Escher revisitado em Monument Valley

Maurício Sellmann Oliveira
Revista Salsaparrilha
6 min readFeb 15, 2016

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M.C. Escher, célebre por suas simetrias impossíveis, costumava dizer que não havia nada de muito profundo na sua arte; que ela devia ser apreciada apenas pelo efeito visual imediato. A verdade é um tanto mais complexa que isso. Ele sempre teve uma relação conturbada com a ordem do mundo. Numa anotação de novembro de 1958, Escher sentenciou: “Adoramos o caos porque nele gostamos de produzir ordem.” Em 1965, declarou: “Com minhas gravuras, eu tento documentar que vivemos num belo mundo de ordem, e não num caos disforme, como às vezes parece.”

O caos é relativo na ordem de Escher.

E às vezes, parecia mesmo. No olho do furacão dos últimos anos daquela década, em janeiro de 1967, ele escreveu: “O mundo em que vivemos é um caso perdido.” Esta percepção o fez mergulhar ainda mais fundo em sua arte simétrica, de perfeição matemática. Talvez ele estivesse prestando muita atenção à realidade errada, pois, se o mundo exterior é um caos, o inconsciente humano é um sonho de ordem ainda pouco compreendido. Aliás, como o próprio Escher lembrou, foi exatamente ao deixar as belas paisagens da Itália em troca da mesmice da Bélgica, da Suíça e da Holanda que ele foi obrigado a olhar finalmente para o seu “mundo interior”. Sua obra pertencia a esta paisagem, a mesma que, 40 anos após a morte do artista holandês, desenvolve-se ante os nossos olhos em Monument Valley, o game para aplicativos móveis lançado em 2014.

Escher e seus “herdeiros” da produtora ustwo (com Ken Wong sentado à frente).

Partindo das premissas da arquitetura fantástica de Escher, o designer Ken Wong e sua equipe na desenvolvedora britânica ustwo criaram um jogo de enganadora simplicidade. Mesmo que pouse nele de paraquedas, o jogador mais novato não terá dificuldades em guiar-se — algo não muito frequente em puzzle games (jogos de quebra-cabeças). Na sequência antes do título, o jogador aprende que deve guiar uma jovem por escadas, corredores e passarelas que desafiam o modelo euclidiano. Com um movimento do dedo, pode-se mudar caminhos e abrir passagens que os olhos haviam julgado impossíveis até então. Não sabemos o que a heroína faz ali ou de onde veio, e aparentemente nem ela. Ao longo de dez níveis ou capítulos, um fantasma aparece aqui e ali para trazer algumas informações: a jovem é uma princesa chamada Ida e aquelas são as ruínas de um reino abandonado. Mas por que o fantasma diz que ela está voltando? Mais importante, por que o fantasma pergunta pelo motivo do retorno da princesa?

Embora estas perguntas sejam satisfatoriamente respondidas no último capítulo, pistas espalham-se pelo design desse mundo onírico, tornado ainda mais etéreo pela trilha sonora de Stafford Bawler. O ser humano está predisposto a encontrar ordem no mundo ao seu redor e dentro dele. Pois, como todo sonho, Monument Valley possui uma ordem gritando para ser decifrada.

As construções que a princesa deve atravessar fornecem o primeiro padrão, especialmente para os olhos ocidentais. Castelos de inspiração medieval ganham contornos orientais, como minaretes e domos em forma de cebola, produzindo ao mesmo tempo um efeito de reconhecimento e exoticismo. Da mesma forma que a princesa sem memória, nós também pensamos reconhecer aqueles lugares que estamos visitando pela primeira vez.

O universo é um game. Nas esferas celestes medievais, Deus no alto e no meio de tudo. Ilustração de Gustave Doré para A Divina Comédia.

Os níveis de Monument Valley lembram as esferas celestes, a divisão do universo reconhecida dos tempos de Aristóteles a Nicolau Copérnico, com a Terra no centro de tudo e o Empíreo, ou morada de Deus, como o nível mais distante. Na Divina Comédia, Dante Alighieri percorre essa cosmologia de baixo para cima. Já em Os Lusíadas, o poeta Luís de Camões faz Vasco da Gama descer as esferas do Empíreo à Terra. No jogo, os ambientes de cada capítulo também se assemelham a diferentes camadas para as quais se ascende verticalmente. À medida que a princesa avança, as agradáveis cores pastéis e a iluminação ensolarada vão dando lugar à escuridão e tons mais sombrios. Novamente, cria-se uma contradição tipicamente escheriana entre percepção e realidade. Estamos subindo ou descendo? (Ou afundando nos Anéis Concêntricos de Escher?)

Qualquer que seja a resposta, sem dúvida a princesa está se dirigindo a um lugar profundo, isto é, ao centro do sonho. O fim de um dos últimos capítulos deixa isto bem claro. É tudo muito estranho tanto para ela quanto para nós.

Quando as estratégias da princesa para seguir adiante parecem já não mais servir e tudo aparentemente perde o sentido, a princesa ganhará um bem-vindo companheiro: um totem amarelo. Ele chega para reassegurar a existência de um sistema coerente em Monument Valley. Num mundo de sonhos, tudo tem um significado enterrado, e esse novo personagem não será diferente.

Ida e seu totem amarelo.

Totens existem desde os primórdios dos grupos humanos. Baseado em lembranças de sua própria infância, Carl Gustav Jung, um dos pais da psicanálise, associou a figura do totem à sensação de conforto trazido pelo reconhecimento de uma certa ordem. De Jung a Claude Lévi-Strauss, muito se discutiu se os totens eram estratégias restritas a mentes primitivas ou não. No entanto, uma coisa sempre ficou clara: por meio deles, grupos encontravam uma forma de inserir sua identidade na natureza que os cercava. Como as mitologias, os totens ofereciam uma explicação satisfatória para os mistérios da existência. Pense nisso quando encontrar a simpática estrutura amarela do jogo.

Finalmente, há a estranha simetria entre o design da princesa Ida — toda de branco, com um chapéu cônico e um vestido — e os homens-corvos — praticamente imagens em negativo da heroína. Lembram os pássaros de Dia e Noite ou os Peixes-Voadores / Pássaros de outras obras de Escher. Esses personagens vão tentar bloquear o avanço da princesa nos diversos níveis. Porém, em vez de agressão física, apenas se põem no meio do caminho e crocitam para ela. Ida não perde vidas: a pena por não conseguir prosseguir é ficar presa naquele mundo para sempre. É como se os homens-corvos fossem manifestações do inconsciente colocadas ali para impedir a princesa de descortinar a verdade por trás dos símbolos.

Da direita, em sentido horário: Ida e os homens-corvos; “Dia e Noite”; “Peixes-Voadores/Pássaros”.

Cabe ao jogador conduzi-la a essa verdade — e ao fim do sonho. (Para voltar a ele, a ustwo já lançou um segundo pacote de níveis com arquitetura impossível, Forgotten Shores.) Descobrirá, então, que o mistério de Monument Valley é mais simples do que o olho mal-acostumado àquele mundo surreal poderia, no começo do jogo, supor. Como Escher escreveu numa carta a um amigo de 1950: “Caos é o início; simplicidade é o fim.”

Monument Valley está disponível para dispositivos móveis com sistemas iOS, Android, Kindle Fire e Windows Phone.

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Originally published at revistasalsaparrilha.com on February 13, 2016.

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Maurício Sellmann Oliveira
Maurício Sellmann Oliveira

Written by Maurício Sellmann Oliveira

PhD in Latin American Cultural Studies at the University of Manchester. Só por curiosidade. Também encontrado no Almanaque Semanal (Substack).