realizando com eles ações simples. Eis os truques fantasmas (ghost tricks) do título. Um ventilador pode ser ligado, ainda que não esteja plugado na tomada. Um telefone pode fazer ligações sozinho, permitindo que Sissel pegue carona na conexão e se desloque por toda a cidade rapidamente. Portas podem ser abertas ou fechadas, alavancas movidas, interruptores pressionados e por aí vai, bastando para isso o mero contato com a alma do herói. (E não, não dá para fazer as coisas flutuarem, como costumam aprontar as assombrações que normalmente encontramos na ficção.)
Seu principal e mais impressionante artifício, porém, tem relação com outros seres vivos. Ou melhor, mortos. Ao encostar em um cadáver, humano ou não, a alma de Sissel pode viajar no tempo (!!) para quatro minutos antes daquele defunto bater as botas. Assim, o jogador-fantasma ganha a oportunidade de, fazendo uso de suas outras habilidades sobrenaturais, alterar o destino do falecido e apagar aquela morte da existência. (O dom, como seria de se esperar, não funciona com o presunto do próprio Sissel.) Esse truque será posto à prova mais cedo do que o protagonista imagina: mesmo com as instruções do abajur, Lynne, a jovem detetive ruiva, é inevitavelmente morta. Não resta ao jogador, então, alternativa outra que não fazer um test-drive de seus poderes para reverter o assassinato da moça.
O leitor astuto talvez já tenha percebido, pela descrição acima, que Ghost Trick não gira em torno da construção de engenhocas como as imaginadas por Rube Goldberg. Há, em vez disso, a manipulação coordenada das bugigangas encontradas nos cenários com vistas à realização de determinado objetivo. Nem por isso o game se mostra menos criativo. Para solucionar os quebra-cabeças bolados pelo diretor e roteirista Shu Takumi (Phoenix Wright: Ace Attorney), os objetos ao redor de Sissel frequentemente devem ser utilizados da maneira mais inusitada possível. Isso força o jogador a pensar nos problemas à sua frente como um todo, montando em sua mente um efeito dominó que culmine no resultado desejado. Como quando a única saída para evitar a morte de um dos personagens centrais depende, acredite ou não, de uma garotinha falar ao telefone com seu pai. Acontece que a) a menina está de cama, fraca o suficiente para não conseguir caminhar até o aparelho e b) a divorciada mãe da pestinha a colocou de castigo, isolando-a do mundo como punição pelo seu mal-comportamento. Cabe ao jogador descobrir como manter a matriarca ocupada enquanto dá um jeito de deslocar o telefone até a criança.
A influência de Goldberg no jogo, como dito antes, se revela plenamente na trama. E não estamos falando, aqui, do complicado artefato criado por uma das coadjuvantes para acender velas em um bolo de aniversário, homenagem ao cartunista que termina desempenhando um papel central na história. Estamos nos referindo, sim, à forma como o enredo se desenvolve. No início, as coisas até parecem relativamente simples. Após desfazer a morte da detetive Lynne, o fantasmagórico Sissel descobre que ela também está às voltas com um mistério pessoal naquela noite. Apesar de suas investigações, à primeira vista, não guardarem relação entre si, os dois concordam em ajudar-se, firmando uma parceria benéfica para ambos.
No curso dos dezoito capítulos do game, entretanto, o escopo e a complexidade dos mistérios que mobilizam a vida (ou o pós-vida) de Sissel e Lynne vai gradativamente crescendo. O que começa como uma trama policial com toques sobrenaturais vai, a cada nova pista ou acontecimento, incorporando inesperados elementos característicos de outros gêneros, como espionagem e ficção-científica. Consequentemente, as expectativas e teorias do jogador são subvertidas o tempo inteiro, tornando a história deliciosamente imprevisível. Além das narrativas intrincadas, não é difícil encontrar pontos em comum entre Ghost Trick e o seriado Lost (2004–2010). Poderíamos dizer que as viagens no tempo do protagonista são flashbacks interativos, que enriquecem o enredo enquanto oferecem quebra-cabeças para o jogador resolver.
Ao contrário da série de Damon Lindelof e companhia, porém, o roteiro de Takumi domina e entende, desde a primeira cena, o propósito de todos os seus componentes. Este cuidado faz com que o jogador nunca se sinta traído ou manipulado feito um carareco possuído pelo herói do game. Muito pelo contrário: mesmo as reviravoltas mais absurdas — no melhor sentido possível do termo — ou dúvidas quanto ao encaixe de todas as peças da trama conduzem a amplas sensações de recompensa nos momentos adequados. Igualzinho a uma das invenções assinadas por Goldberg.
A evolução do enredo, ainda, tem impacto direto na mecânica do jogo. Sem entrar em muitos detalhes, de modo a preservar as muitas surpresas que Ghost Trick reserva, é suficiente dizer que outros poderes sobre-humanos são eventualmente inseridos na história. Seja com o propósito de auxiliar ou atrapalhar as intenções de Sissel, estas novidades vão tornando os quebra-cabeças cada vez mais complexos. Tanto quanto o autor faz malabarismo com os elementos da trama, o jogador precisa equilibrar forças aliadas e antagônicas, em adição às suas próprias habilidades fantasmagóricas, para progredir.
Por falar em equilíbrio, Shu Takumi tempera os aspectos mais pesados da história, inclusive seu surpreendente peso dramático, com muito humor. Não faltam risos, graças aos excelentes e diversos personagens. Todos, não importa quão breve sua participação, são cuidadosamente definidos, portando sempre alguma característica peculiar que os marca na memória do jogador. Como a impulsiva detetive Lynne, que se torna ainda mais ousada em sua investigação depois que passa a contar com Sissel para reverter suas mortes. (O próprio Sissel provavelmente trocaria o adjetivo “ousada” por “folgada”, diante da trabalheira que dá desfazer suas estripulias fatais ao longo do game.) Há também o Inspetor Cabanela, com um currículo tão impecável quanto suas roupas e um caminhar inspirado nos passos de dança de Michael Jackson. Mas de que lado ele está? E um dos mais adoráveis personagens da história dos video games, o lulu da pomerânia Missile (Míssil, em português). O esperto cãozinho cativa não somente pela lealdade à sua dona, a garotinha Kamila, mas por inusitadamente se tornar um dos maiores parceiros do jogador no último terço da trama.
Também digno de nota é o visual do jogo. Qualquer movimento na tela ganha contornos hipnotizantes, resultado da fluidez das animações. E há o fator nostalgia: pelo menos na versão para iOS, a arte dos cenários e personagens é levemente pixelizada, dando àquele mundo um acabamento irregular, quadriculado. Impossível, para quem os vivenciou à época, não lembrar dos adventures clássicos da LucasArts (The Secret of Monkey Island, Day of the Tentacle). A referência não é acidental, já que Ghost Trick também bebe desta fonte. Por fim, a trilha sonora de Masakazu Sugimori vai na contramão da complexidade da visão de Takumi e se mostra tão simples quanto eficaz. Não raro o jogador se verá demorando para concluir certa cena e avançar para a próxima apenas para aproveitar a música tocando ao fundo por mais alguns segundos (ou minutos). Faixas como Main Theme, A Dashing Enigma e Trauma somam importante contribuição ao conjunto de fatores que tornam o game único.
Talvez até demais. Originalmente lançado para o Nintendo DS em 2010, o jogo passou batido até mesmo pelos fãs do portátil. Sua transposição para equipamentos com sistema operacional iOS, em 2012, se provou igualmente invisível. Com isso, dificilmente veremos uma continuação algum dia. (Os mais atentos perceberão, por mais bem-amarrada que seja a história, uma porta aberta para uma possível sequência.) Assim quis o destino, e este nem Sissel é capaz de alterar. Dentre os que tiveram o prazer de conhecer Ghost Trick: Phantom Detective, a maioria gostaria de possuir uma variação das habilidades do herói de qualquer forma, no mínimo para revisitar seus próprios passados. Ao invés de retroceder somente quatro minutos — e preferencialmente sem morrer nem nada — , viajar um punhado de horas no tempo para o exato momento em que descobriram essa engraçada, envolvente e tocante pérola dos games. E desfrutá-la toda de novo pela primeira vez. Bem que Rube Goldberg poderia ter bolado uma engenhoca para isso.
A versão física de Ghost Trick: Phantom Detective está disponível em lojas como a Amazon, exclusivamente para o Nintendo DS. Já os usuários de aparelhos baseados em iOS podem jogar os dois primeiros capítulos do jogo gratuitamente, antes de adquirir os outros dezesseis por US$ 9,99.
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Originally published at revistasalsaparrilha.com on October 16, 2016.