Os prazeres sem vergonha de Criminosos do Sexo
Por Tiago Ramos
Esta história é dedicada aos corajosos homens e mulheres que gostam de transar.
À primeira vista, a frase acima, encontrada na primeira edição de Sex Criminals, até soa engraçada, não? A premissa da HQ, escrita por Matt Fraction (Hawkeye, Casanova) e ilustrada por Chip Zdarsky (Howard the Duck, Kaptara), parece confirmar essa impressão inicial: um jovem casal descobre que possui a habilidade de congelar o tempo com os seus orgasmos e resolve utilizá-la para roubar bancos. Uma ideia assim só pode dar certo se tratada como uma comédia, certo?
De fato, tudo é bastante engraçado. Entretanto, a grande sacada da série, publicada (mais ou menos) mensalmente pela Image Comics, está em servir de plataforma para que os autores falem sobre sexo — principalmente do ponto de vista feminino — abertamente, com franqueza e desenvoltura. Mais do que isso: ao longo das edições, seus temas amadureceram e se expandiram, abarcando ainda discussões sobre transtornos psicológicos e emocionais diversos. Poderíamos dizer que, na verdade, os quadrinhos tratam de tudo aquilo que ocultamos debaixo dos cobertores.
Lançado em 2013 nos EUA, o título finalmente chegou ao Brasil no final do ano passado pela Devir Editora. Criminosos do Sexo, Volume Um — Uma Estranha Habilidade traduz as cinco primeiras edições da série. Mas, como o leitor assíduo da Revista Salsaparrilha já deve ter reparado, aqui nós não nos satisfazemos com uma (leitura) só. Desse modo, passaremos a mão (com todo o respeito e sem spoilers) também no segundo arco da HQ, ainda inédito no país. Dispa-se de seus pudores e venha conosco. Prometemos não contar para ninguém. Pronto? Então vamos começar com um subtítulo de arrepiar os cabelos da sua avó:
A origem secreta dos orgasmos
Antes de mergulharmos nos aspectos mais interessantes da série, vamos às preliminares. Ou, como escritores sexualmente reprimidos costumam chamá-las, “sinopse”: na puberdade, Suzanne “Suzie” Dickson descobre que seus orgasmos paralisam o mundo ao seu redor durante um tempo, enquanto ela permanece capaz de movimentar-se livremente. Sem informações sobre o fenômeno e nem amigos com quem possa conversar sobre o assunto, Suzie torna-se uma ávida consumidora de livros sobre sexo e o corpo feminino. O que a leva a adorar bibliotecas. O que a leva, quando adulta, a ser responsável por uma.
Acontece que sua biblioteca não anda muito bem das pernas, correndo o risco de perder o imóvel onde funciona. Em uma festa de arrecadação de fundos para salvar o empreendimento, ela se encanta por Jonathan “Jon” Johnson. Conversa vai, conversa vem, bebida vai, bebida vem… e lá vão os dois para a cama. Só que Jon, como Suzie, é igualmente capaz de parar o tempo por vias sexuais. Assim, eles encontram, um no outro, sua alma gêmea. Embriagados pela euforia da paixão, a dupla logo resolve usar suas habilidades para roubar filiais do banco que ameça fechar a biblioteca, obtendo assim a quantia que falta para mantê-la de portas abertas. Mas as estripulias do casal logo atraem a atenção de um trio de vigilantes conhecido como a Polícia do Sexo.
Na seção de cartas da edição #7 (mais sobre as correspondências adiante, espere só), um leitor indignado afirma que Criminosos do Sexo tem “2 personagens, 1 ideia e 0 enredo”. Novamente, a citação parece engraçada, mas guarda uma boa dose de verdade. Não que isso seja um defeito, diga-se. Como toda boa história, os protagonistas da HQ são seu elemento mais interessante. Fraction e Zdarsky não somente têm plena consciência disso, como também não se acanham em deixar todo o resto em segundo plano. Tanto é assim que a trama avança muito pouco nos três primeiros números, os quais são melhor apreciados como “A Origem Secreta de Suzie e Jon”. Nestes, acompanhamos como os dois descobriram seus “poderes”, conheceram-se e se apaixonaram.
Não é preciso ser particularmente inteligente para enxergar o despertar das habilidades do casal como uma metáfora para o aflorar de sua sexualidade. Vemos as reações de Suzie e Jon, ainda adolescentes, diante da descoberta da masturbação e do prazer sexual. Em outros flashbacks, testemunhamos as suas primeiras relações sexuais, bem como seus primeiros orgasmos com outras pessoas (já que, você sabe, estes raramente ocorrem na mesma ocasião). Lembre, por um momento, da sua vivência pessoal. Se as experiências acima já são estranhas, incômodas, reveladoras, e <insira seu adjetivo pessoal aqui>, imagine como você se sentiria com o detalhe adicional de fazer o tempo parar.
Em realidade, nem é preciso tanta imaginação assim. Mais do que protagonistas, Suzie e Jon também são narradores, conversando diretamente com o leitor (a tal “quebra da quarta parede”, tão popular esses dias). Além do tom ao mesmo tempo brincalhão e sincero que o artifício cede à história, o truque contribui para o principal trunfo de Criminosos do Sexo: identificação. Você se afeiçoa ao casal não por serem personagens divertidos, convincentes ou complexos (apesar de serem), mas sim por suas experiências e sentimentos refletirem os seus próprios. Mesmo face aos aspectos fantásticos da trama, não é nada incomum reagir aos eventos da HQ com um sorriso no rosto e a frase “Eu sei bem como é…” na cabeça.
Mas nem só de sacanagem vive a humanidade. O título, acredite ou não, esbanja romantismo por todas as páginas. Veja, por exemplo, o momento em que Suzie conhece Jon, citando Lolita (1955) no meio da festa. Ela literalmente flutua ao redor do moço, fascinada. Mais tarde, quando Jon percebe que está apaixonado por Suzie, um passeio em um bar torna-se, na mente do rapaz, um musical protagonizado pela garota ao som de Fat Bottomed Girls, do Queen. (E a saída encontrada por Fraction e Zdarsky para executar um musical em um formato sem áudio torna-o ainda mais marcante do que se o público pudesse escutar a canção.) Para os autores, sexo e amor não são adversários. Muito pelo contrário, ambos são melhores quando complementam um ao outro.
Eis que, nos dois últimos números encadernados em Uma Estranha Habilidade, as coisas engrenam e os roubos são postos em prática. Só que os planos do casal, como seria de se esperar, não saem exatamente como eles imaginavam. Ao invés de entregar as surpresas do enredo, voltemos nossa atenção para outra faceta marcante de Criminosos do Sexo: sua “montagem”. Emulando o jeito atrapalhado, não-linear, que as pessoas costumam empregar em seus relatos, Suzie e Jon contam as suas histórias de forma rápida, fragmentada, por vezes voltando ao passado e retornando ao presente no intervalo de poucos quadros. O leitor se vê embalado pelo ritmo frenético da narrativa (mesmo que pouco efetivamente aconteça, ao menos no tocante ao desenrolar da trama). O resultado é envolvente, leve e viciante. Igualzinho a uma boa… adivinhe?
(Sobremesa! Estava pensando em sobremesa! Você e essa mente suja…)
O pote de depressão no final do arco-íris
O que acontece quando a paixão termina?
Acontece todos os dias, e não somente com relacionamentos. Com uma indústria do entretenimento cada vez mais voltada para narrativas serializadas, a perda de interesse naquela história em capítulos que anteriormente tanto nos fascinava tornou-se um acontecimento corriqueiro. Seja pelo intervalo entre os episódios esfriando nosso entusiasmo, pela descoberta de algo novo que arrebata a nossa atenção ou simplesmente pela queda na qualidade do material, o essencial de ontem muitas vezes acaba esquecido hoje.
Criminosos do Sexo passou por um fenômeno parecido. Seu primeiro volume foi escolhido pela revista Time como a melhor HQ ou graphic novel de 2013. No Eisner Awards — o Oscar dos quadrinhos — referente ao mesmo período, o título levou o prêmio de Melhor Nova Série, além de ter sido indicado para a categoria Melhor Série Mensal. Por outro lado, os cinco números seguintes, encadernados na coletânea Two Worlds, One Cop (Dois Mundos, Um Tira) e originalmente publicados entre junho de 2014 e janeiro de 2015 nos EUA, não receberam a mesma atenção. Após um início tão prazeroso, teriam os autores perdido o tesão pela sua criação?
De maneira alguma. Mas o segundo volume assume um tom sensivelmente diferente do primeiro, apanhando muitos fãs desprevenidos. Ironicamente, seu ponto de partida é justamente o que acontece com os protagonistas quando a paixão acaba e a previsibilidade da rotina se impõe. Se, no encadernado inicial, Suzie é a principal condutora do leitor, aqui é Jon quem assume as rédeas da narrativa. No entanto, ele não está nada feliz. Superada a euforia do começo do relacionamento com a sua namorada, os transtornos psicológicos e emocionais do rapaz tomam conta — dele e da trama. E, para o infortúnio da Polícia do Sexo, ele quer vingança pelos eventos do arco anterior.
Tanto quanto na história inicial, a série continua tratando de tabus sem meias palavras. Porém, enquanto o primeiro volume debruça-se sobre um assunto que nos agrada, o segundo mete o dedo na ferida e desafia o leitor com temas bem mais sombrios. O roteirista Matt Fraction, ele mesmo acometido por depressão e uma série de vícios, transforma a sua comédia em algo muito mais ousado ao escancarar as obsessões e desequilíbrios do seu herói. Ainda que não tão universais quanto o enfoque da coletânea anterior, as situações e sentimentos retratados em Two Worlds, One Cop permanecem provocando identificação imediata entre aqueles que passaram por situações parecidas.
Apesar disso, o humor se mantém como parte integral da HQ. Dois novos personagens são… bem, introduzidos, com o papel fundamental de equilibrar os problemas de Jon com o tom cômico e despojado que fez a fama de Criminosos do Sexo. Um deles, o ginecologista Robert Rainbow (Roberto Arco-Íris, no português), não precisa de muito além do seu nome para fazer rir. Ainda assim, suas cenas com Rachelle, a melhor amiga de Suzie, estão entre as mais engraçadas da coletânea.
Se há um aspecto no qual o segundo arco deixa a desejar é a fluidez da narrativa. Um defeito esquisito, já que a edição veloz do início continua a todo vapor nos números seguintes. Entretanto, as cenas não se sucedem com naturalidade, pendendo mais para uma coletânea de esquetes. Os cinco números reunidos em Two Worlds, One Cop parecem páginas de uma webcomic, colecionadas até completarem 20 folhas de conteúdo e publicadas como capítulos de uma trama maior. Por falar nisso, se o desenrolar lento do enredo do primeiro volume o incomodar — ou seja, se você for daqueles que querem ver a tal da “história” — o segundo testará os limites da sua paciência.
Consistente em todas as páginas dos dois arcos está a ótima arte de Chip Zdarsky. Tudo bem que a linguagem corporal de seus personagens pode, por vezes, parecer artificial, fazendo com que se assemelhem a bonecos articulados em poses engraçadas. Por outro lado, suas expressões faciais são irretocáveis, uma qualidade essencial para o tipo de humor da HQ. Lembrando Darick Robertson em Transmetropolitan (1997–2002), Zdarsky também complementa a irreverência dos roteiros de Fraction ao entupir os quadros com piadas de fundo.
Conversa de travesseiro
Seja discutindo sexo ou transtornos mentais, um elemento recorrente em Criminosos do Sexo é a crítica à falta de informação. Quando Suzie, ainda adolescente, começa a entrar em contato com a sua sexualidade (e estranhas habilidades), família e escola falham em confortá-la com qualquer espécie de resposta às suas perguntas. O fato de ser mulher, claro, não ajuda sua situação em nada. Jon, por sua vez, sente-se forçado a manter suas dificuldades emocionais em segredo por receio de ser socialmente estigmatizado. Em ambos os casos, a impossibilidade de diálogo exacerba problemas que poderiam ser consideravelmente minimizados pelo mero acesso ao conhecimento.
Na medida do possível, a HQ procura fornecer algum alento a essa necessidade de informação e interação. Ao final de cada edição norte-americana, uma extensa seção de cartas (por vezes com nove páginas) fornece a criadores e público um amplo espaço para se aprofundarem nos temas do título. Com frequência, encontramos leitores compartilhando vivências e dificuldades, estimulados por verem experiências similares às suas tratadas de maneira tão autêntica nos quadrinhos. Há, ainda, histórias de casais que, graças à série, conseguiram abrir novos canais de comunicação, melhorando suas vidas sexuais e emocionais através do aprofundamento de sua intimidade. Em pouco tempo, a seção de cartas tornou-se um grande fórum de debates, inclusive com a participação de sexólogas profissionais.
Por outro lado, às vezes o pessoal quer apenas curtir. Alinhada com o tom irreverente da série, a seção de cartas traz, ainda, diversos relatos de experiências sexuais bizarras e perguntas indiscretas — motivando, na maioria das vezes, respostas inacreditáveis. Tem de tudo (e mais um pouco): produtos sexuais para veganos, clitóris que brilham no escuro, balões de festa usados como preservativos (dica: não faça isso em casa), e o Super Mario e a Princesa Peach getting jiggy with it. Hilárias e emocionantes, as correspondências que encerram todos os números — ausentes nos encadernados, incluindo o nacional — são o complemento ideal para o evento principal. Como conversa de travesseiro.
Levando em conta o mundo de repressão ao nosso redor, a dedicatória reproduzida lá no começo já não soa tão absurda assim, não acha? É exatamente a sua abordagem equilibrada entre os exageros da comédia e a brutalidade da vida real que torna Criminosos do Sexo mais do que uma fonte de risos fáceis. Em meio às piadas (na verdade, em boa parte devido a elas), o leitor certamente encontrará uma manifestação artística cuidadosa, dedicada e, acima de tudo, extremamente satisfatória. Igualzinho a uma boa… adivinhe?
(Sobremesa! Estava pensando em sobremesa! Essa sua mente suja não tem jeito mesmo, hein?)
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Criminosos do Sexo, Volume Um — Uma Estranha Habilidade pode ser encontrado em livrarias especializadas em quadrinhos. Este artigo tem por base as dez primeiras edições do título em inglês.
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Originally published at revistasalsaparrilha.com on February 20, 2016.