Love and bricks
Por Tiago Ramos
O rato Ignatz tem um problema. Passando um período nas montanhas por iniciativa de sua esposa, ele olha para um tijolo novo em folha, recém-adquirido, e lamenta encontrar-se tão distante de seu rival, Krazy Kat. Ansioso para acertar o objeto na cabeça do gato, como rotineiramente faz, ele tem uma ideia: Ignatz arremessa-o próximo a um camundongo, primo seu. Este apanha o tijolo e, por sua vez, o atira aos pés de outro rato. E assim por diante, até que, com a assistência de uma corrente improvisada de roedores, Ignatz consegue fazer com que o objeto finalmente encontre seu alvo: a nuca de Krazy. Se a iniciativa envolvesse compensações financeiras, Ignatz teria inventado o crowdfunding da tijolada.
A descrição acima é um pequeno exemplo da imaginação de George Herriman, cartunista norte-americano que, em 1910, criou a tirinha de jornais Krazy Kat. Republicada pela (hoje extinta) editora Eclipse Comics a partir de 1988 e posteriormente concluída pela Fantagraphics em 2008, a coleção completa dos quadrinhos dominicais de página inteira — cuja publicação original teve início em 1916 e estendeu-se até 1944, ano da morte de seu autor — chega agora ao mundo digital por meio do ComiXology.
O mote das tirinhas é simples, mas surpreendente mesmo nos dias de hoje. Ignatz Mouse nutre um profundo desprezo por Krazy, sentimento que o motiva a compulsoriamente agredir o gato a cada oportunidade que encontra, preferencialmente por meio de tijoladas na nuca. Krazy Kat, por sua vez, é perdidamente apaixonado pelo roedor, interpretando cada agressão como prova de que seu amor encontra reflexo no coração de Ignatz. Como se não bastasse a realidade dos sentimentos do rato, há ainda outro elemento complicador: Oficial Pupp, literal cão de guarda e admirador secreto de Krazy, sempre presente para trancar Ignatz na cadeia após suas investidas contra o gato.
A criatividade de Herriman, porém, estendia-se para além dos conceitos e destacava-se na execução. Inicialmente em preto-e-branco, o mundo de Krazy Kat, mistura idiomas e coadjuvantes de diversas nacionalidades em um cenário onírico, por vezes beirando o abstrato, capaz de se transformar por completo a cada quadro mesmo quando a ação não se desloca no espaço. O ambiente onde as tramas se desenrolam, árido e eventualmente batizado de Coconino County, convida o leitor para uma miragem, reforçando a sensação de que tudo ali é possível.
A mesma capacidade de transformação dos cenários faz-se presente também nos temas abordados. Tais quais outras grandes tirinhas do século passado, Krazy Kat frequentemente buscava mais do que o humor. Não é difícil encontrar páginas mais interessadas nos sentimentos de Krazy por Ignatz do que na piada do último painel. Há, ainda, discussões sobre a solidão ou divagações sobre a natureza humana. Em uma notória tirinha de 1937, Krazy e Pupp sentam juntos, observando Ignatz caminhar pela calçada. O rato, então, divide-se em dois, um dos quais termina a página como um anjo (da maneira como Krazy o enxerga) e outro como um demônio (representando o ponto de vista de Pupp). Evidência da dualidade presente em todos nós, bem como da relevância das percepções do observador sobre o objeto do seu olhar.
Apesar de plenamente acessível aos admiradores de narrativas interessantes e boas piadas, o trabalho de Herriman prova-se um deleite para os fãs de quadrinhos. É impossível não admirar o detalhamento visual e a riqueza das tramas contadas, do início ao fim, em uma única página. Faltava ao autor, é verdade, certa elegância no layout de suas pranchas, com elementos ocasionalmente competindo por espaço entre si e o texto. Não há, aqui, a finesse de um Winsor McKay em Little Nemo. Por outo lado, percebe-se uma notável evolução ao longo do tempo. Principalmente a partir das tirinhas dominicais coloridas (1935 em diante), Herriman adotou um traço mais econômico, com espaços abertos e maior cuidado com o design de suas páginas.
Em todos os períodos, coloridos ou não, George Herriman experimentou com o formato. Em uma página de 1918 focada em uma pedra gigante rolando morro abaixo, todos os painéis são diagonais, reforçando a velocidade (e o poder destrutivo) do objeto. Em outra, já em cores, Ignatz ilustra uma história em quadrinhos na qual ele arremessa um tijolo em Krazy. Pupp toma o lápis das mãos do rato e dedica-se a concluir a HQ desenhando o roedor na cadeia. Enquanto isso, “no mundo real”, Ignatz aproveita a distração do guarda para dar uma tijolada de verdade no gato. Herriman precede a metalinguagem de Grant Morrison por algumas décadas.
Qualquer texto sobre George Herriman e seu Krazy Kat é inevitavelmente superficial, e este certamente não foge à regra. Poderíamos, eu e você, passar boas horas debatendo o significado do trio de protagonistas (e suas funções) sob a ótica da psicologia, da religião ou ainda dentro de seu contexto histórico. O objetivo aqui, entretanto, é meramente atiçar a curiosidade do leitor. Pergunto-me se fui bem-sucedido. Será que você, por sua vez, se pergunta se o tema merece maior atenção da sua parte? Ou, ainda,
“Krazy se pergunta se é amor,
E nós nos perguntamos se você também se pergunta.
Talvez você se pergunte se nós nos perguntamos?
Ou, de repente, talvez você não esteja se perguntando sobre nada.
Quem sabe?”
— George Herriman, em uma tirinha de agosto de 1919
A coleção digital das tirinhas dominicais está disponível aqui. Edições físicas podem ser encontradas em livrarias virtuais como a Amazon, ou ainda por meio do site oficial da Fantagraphics. Você também pode ler algumas das tirinhas inciais — de graça e legalmente — no The Comic Strip Library.
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Originally published at revistasalsaparrilha.com on April 27, 2015.