Maurício Sellmann Oliveira
Revista Salsaparrilha
20 min readJan 6, 2018

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Foi numa noite sombria de novembro…

Vamos tentar de novo.

Você ficará feliz em saber que nenhum desastre se abateu sobre um empreendimento para o qual olhou com terríveis presságios.

A primeira frase marca o início da história de Frankenstein e seu monstro, como foi contada originalmente numa noite chuvosa de junho de 1816 — ao menos segundo relato da sua autora, Mary Shelley. Quando foi publicado, anonimamente, em 1º de janeiro de 1818, Frankenstein ou O Prometeu Moderno começava com a segunda citação, após um cabeçalho de carta. A noite sombria ficara relegada ao Capítulo IV do volume I. E ainda haveria uma nova versão em 1831, com várias revisões. Nada mais adequado para um romance sobre segundas versões: a de relatos dentro de relatos; a do homem que deseja dar vida a uma criatura à sua imagem e semelhança assim como o Criador uma vez fizera com ele — se Ele, que é dito perfeito, não tivera 100% de êxito, a tentativa humana também não poderia acabar bem.

Aos duzentos anos de sua primeira publicação, Frankenstein se tornou extremamente familiar mesmo àqueles que nunca o leram, mas continua ao mesmo tempo tão estranho quanto o ser montado por Victor Frankenstein. As imagens e eventos que vêm à memória são os pregos no pescoço de Boris Karloff no filme de 1931, “Ele está vivo!”, o ajudante corcunda Igor, aldeões erguendo tochas para destruir uma incompreendida besta monossilábica, e a húbris do cientista que ousou desafiar as leis da natureza. Com exceção do último item, nada nessa lista se encontra no(s) original(is) de Mary Wollstonecraft Shelley sobre a criatura vingativa que comete uma série de mortes após ser rejeitada por seu criador e pelo resto da humanidade. São todos visões das adaptações teatrais — a primeira é já de 1823 — e das segundas e terceiras e quartas versões cinematográficas que nelas se basearam. Em 2018, a “prole hedionda” — como a escritora se refere a sua criação na introdução da edição de 1831 –, lançada ao mundo em 1818, ainda “segue adiante e prospera”.

Ilustração de Bernie Wrightson.

Barro suíço

Quase tão célebre quanto o livro é o início do seu processo criativo. Muito já se disse sobre o famoso verão de 1816 à beira do Lago Genebra, na Suíça. Há pelo menos três filmes apenas sobre o evento — um deles dirigido por Ken Tommy Russell (Gothic, 1987) — e mais um verdadeiro subgênero de livros, incluindo a ficção gótica As Piedosas, do argentino Federico Andahazi. Até hoje, a Villa Diodati, onde Mary e amigos se reuniram, é lugar de peregrinação (Balzac era obcecado pelo lugar). Não é à toa: aquele grupo era o equivalente à época de astros da música.

Mary Godwin era filha de dois escritores politicamente engajados: o jacobinista William Godwin e a feminista Mary Wollstonecraft, morta após dar a luz a Mary. Como o escritor Grant Morrison observou nos quadrinhos de The Invisibles, radicalismo corria nas veias dela. Seu futuro marido, o poeta Percy Bysshe Shelley, tinha pedigree nobre e era ateu incorrigível. Quando os encontramos na Suíça, Mary estava na segunda fuga de casa com Percy. Ele tinha 23; ela, 17; e os dois haviam saído da Inglaterra para mais uma temporada louca pela Europa continental, lendo, escrevendo e consumindo láudano. Ele ainda estava casado com outra, e ela já havia perdido um filho desse relacionamento malquisto pelos pais de ambos. Ou, segundo a fofoca da época, Mary era a jovem destruidora de lares que tinha sido vendida pelo pai ateu para um poeta ateu casado. Completando o grupo, o poeta superstar dos românticos, Lord Byron, e seus groupies: sua amante (também de Percy) e meia-irmã de Mary, Claire Clairmont, e o médico John Polidori. Com exceção de Claire e Mary, todos os envolvidos viveriam rápido e morreriam jovens à la Kurt Cobain.

Cheira a espírito jovem. Do alto à esquerda, em sentido horário: Percy Shelley, Mary Godwin, Lord George Byron, Claire Clairmont, a Villa Diodati e John Polidori.

Dizer que 1816 teve um verão é bastante generoso, afinal aquele ficou conhecido como “o ano sem verão”, com aberrações climáticas causadas, principalmente, pela grande erupção do Monte Tambora, um vulcão na Indonésia, em 1815. Há diários documentando aquelas semanas, porém os relatos divergem nos detalhes — algo muito natural quando se mistura ópio e bebidas. Com o tempo chuvoso, reza a lenda, Byron desafiou os amigos a criarem histórias de terror. Polidori escreveria posteriormente, com base numa ideia de Byron, O Vampiro (1819), o conto que introduziu o imortal hematófago sedutor como o conhecemos hoje. Mary, como ela própria escreve na introdução de 1831 de Frankenstein, inspirou-se em sonhos para escrever a primeira ficção científica moderna. Um desses sonhos, muitos concordam hoje, é o que se encontra num registro tocante em seu diário de 1815, após a morte de seu primeiro filho: “Sonhei que meu bebezinho tinha voltado à vida — que ele apenas estava frio, e que o esfregamos ao pé do fogo & ele viveu.”

A poeta Claire Woodard resumiu bem as coisas em Summer on the Lake: Villa Diodati, 1816: “Quem de fato descobriu/Quem com quem dormiu./Havia três homens,/duas mulheres, uma gravidez/e muitas rajadas/de trovão. Havia/histórias de fantasmas, passeios de barco,/e estranhas canções albanesas./A criação do monstro de Frankenstein.”

Daquelas noites, na verdade, saíram quatro obras inspiradas no mito greco-romano do titã que 1) criou um homem a partir do barro, e 2) roubou o fogo da criação dos deuses para dar aos seres humanos. Além do Prometeu moderno de Mary, houve o poema Prometeu Libertado (1820), de Percy, onde o herói permanece desafiando os deuses até o fim, ao contrário do que acontece no Prometeu Acorrentado (séc. V a.C.), a tragédia do grego Ésquilo. Byron, tiete do personagem desde criança, compôs dois poemas: Prometeu (1816) e a peça Manfredo (1816–1817). O de Mary assumiu o nome de Victor Frankenstein, tinha muito pouco de heroico, e o seu experimento com fogo divino e barro humano já começava muito mal. Aquela garota atrevida de 19 anos estava criando um mito completamente novo.

Casa de espelhos

A história é contada como uma série de narrativas-espelhos em camadas: a primeira, mais externa, é o relato de Robert Walton, um explorador que, em fins do século XVIII, recolhe em seu navio um estranho à deriva no meio das geleiras e placas de gelo do Pólo Norte; a segunda é a história desse estranho náufrago, Victor Frankenstein; e, por último, a terceira é a do monstro que Frankenstein persegue — esse estranho ser ainda conta a história da família DeLacey, que encontrara na floresta. Todos esses relatos nos chegam em primeira pessoa enquanto alguns dos eventos são reprisados sob uma perspectiva diferente e reveladora. Cada um dos três narradores, como bonecas russas, possui características que nos remetem aos outros dois. Ao contrário de personagens cuja única função é servir de narrador (como o Nick Carraway de O Grande Gatsby), o Walton de Shelley é um aventureiro que trocou uma existência confortável pela glória numa era de grandes explorações e descobertas. Frankenstein verá nas ambições de Walton a semente da ambição cega que provocou a sua miséria. O demônio que Victor criou se ergue como uma manifestação física dos seus próprios:

…seus olhos geralmente têm uma expressão selvagem, e mesmo louca; mas há momentos em que, se alguém lhe dirige um ato de bondade ou lhe oferece a ajuda mais frívola, suas feições se desanuviam por assim dizer com um raio de benevolência e doçura que eu jamais vira igual. Porém, ele está geralmente melancólico e desesperado; e algumas vezes, range os dentes como se impaciente pelo peso dos infortúnios que o oprimem. [Carta IV]

Assim Walton descreve não a criatura mas Victor, nos dias que seguem sua subida a bordo. E esta é a forma como a criatura, autodidata e articulada depois de suas andanças, descreve-se para Victor, ao confrontá-lo nas alturas do Mer de Glace, nos alpes franceses:

Lembra que sou tua criatura; deveria ser teu Adão, mas sou apenas o anjo caído de quem afastaste a alegria não por delito… Eu era virtuoso e bom; a miséria me tornou um demônio… Você, meu criador, abomina-me; que esperança pode advir de seus iguais, que me rejeitam e odeiam? [Cap. X]

E mais adiante:

Devo respeitar o homem quando ele me despreza? Que ele viva comigo na troca de bondade e, em vez de dor, eu lhe presentearia tudo com lágrimas de gratidão por sua aceitação. [Cap. XVII]

Mary constrói tanto Victor quanto sua criação sob o signo da ambiguidade. “Demônio”, “criatura”, “monstro”, “ser”, “infeliz”: a escritora usa estas palavras, e mais algumas, para identificar o Adão caído de Frankenstein, tornando-o mais complexo que uma mera aberração. Não é por acidente que Frankenstein acabou sendo, na imaginação popular, o nome também da criatura. Essa ambiguidade se encontra também na descrição esparsa do monstro de mais de dois metros de altura — elementos atraentes, como dentes muito brancos e cabelos lustrosos, se combinam com olhos translúcidos, compleição murcha e lábios escuros –, cuja visualização depende muito mais da imaginação e dos medos projetados por cada leitor. Esqueça a maquiagem icônica criada por Jack Pierce para o filme de 1931 e olhe para dentro do abismo.

Gerações de Proteu.

Além de ambiguidade, o romance investe em projeção e simbiose. Walton, Frankenstein e o sem-nome são, cada um a sua maneira, todos solitários e atraídos pelo lado mais febril de sua humanidade. Almejam ou lamentam a perda da mesma coisa: um amigo para chamar de seu, um grupo do qual fazer parte. As mulheres encarnam um ideal de equilíbrio nas suas vidas: Walton mantém a sanidade escrevendo cartas para a irmã, Margaret Walton Saville (Mary Wollstonecraft Shelley?); Victor vê sua maior chance de felicidade no casamento com a doce Elizabeth Lavenza; e a criatura rejeitada e solitária apela a seu criador que lhe faça uma companheira. Como nas melhores histórias de horror e ficção científica que viriam depois, o elemento fantástico de Frankenstein se ancora num drama monstruoso demasiado humano.

As contradições deliberadas de Frankenstein não param aí. O livro pode ser uma obra típica do romantismo, mas também cospe sem pudor no prato em que come. Há a natureza generosa, as emoções extremas, as noites tenebrosas e a ênfase na vida interior característicos do movimento. Mary marca bem a diferença entre o que o filósofo Edmund Burke descreveu como sublime (um “horror delicioso”) e o belo. Ao mesmo tempo, a exaltação da estética vira caricatura. Frankenstein se espanta com o resultado horrendo do seu experimento pois, ao escolher as partes que comporiam o novo ser, buscou o que havia de mais belo. Tal qual um ideólogo fascista, Victor cria e destrói em nome da beleza e da vaidade. As palavras “beleza” ou “belo” também saem da boca da criatura diversas vezes no livro, como um ideal a que ela jamais terá acesso. Por fim, o homem romântico não se limita a reproduzir a natureza; ele vai recriá-la de acordo com seus desejos e contra as convenções das instituições. Tanto Victor entende as implicações de seu trabalho que o faz em segredo, longe do exame de colegas e professores da universidade de Ingolstadt, fiel ao seu individualismo extremo na perseguição de “honra e glória”.

Mary construiu uma narrativa tão subversiva que múltiplas leituras são perfeitamente plausíveis. Até mesmo a de que a criatura, na verdade, não passa de delírio de Frankenstein, que teria sido o responsável pelos crimes, como sugere Arthur Belefant em Frankenstein, The Man and the Monster (1999). Segundo David Ketterer, em Frankenstein’s Creation (2016), tanto Victor quanto sua criação seriam fruto da imaginação do próprio Walton, acossado por alucinações no Ártico. O monstro como manifestação da psique é uma ideia tentadora.

Aidan Quinn como Walton, em “Frankenstein de Mary Shelley” (1994)

Uma fagulha de ser

Mas esqueço que estou moralizando na parte mais interessante do meu conto; e seus olhos me advertem para prosseguir, Victor fala a Walton. Mais que um romance filosófico, Frankenstein é uma história filosófico-científica. O livro alude a várias questões de biologia e química da época. O “filósofo inglês” que Victor pensa em procurar no Cap. XVIII bem pode ser o Erasmus Darwin, avô de Charles, que Percy Shelley, um grande fã, menciona na introdução à edição de 1818. Darwin, um homem de mil talentos — responsável por uma rudimentar teoria evolucionária, semelhante às ideias de Lamarck — era capaz mesmo de discutir a origem da vida e avanços tecnológicos em verso, como no singular O Jardim Botânico (1791). Mary cita-o na introdução à edição de 1831, como uma das inspirações para os experimentos de reanimação de Victor. “Fagulha de ser” (spark of being) é a expressão que aparece no Cap. V, remetendo à “fagulha de vitalidade” (flavilla vitae) que Darwin usa para descrever a forma como as plantas se reproduzem em Fitologia; ou a Filosofia de Agricultura e Jardinagem (1800). E o experimento em si traz semelhanças com a tentativa fracassada do físico italiano Giovanni Aldini de reviver um enforcado usando eletricidade em 1803. A técnica usada por Aldini, o galvanismo, é tema de uma conversa presenciada por Victor na juventude (Cap. II).

Da sua parte, o nome Frankenstein já estivera associado à criação de um simulacro de vida. Em plena Revolução Francesa, no meio da febre dos autômatos daquele século, houve um inventor chamado Frankénsteïn (ou melhor, Wak- wik- vauk- on- son- frankénsteïn) na novela O Espelho da Atualidade, ou A Bela para a Melhor Oferta: Uma história de duas faces (1790), de François-Félix Nogaret. Tratava-se de uma narrativa cômica em que seis inventores competiam pelo coração de uma bela dama, uma metáfora para a nascente república. Frankénstein derrota os outros com um robô capaz de tocar música de forma tão comovente que faz a heroína desmaiar de emoção.

De uma só tacada, Frankenstein explora rudimentos de inteligência artificial, mecanismos de vida e ética científica. Estes elementos têm atraído, especialmente a partir da década de 1980, a atenção de acadêmicos de ciências naturais e biológicas além dos tradicionais pesquisadores da área de humanas. Não é um grande pulo, por exemplo, ver na educação deficiente da criatura lições para refletir sobre as falhas na construção e a falácia da objetividade de algoritmos de computador. Uma equipe multidisciplinar da Universidade Estadual do Arizona desenvolveu o Projeto Bicentenário de Frankenstein, que inclui um jogo online para crianças se iniciarem nas artes ocultas dos experimentos científicos participando de pesquisas relacionadas aos temas da história. O ponto culminante do projeto foi o lançamento de Frankenstein: Annotated for Scientists, Engineers, and Creators of All Kinds (2017), a edição de 1818 com comentários e artigos com foco em filosofia e prática de ciências. Incidentalmente, a própria Mary, muito depois de Frankenstein, escreveria a maioria dos verbetes dos dois volumes de Vidas dos Cientistas e Literatos Mais Eminentes da Itália, Espanha e Portugal (1835), para Lardner’s Cabinet Cyclopedia.

Em se tratando de exploração científica, poucas frases são tão blasfemas e verdadeiras quanto esta ordem da criatura a Victor: Você é meu criador, mas eu sou seu mestre — obedeça!. Se algo sai de acordo com os planos em pesquisas científicas, muito sai ao controle. Por mais que governos e empresas dirijam financiamentos visando resultados específicos, a verdade é que a maioria das grandes descobertas ou invenções resultaram do acaso: do microondas nascido de experimentos de energia para radares ao uso de éter como anestésico (originalmente, usava-se para dar um barato). Também a busca por aperfeiçoar ou provar uma teoria, ou chegar a uma nova substância ou fórmula podem consumir a vida de um cientista. Pergunte ao pessoal do Grande Colisor de Hádrons nas proximidades da cidade-natal de Victor, Genebra.

Quanto à famosa lição de moral de Frankenstein — cientistas não devem brincar de ser deus — replicada na cultura popular dos quadrinhos do Homem-Aranha ao Parque dos Dinossauros, não é exatamente intransigente no livro. Ao contar sua história a Walton, Frankenstein alerta repetidas vezes sobre as consequências da ambição desmedida na busca do conhecimento. No fim, nem ele mesmo acredita em seu aviso: Mas por que estou dizendo isto? Eu mesmo posso ter tido tais esperanças destruídas, mas algum outro pode ter êxito um dia.

Baseado em histórias reais: o experimento de Aldini (esquerda) e Erasmus Darwin.

As intenções de Victor, em princípio, são boas. O pesadelo que tem após dar vida à criatura sugere que ele não se conforma com a morte prematura da mãe, Caroline. No entanto, sua ambição declarada trai uma vaidade fundamental nesse desejo de reverter a morte:

Vida e morte pareceram a mim limites ideais, os quais deveria ultrapassar primeiro, e derramar uma torrente de luz no mundo escuro. Uma nova espécie me abençoaria como seu criador e fonte; muitas criaturas felizes e excelentes deveriam sua existência a mim. Nenhum pai poderia reclamar a gratidão de sua criança tão completamente quanto eu mereceria deles. (Cap. IV)

São esses pensamentos que o impelem a seguir em frente com seu experimento prometeico, sem consulta ou conselho de colegas e professores na universidade de Ingolstadt. No delírio egoísta — onde será o “primeiro”, idolatrado como o pai supremo –, nem mede as consequências de criar uma vida. E nem se falou do pequeno delito, comum na época mas não menos imoral, do roubo de cadáveres. Ou do fato de que ele executa seu intento num quartinho secreto da sua residência, com todo o resto da família alheio ao perigo que está correndo. Em suma, mesmo presumindo suas boas intenções, encontramos um Victor não mais ético que alguns fundadores de start-ups nos dias de hoje. Josephine Johnson, do instituto de pesquisas bioéticas Hastings Center, defende, no ensaio “Responsabilidade Traumática”, que Frankenstein é responsável tanto pela destruição causada por sua criação quanto pela criatura em si. Cego de vaidade, ele somente vai tomar consciência da sua responsabilidade pelo “filho” depois das mortes que este causar. Mary expõe o pecado de Victor no monólogo final do monstro, em que ele julga tanto a si quanto ao seu criador. Frankenstein não condena o experimento científico, mas a ciência inconsequente. Eis uma mensagem que insiste em permanecer atual. A tragédia de Victor e sua “nova espécie” ilustra perfeitamente o comentário do pensador contemporâneo John Gray: “A ciência é uma ferramenta de solução de problemas — a melhor que os humanos possuem. Mas ela tem essa peculiaridade: quando ela tem mais êxito, cria novos problemas, alguns dos quais são insolúveis.”

Frankensteinstein, de Kalle Mattsson.

O verdadeiro Frankenstein, por favor, se levante

As transformações do texto original de Frankenstein e as disputas que geraram são uma aventura à parte. Apesar de a própria Mary parecer ter dado a palavra final, pesquisadores e estudiosos têm se debruçado sobre a questão de qual versão deveria ser lida. Por baixo, existem seis. A original, uma novela escrita entre junho e agosto de 1816, a que Mary se refere em seus diários, não existe mais. O rascunho mais antigo a chegar até nós, preservado na Bodleian Library da Universidade de Oxford, começou a ser escrito por volta do início de setembro daquele ano. Esta versão já contém a edição de texto de Percy, mas as cartas de Walton do começo do livro e parte do Cap. I estão ausentes, como mostra a magnífica edição de Charles E. Robinson, The Original Frankenstein (2008). Em seguida, há a versão de janeiro de 1818, a primeira completa, publicada em 3 volumes sem o nome da autora, com as alterações e prefácio não-assinado de Percy. Em 1823, com o sucesso da peça Presumption, inspirada no livro, William Godwin paga uma nova edição remontada, agora exibindo o nome da filha na capa, mas contendo alterações à revelia de Mary, que estava na Itália. Neste mesmo ano, ela entrega a uma amiga inglesa, a Sra. Thomas, uma nova revisão que jamais será impressa. E chegamos à versão final, de 1831 — com novas revisões e introdução exclusivas de Mary –, seguida por grande parte das edições brasileiras. (As citações deste artigo foram traduzidas da última versão.)

Anne K. Mellor, autora de Mary Shelley: Her Life, Her Fiction, Her Monsters (1990), representa a posição acadêmica majoritária em favor da versão de 1818. Em seu artigo “Escolhendo um texto de Frankenstein”, ela argumenta que a morte do marido (num acidente de barco em julho de 1822) e de mais dois filhos, além da situação financeira precária, teriam tornado Mary mais pessimista. Desse modo, a versão de 1831 sugeriria que todas as tragédias na narrativa seriam obra do destino em vez de consequência do livre arbítrio mal usado, como era o caso em 1818. As ideias de que “Victor é moralmente responsável por seus atos, que a criatura é potencialmente boa mas levada para o mal por negligência parental e social […] e que o egoísmo humano causa o maior sofrimento no mundo — são todas rejeitadas nas revisões de 1831.” Marilyn Butler, da Universidade de Cambridge, defendeu que a Mary de 1831 “neutralizou” com “adições supérfluas” o original “urgente, incomum e brilhantemente imaginado”. Mary teria sido pressionada a se conformar aos valores da sociedade da mesma forma que Oscar Wilde, anos depois, teve que eliminar os detalhes considerados mais chocantes de O Retrato de Dorian Gray (1890).

Escolha a sua versão: rascunho de 1816–17, capa do volume 1 da edição de 1818, e página-título da edição de 1831.

Talvez não seja caso para tanto. A visão fatalista de que Mellor reclama já se encontra em Frankenstein 1818. Victor diz que, desde a sua infância, fui imbuído de altos anseios e uma ambição elevada. O trecho, mantido em 1831, é significativo não só pelo uso da voz passiva como pela escolha do verbo “imbuir” (to imbue no original), que carrega ainda parte do sentido de origem — do latim imbuere e imbibere — de fazer absorver, saturar, encharcar, como o barro sendo moldado por Prometeu. É uma forma de o cientista se eximir da culpa por ser como é, equiparando formação e hereditariedade a destino. (Repare também no “entusiasmo sobrenatural” que “anima” Victor a prosseguir com seus experimentos no Cap. III, vol. 1–1818/IV-1831.) Por outro lado, a criatura leu Paraíso Perdido, de John Milton, e se identifica repetidas vezes com o anjo caído do poema; Victor também acaba se vendo como o Lúcifer/Satã que se rebela contra Deus e acaba banido com seus exércitos ao inferno:

…como o arcanjo que aspirou ser onipotente, estou acorrentado a um inferno eterno. (Cap. VII, vol. III-1818/Cap. XXIV-1831)

Victor e a criatura, do mesmo jeito que o Satã de Milton, reconhecem sua queda como escolha bem mais que obra divina. Mary mantém seus narradores inconstantes e, por isso, pouco confiáveis, dando margem ao leitor para decidir por destino ou livre arbítrio, seja qual for a versão. De resto, a criatura continua potencialmente boa e negligenciada, e o egoísmo humano ainda causa um grande mal ao mundo. Também as revisões de 1831 não neutralizaram os buracos narrativos brilhantemente imaginados no original. Continuamos a nos perguntar qual foi o destino do último cão do trenó de Victor. Ou qual providência divina fez uma sacola cheia de livros se materializar perdida no meio da floresta quando o monstro mais precisava. Ou tentando entender a conta cronológica que não fecha de uma das mortes cometidas pela criatura.

Detalhe de ilustração de Theodor von Holst para a edição de 1831.

Por outro lado, Mary corrigiu inconsistências de datas nas cartas, cortou floreios excessivos de frase (alguns cometidos por Percy na edição de 1818), tornou Walton mais que um avatar de Victor, que por sua vez também adquiriu mais nuance para ser algo mais que um cientista monomaníaco. Na cena em que o monstro incrimina injustamente a criada Justine por um assassinato que ele cometera — duas linhas em 1818 –, Mary vê a chance de “oferecer uma visão mais profunda do interior angustiado da criatura ao mesmo tempo em que estende os dilemas morais do romance”, observa James O’Rourke, da Universidade Estadual da Flórida.

É certo que há uma mudança radical: a transformação de Elizabeth Lavenza de prima em irmã adotiva. Agora, Caroline, a mãe de Frankenstein, tira a bela e loira Elizabeth, de “espécie distinta” dos irmãos morenos e feios de uma família miserável, para criá-la e dar-lhe a educação que merece. Isto cria mais dois reflexos na narrativa. Primeiro, força uma comparação entre a bela namorada, a qual Frankenstein dispensa amor, e o filho artificial, cujo amor ele rechaça. Segundo, traz um componente de crítica social à história, com Victor desprezando o seu demônio — criado a partir de partes de cadáveres de indigentes e criminosos — como Caroline desprezara os feios irmãos de Elizabeth. Reforçando essa crítica, há o fato de que, apesar de agora ser “irmã”, ela continua sendo chamada de “prima” por Victor na edição de 1831, marcando uma distância de classe que ela nunca perdera. De qualquer forma, com o novo status de Elizabeth, Mary elimina uma relação incestuosa explícita do texto, mas não o outro desejo implícito: o sonho em que Victor beija Elizabeth e ela se transforma em Caroline, sua mãe morta.

Continua lá também a escandalosa simetria de três cenas — notáveis também pela presença ou ausência de Elizabeth nelas — que envolvem uma cama e a criatura estendendo a mão para Victor. Estarei com você na sua noite de núpcias, o monstro ameaça Frankenstein. Frankenstein 1831 pode estar recauchutado, mas não é menos perigoso.

Lá vem a noiva: arte de Bernie Wrightson para Frankenstein (1993).

Negar a Mary sua revisão de 1831 é, enfim, negar-lhe agência, como o fizeram todos os que, durante a sua vida nutriam a suspeita condescendente de que Frankenstein só podia ser obra de Percy. É desprezar a sua aquisição de experiência como escritora, em obras como o romance histórico Valperga (1823) ou a ficção apocalíptica O Último Homem (1826). Em 1831, Mary já pode editar todas as edições feitas por Percy no original, recuperando sua voz como bem entender. É de se imaginar se os críticos da revisão de Mary usariam os mesmos argumentos sobre amadurecimento e experiências novas contra um escritor como Murilo Rubião, que burilou todos os seus contos de forma significativa até praticamente a sua morte.

Pode-se conjurar as palavras de Mary em Frankenstein como resposta aos críticos de sua versão final. Ao saber que Walton registrara todo o seu relato, Victor pede que lhe mostre seu diário com o intuito de aprovar os registros: Já que você preservou minha narração, eu não gostaria que uma história mutilada passasse à posteridade. Nem Mary.

Retrato da experiência: Mary por Richard Rothwell (1840).

O nascimento do novo mundo

Dois séculos depois, Frankenstein passa a impressão de que jamais consegue se conformar a uma única descrição, como a criatura a que deu luz. Foi essa qualidade elusiva que atraiu seus adaptadores em primeiro lugar. Ironicamente, todos os filmes e peças originados dele se congelaram como instantâneos de seu tempo. Já o livro de Mary ainda se assemelha a um barro disforme, no meio do processo de moldagem que nunca termina. Simula criação e destruição ao mesmo tempo.

Enquanto ela escrevia seu romance, a Revolução Industrial promovia um bota-abaixo na vida de milhares de camponeses ingleses, a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa já haviam chacoalhado as certezas de dois continentes, as Guerras Napoleônicas haviam vindo e ido embora. O mundo parecia sofrer de um terremoto sem fim.

Nessa mesma época, o alemão Johann Wolfgang von Goethe também estava compondo a sua obra-prima, uma versão da lenda de Fausto. Num resumo cru da peça, o personagem-título faz um pacto com Mefistófeles em troca de conhecimento e poder infinitos. Assim, transforma terras e mares, destruindo tudo o que estiver no caminho do seu progresso. É considerado o texto que anuncia a modernidade de transformação contínua em que vivemos. Do seu lado, Victor Frankenstein tem um intento mais subversivo: manda Deus aos diabos para tomar seu lugar mudando morte em vida, e depois morte, e depois vida, devastando o seu mundo no caminho.

Foi numa noite sombria de verão que Mary Shelley criou o mundo moderno.

Prometeu, de Otto Greiner (1909).

A maioria das traduções de Frankenstein, ou O Prometeu Moderno no Brasil seguem a versão de 1831. Entre elas, há a tradução comentada do escritor Santiago Nazarian para a Ed. Zahar, a da Nova Fronteira pela escritora Adriana Lisboa, e a da Penguin/Companhia das Letras com posfácio de Ruy Castro (que já escrevera uma versão sua). A Landmark tem uma edição bilíngue da edição de 1818 e outra de O Último Homem. Para quem quer comer o livro com os olhos, a Darkside Books fez uma edição de capa dura em preto-e-vermelho com notas e ilustrações inéditas de Pedro Franz. A belíssima arte em preto-e-branco de Bernie Wrightson que você viu neste ensaio pertence à versão ilustrada da Ed. Mythos, com introdução de Stephen King.

O Prometeu do mural de José Clemente Orozco (1930)

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Originally published at revistasalsaparrilha.com on January 7, 2018.

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Maurício Sellmann Oliveira
Revista Salsaparrilha

PhD in Latin American Cultural Studies at the University of Manchester. Só por curiosidade. Também encontrado no Almanaque Semanal (Substack).