Foto de Cristobal Manuel/ Newscom.

Pequeno dicionário de Umberto E

Maurício Sellmann Oliveira
Revista Salsaparrilha
12 min readMar 12, 2016

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Quando da publicação de O Nome da Rosa, ainda antes da glasnost, editores soviéticos expressaram preocupação com a citação de Praga no início do livro. O escritor Umberto Eco retrucou que não admitia censura, mas que a cidade checa não fazia diferença para a narrativa; estava lá só porque ele gostava. Num chiste, sugeriu que colocassem Dublin, então. Mas Dublin não foi invadida pelos russos, observaram. “A culpa não é minha”, respondeu.

A se acreditar no que se leu nos dias que se seguiram à sua morte, em fevereiro aos 84 anos, este italiano do Piemonte passa à posteridade somente por duas coisas: escrever o romance acima e ter dito que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis (em uma cerimônia na Universidade de Turim, em 2015). Eco, porém, era um bonachão bom de papo, que amava profundamente a linguagem como fonte de conhecimento e o mundo que ela nos ajudou a produzir, do Snoopy a Boécio de Dácia. Escreveu dezenas de livros, entre ficção, crônicas, filosofia e semiótica. Suas obras, mesmo as acadêmicas, eram estruturadas como grandes quebra-cabeças eletrizantes, para serem resolvidos junto com o leitor.

As palavras e imagens, para ele, eram um conjunto de sinais prontos a serem decifrados e conectados como uma infinita coleção de blocos de Lego. Tinha um pé plantado na Idade Média e outro firme no presente. Qual um moderno Samuel Johnson, Eco era um onívoro, com fome de descobrir e fazer associações com tudo e de tudo até a sua morte. Como disse o crítico Alfonso Berardinelli: “Se eu também me pusesse a enumerar tudo aquilo que ele enumera não faria nada mais do que lhe fazer eco.” Abaixo, algumas das percepções que Eco deixou sobre este mundo, catalogadas in litterarum ordine. Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu que se cuidem. Depois de morto, Eco e suas palavras estão prontas para invadir as redes sociais bárbaras (com citações legítimas!). Abaixo, damos uma mãozinha. As traduções são minhas, exceto onde indicado. E se tal lista soa como estranha homenagem, remeto ao que disse ele próprio em entrevista à revista alemã Der Spiegel em 2006:

A lista é a origem da cultura. É parte da história da arte e da literatura. O que a cultura deseja? Tornar o infinito compreensível… E de que maneira o ser humano reage ao infinito? Como ele tenta apreender o incompreensível? Por meio de listas, catálogos, coleções de museus, e enciclopédias e dicionários.

ABERTURA

O primeiro dever da pessoa culta é estar sempre preparado para reescrever a enciclopédia. (“A Força da Falsidade”, em A Busca da Língua Perfeita)

AMOR

O amor nos torna inimigos de nós mesmos. (A Ilha do Dia Anterior)

ATEÍSMO

Todo grande ateu recebeu educação religiosa. (Não Conte com o Fim do Livro)

BELEZA

Ver Feiúra.

BIBLIOTECA

É uma certeza de aprendizado. (Não Conte com o Fim do Livro)

CARICATURA

Creio que as caricaturas são geralmente bons retratos: talvez não retratos do que é o caso, mas pelo menos do que poderia ser o caso, se se presumisse que algo fosse o caso. (“Interpretação e História”, em Interpretação e Superinterpretação)

CETICISMO

Todo mundo sabe que o bom cético tem o direito de reagir nos termos de A Guerra dos Bichos, de Orwell: “OK, todos os intérpretes são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. (“Réplica” em Interpretação e Superinterpretação)

CIÊNCIA

Deve-se dedicar-se à ciência não só pelo amor ao conhecimento mas também para compartilhá-la com nossos irmãos. (A Ilha do Dia Anterior)

CONSPIRAÇÃO

Imaginar sociedades secretas e conspirações é uma maneira de não reagir à vida sociopolítica. Assim, você diz: “Não sabemos quem eles são. Não podemos reagir sem raciocinar.” É uma maneira de manter as pessoas distantes do ambiente político. (para a revista Interview)

CULTURA

É o mecanismo pelo qual uma comunidade nos sugere o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido. (de uma entrevista à Paris Review)

DESCONSTRUCIONISMO

O desconstrucionismo convenceu os americanos que a única arte semiótica consiste em fazer dizer aos textos o que sugerem nossos desejos. (de entrevista à Folha de S. Paulo–tradução de Contardo Calligaris)

DESTINO

Frequentemente, os homens, em vez de admitir que são os autores de seu próprio destino, veem-no como um romance narrado por um escritor caprichoso e salafrário. (A Ilha do Dia Anterior)

DIABO

Talvez a única prova verdadeira da presença do diabo seja a intensidade com que todos, naquele momento, desejam sabê-lo em ação… (O Nome da Rosa–tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade.

EMPATIA

A compreensão intercultural pode reduzir os conflitos e fazer nascer novas formas de fraternidade. (discurso na Expo 2015, em Milão)

ENSINO

Há [no ensino universitário] uma relação canibal: você come as carnes jovens [dos estudantes] e eles comem a sua experiência. (de entrevista ao El País)

ESPORTES

Hoje em dia, resumem-se a discussões na imprensa esportiva. (“Conversa sobre Esportes”, em Diário Mínimo)

ESTILO (LITERÁRIO)

Toda obra científica deve ser uma espécie de thriller — o relato de uma busca por algum Santo Graal. (Confissões de Um Jovem Romancista–tradução de Marcelo Pen)

ESTUPIDEZ

É uma forma de se expressar a idiotia com persistência e orgulho. (Não Conte com o Fim do Livro)

EXCESSO

Todos esses relógios, como em geral a indústria da informação, correm o risco de não mais comunicar nada porque revelam coisas demais. (“Como Não Saber as Horas”, em Diário Mínimo)

FALSO

Histórias falsas são, acima de tudo, histórias, e histórias, como os mitos, são sempre persuasivas. (“A Força da Falsidade”)

FARMACISTAS

Foram inventados para decifrar [receita médica manuscrita]. (Não Conte com o Fim do Livro)

FEIÚRA

A feiúra é mais inventiva que a beleza. A beleza sempre segue certos moldes. A feiúra é mais divertida. (à Interview)

FELICIDADE

Alguém que esteja feliz o tempo todo é um imbecil. Por isso, prefiro, a ser feliz, ser inquieto. (ao El País)

FICÇÃO

Acredito que, no fundo, uma história é sempre mais rica; é uma ideia transformada em acontecimentos, informada por um personagem, e iluminada por uma linguagem trabalhada. Assim, naturalmente, quando uma ideia vira um organismo vivo, ela torna-se algo completamente diferente e, provavelmente, muito mais expressivo. (à Paris Review)

FILOSOFAR

Ser um filósofo profissional é, eu diria, achar natural pensar sobre os pequenos e os grandes problemas. É o único prazer. (à Interview)

GLOBALIZAÇÃO

Achávamos que a globalização faria com que todos começassem a pensar da mesma forma. O que realmente aconteceu foi o oposto: a globalização levou à divisão da experiência comum em diferentes campos. (Não Conte com o Fim do Livro)

HEROÍSMO

Heróis de verdade são sempre impulsionados pelas circunstâncias. Eles nunca escolhem porque, se o fizessem, escolheriam não ser heróis. (“Por Que Estão Rindo Naquelas Jaulas?”, em Diário Mínimo)

HUMANIDADE

O ser humano é uma criatura extraordinária. Descobriu o fogo, construiu cidades, escreveu poemas magníficos, interpretou o mundo, inventou mitologias, etc. Ao mesmo tempo, porém, nunca deixou de declarar guerra a seus irmãos, de estar totalmente errado, de destruir o meio-ambiente, etc. Esta mistura de grandes poderes intelectuais e idiotia fundamental cria um resultado aproximadamente neutro. Assim, quando decidimos investigar a estupidez humana, estamos, de alguma forma, prestando homenagem a esta criatura que é parte gênio, parte tolo.” (Não Conte com o Fim do Livro)

HUMOR

O riso é permitido exatamente porque, antes e depois dele, as lágrimas são inevitáveis. (“O Cômico e a Ordem”, em Diário Mínimo)

INTELECTUALIDADE

Um camponês que percebe que um novo enxerto pode produzir um novo tipo de maçã realizou, naquele momento, uma atividade intelectual. Por outro lado, o professor de filosofia que passa a vida toda repetindo a mesma aula sobre Heidegger não chega a ser um intelectual. A criatividade crítica — criticar o que estamos fazendo ou inventar melhores formas de fazê-lo — é a única marca da função intelectual. (à Paris Review)

IDADE MÉDIA

Para mim, não se trata da Idade das Trevas. Era uma época luminosa, terreno fértil de onde cresceu a Renascença. Um período de mudança caótica e efervescente: o nascimento da cidade moderna, do sistema bancário, da universidade, da ideia de Europa, com suas línguas, nações e culturas. (à Paris Review)

INIMIGOS

Ter um inimigo é importante não só para definir nossa identidade mas também para oferecer-nos um obstáculo contra o qual medir nosso sistema de valores, e para, ao procurar superar esse obstáculo, demonstrar nosso próprio valor. Assim, quando não há um inimigo, temos que inventá-lo. (“Inventando o Inimigo”, em Costruire il Nemico e Altri Scritti Occasionali)

INTERNET

A internet ainda é um mundo selvagem e perigoso. Tudo surge lá sem hierarquia. A imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de informação provoca a amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar. (de entrevista à Época–tradução de Luis Antonio Giron)

ITÁLIA

Sempre fomos um povo de punhais e venenos. (Número Zero–tradução de Ivone Benedetti)

LEITURA

O texto é uma máquina preguiçosa que exige que os leitores façam a sua parte — ou seja, é um mecanismo concebido para suscitar interpretações. (Confissões de Um Jovem Romancista–tradução de Marcelo Pen)

LINGUAGEM

[Richard] Rorty perguntou por qual motivo precisamos saber como a linguagem funciona. Eu respeitosamente respondo: não só porque escritores estudam línguas para escrever melhor (…), mas também porque o assombro (e, portanto, a curiosidade) é a fonte de todo conhecimento e é simplesmente maravilhoso descobrir por que e como um texto pode produzir tantas interpretações boas. (“Réplica”)

LIVRO

Os livros não foram feitos para que se acredite neles, mas sim para que sejam submetidos à investigação. Ao considerarmos um livro, devemos nos perguntar não sobre o que ele diz, mas sobre o que ele significa. (O Nome da Rosa)

MEMÓRIA

Nossa memória é sempre uma reconstrução interpretativa do passado… A memória é a nossa alma. Se a perdemos completamente, ficamos sem alma. (à Interview)

MÍDIA

A mídia de massa primeiro nos convenceu de que o imaginário é real, e agora estão a nos convencer de que o real é imaginário. Quanto mais realidade a TV nos mostra, mais cinematográfico se torna o nosso dia-a-dia. Até o dia em que, como insistem alguns filósofos, nós acreditarmos que estamos sozinhos no mundo, e que tudo o mais é um filme que Deus ou algum espirito maligno projeta diante dos nossos olhos. (“Como Reagir a Rostos Conhecidos”, em Diário Mínimo)

MISTÉRIO

Nós adoramos quando o ato de criação está envolto em mistério. O público exige isso. Se não fosse esse o caso, como Dan Brown [autor de O Código DaVinci] ganharia a vida? (Não Conte com o Fim do Livro)

MODERAÇÃO

Sei que Finnegans Wake foi escrito para um leitor ideal que sofresse de uma insônia ideal. Porém, também sei que, embora toda a obra do Marquês de Sade tenha sido feita para mostrar o que o sexo pode ser, a maioria de nós é mais moderada. (“Interpretação e História”)

MUDANÇA

A moralidade de antigamente nos queria espartanos, enquanto a de hoje nos faz sibaritas. (“Como Tomar Sorvete”, em Diário Mínimo)

NARRATIVA

O romance é a realização maior da narratividade. E a narratividade conserva o mito arcaico, base de nossa cultura. Contar uma história que emocione e transforme quem a absorve é algo que se passa com a mãe e seu filho, o romancista e seu leitor, o cineasta e seu espectador. A força da narrativa é mais efetiva do que qualquer tecnologia. (à Época–tradução de Luiz Antonio Giron)

ÓDIO

O amor isola. Eu a amo, quero que ela me ame, e não quero que ela ame outro. A paixão é egoísta e limitada. O ódio é generoso, é social, um povo inteiro pode odiar outro, e todos se sentem unidos por um sentimento comum. (de entrevista a O Globo–tradução de Guilherme Aquino)

PAZ

Se quiser evitar a guerra, nunca faça tratados de paz. (A Ilha do Dia Anterior)

PLEBE

Os simples são carne de matadouro, de se usar para colocar em crise o poder adverso, e para sacrificar quando não prestam mais. (O Nome da Rosa–tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade)

POESIA

Alcançamos a poesia quando a imaginação percebe que chegou àquela condição de emoção considerável na qual ela é capaz de criar. (“Meu Exagme”, em Diário Mínimo)

POLÍTICA

Quando digo que a sociedade é líquida [do conceito de sociedade em constante fluxo de Zygmunt Bauman], também argumento que não há mais a noção de ação política. [de entrevista a L’Espresso]

PRESENTE

Não vivemos mais no presente. Em vez disso, estamos nos esforçando continuamente para nos preparar para o futuro. (Não Conte com o Fim do Livro)

PÓS-MODERNISMO

Triste o dia em que um público esperto demais interpretará Casablanca como tendo sido concebido por Michael Curtiz [diretor do filme] depois de ler [Italo] Calvino e [Roland] Barthes. No entanto, este dia chegará. Talvez tenhamos tido a oportunidade de descobrir, pela última vez, a Verdade. (“Casablanca: Filmes Cult e Colagem Intertextual, em Viagem na Irrealidade Cotidiana)

RELIGIÃO

Os seres humanos são animais religiosos. Uma caraterística tão marcante do comportamento humano não pode ser simplesmente ignorada ou desprezada. [Eco foi criado católico, mas tornou-se ateu.] (à Paris Review)

ROUPAS

Se Viena ficasse na linha do Equador e a sua burguesia andasse por aí de bermudas, teria Freud descrito os mesmos sintomas neuróticos, os mesmos triângulos edipianos? (“Pensamentos Lombares”, em Viagem na Irrealidade Cotidiana)

SISTEMA

A capacidade dos grandes sistemas de curar suas próprias feridas é considerável (…) O sistema e os grupos subversivos são geralmente gêmeos, e um produz o outro. (“Falsificação e Consenso”, em Viagem na Irrealidade Cotidiana)

SOCIABILIDADE

Estar juntos, conversar, é extremamente importante. Fico preocupado com as pessoas que, hoje, passam suas noites na internet em vez de ir ao bar. (à Interview)

SUSPEITA

Para fazer barulho, você não deve inventar histórias. Tudo o que tem a fazer é divulgar uma história real porém irrelevante, criando, ainda assim, uma sombra de suspeita pelo simples fato de que ela foi divulgada… Nada é mais difícil de apagar do que uma história irrelevante porém real. (“Censura e Silêncio”, em Costruire il Nemico e Altri Scritti Occasionali)

TÁXI

Em qualquer parte do mundo, há uma maneira infalível de reconhecer um motorista de táxi: é aquela pessoa que nunca tem troco. (“Como Usar o Motorista de Táxi”, em Diário Mínimo)

TEORIA DA CONSPIRAÇÃO

Quanto mais fugidio e ambíguo um símbolo, mais ele ganha importância e poder. (O Pêndulo de Foucault)

UR-FASCISMO (ou FASCISMO ABSOLUTO)

O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos “proletários” estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu auditório. (“O Fascismo Eterno”, em Cinco Escritos Morais–tradução de Eliane Aguiar)

VERDADE

A verdade é algo com que temos convivido desde o início dos tempos, mas a esquecemos. Se isto aconteceu, alguém deve tê-la salvado para nós, porém deve ser alguém cujas palavras já não entendemos mais. (“Interpretação e História”)

ZIGUE-ZAGUE

Ziguezaguear é viajar contra o vento: um pouco para um lado, um pouco para o outro. Creio que a poética do zigue-zague forma parte da minha atividade intelectual. Posso escrever um ensaio sobre Tomás de Aquino e, em seguida, uma paródia sobre o mesmo tema. Justamente como girar o timão. (de entrevista ao La Reppublica)

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Originally published at revistasalsaparrilha.com on March 12, 2016.

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Maurício Sellmann Oliveira
Revista Salsaparrilha

PhD in Latin American Cultural Studies at the University of Manchester. Só por curiosidade. Também encontrado no Almanaque Semanal (Substack).