Sete vezes… mais do que mil palavras
Por Tiago Ramos
Para algo cujo propósito maior é atrair leitores em potencial, a pobreza criativa das capas de quadrinhos se revela com uma frequência assombrosa. É de se indagar como o público ainda aguenta ver os mesmos super-heróis em poses manjadas, protagonistas de HQs independentes vagando sem rumo por calçadas imundas e muita, muita, muita pancadaria. Em outro extremo, ilustradores visionários como Dave McKean (Sandman) e J. H. Williams III (Promethea) regularmente nos agraciam com artes tão belas quanto elaboradas. Entretanto, seus trabalhos costumam demandar a calma de um olhar cuidadoso para serem devidamente apreciados, artigo raro para o transeunte apressado.
Assim, o dom de capturar a atenção de possíveis leitores no primeiro encontro entre ilustração e indivíduo por vezes parece perdido. Mas, felizmente, estamos longe disso. A seguir, sete exemplos mais ou menos recentes de capas de quadrinhos que, além de esteticamente atraentes, comunicam muito com imagens simples. Em ordem cronológica de sua publicação original, convido-o a contrariar aquele famoso ditado e julgar os livros abaixo pelas suas capas. Sem culpa.
The Invisibles Volume 2 #22 (DC Comics / Vertigo)
Arte por Brian Bolland, originalmente publicada em fevereiro de 1999
O segundo ato da obra-prima do roteirista Grant Morrison (tema deste nosso outro artigo) conclui com uma capa que resume, ao mesmo tempo, o conteúdo da edição e a premissa da série. O planeta prestes a ser implodido remete à dissolução dos Invisíveis, principal evento do número, após a perda de um de seus membros. Já para quem estava tendo seu primeiro contato com o título naquele momento, a arte de Brian Bolland traduz visualmente a essência da HQ: nela, os protagonistas são parte de uma rede terrorista (daí o detonador de dinamite) que atua em segredo (note a ausência de rostos) para criar um novo mundo, livre das forças que almejam controlar a humanidade. Por outro lado, a imagem traz ainda pequenos detalhes pensados para o fã: as cores dos fios fazem referência ao “semáforo cósmico” da trama; os protagonistas são facilmente identificados pelas suas mãos; e a argola flutuando no braço de Lord Fanny sutilmente nos recorda de suas habilidades sobrenaturais. Um estouro de capa.
All-Star Superman #1 (DC Comics)
Arte por Frank Quitely e Jamie Grant, originalmente publicada em janeiro de 2006
O Super-Homem é um daqueles raros personagens que todo mundo conhece, não importa a idade. Apresentá-lo, portanto, não exige talento algum — o “S” em seu peito e capa faz o trabalho praticamente sozinho. A grande virtude da arte de Frank Quitely (lápis) e Jamie Grant (arte-final e cores) está em antecipar o tom desta maxissérie logo na capa do primeiro número. No título, a dupla de artistas e o escritor Grant Morrison (olha ele aí de novo!) tratam o icônico herói de maneira simultaneamente mítica e humanizada ao narrar as aventuras de um Homem de Aço condenado à morte por um câncer. Além disso, a imaginação quase infantil dos criadores, filtrada pelo prisma otimista da Era de Prata dos quadrinhos, é perfeitamente representada nesta singela e inesquecível imagem.
100 Bullets #92 (DC Comics / Vertigo)
Arte por Dave Johnson, originalmente publicada em agosto de 2008
Quando a derradeira coletânea de 100 Balas foi anunciada nos EUA, a imagem promocional que a acompanhou foi a capa de seu número 92 (incluído no encadernado). No seu lançamento, entretanto, o volume manteve a tradição dos doze anteriores e terminou ganhando uma ilustração inédita pelo capista Dave Johnson. Ainda que uma nova página por um artista tão talentoso mereça ser celebrada, teríamos ficado com a figura aqui reproduzida. Afinal, estamos falando da conclusão de um enredo construído ao redor de um homem que oferece a estranhos a oportunidade de assassinar — com as próprias mãos e impunemente — um desafeto. A iminente execução mostrada na arte comunica, com direito a frio na espinha, uma inescapável sensação de finalidade. As raízes macabras da árvore e seu tronco escarlate sugerem, ainda, um longo histórico de assassinatos no mesmo local, espelhando a extensão da intricada trama. Uma história marcada por, como seria de se esperar pelo título, armas, balas e muitas mortes, resumida nesta imagem.
Daredevil Volume 3 #1 (Marvel Comics)
Arte por Paolo Rivera, originalmente publicada em setembro de 2011
A essa altura, qualquer assinante do Netflix conhece a origem do Homem Sem Medo: quando criança, Matt Murdock perde a visão em um acidente envolvendo um material radioativo. A mesma substância que o cegou, por outro lado, aguça seus demais sentidos de maneira sobre-humana. Motivado pelo assassinato de seu pai pouco tempo depois, o rapaz cresce para defender a lei como advogado e, em segredo, no uniforme do vigilante conhecido como Demolidor. Ao delinear a realidade através de onomatopeias, esta capa por Paolo Rivera transporta o leitor para o mundo de Matt imediatamente. Apenas isso bastaria para a ilustração merecer um lugar em nossa lista, mas há dois outros elementos dignos de nota. Primeiro, o bastão sobre os olhos faz alusão à limitação física do personagem. Já o sorriso no rosto evoca o tom aventuresco dos roteiros de Mark Waid, responsável por libertar o herói da sucessão de tragédias que o acompanha desde o início dos anos oitenta. Ou, quem sabe, sua alegria seja motivada por ser protagonista de uma arte tão marcante? A gente certamente entenderia.
Giant Days Volume 2 #5 (Boom! Studios / Boom! Box)
Arte por Lissa Treiman, originalmente publicada em julho de 2015
Giant Days é a HQ ideal para quem sente saudades da faculdade. Criada e roteirizada por John Allison, a série narra a cômica vida estudantil de um trio de amigas improváveis: a descolada fashionista Esther de Groot, a ingênua intelectual Daisy Wooton e a adorável rabugenta Susan Ptolemy (acima). Quadrinhos alternativos precisam de boas capas para atrair público, e o título dá uma aula sobre o assunto. Todas as edições mantêm o padrão visto aqui: logotipo e créditos em fontes joviais, cores fortes ao fundo e personagens em poses divertidas ou inusitadas. Mesmo sem saber nada sobre o conteúdo das revistas, a energia da composição visual — e do traço de Lissa Treiman — compele o leitor a parar e descobrir do que aquilo trata. A ilustração do número cinco foi selecionada por ter sido aquela que me fisgou (dá só uma olhada nessa linguagem corporal!), mas eu poderia ter escolhido qualquer outra em seu lugar. Em resumo, Giant Days tem as capas mais bacanas do mercado norte-americano atual.
Silver Surfer Volume 4 #14 (Marvel Comics)
Arte por Michael e Laura Allred, originalmente publicada em novembro de 2015
Não é preciso ser familiarizado com o código visual dos quadrinhos para interpretar linhas e espaços em branco próximos a personagens como indicadores de movimentos velozes. Nesta capa, o casal Michael (desenhos) e Laura (cores) Allred invertem o conceito para dar ao leitor a real dimensão das habilidades do Surfista Prateado. Criado por Jack Kirby em 1966, o poder cósmico do alienígena Norin Radd faz dele um dos mais poderosos super-heróis das HQs. Dentre seus dons, força sobre-humana, velocidade superior à da luz, manipulação do tempo e conversão de matéria em energia pura. Além, claro, da capacidade de singrar o espaço com nada além da sua prancha sob os pés. Para o Surfista, tudo é possível. Até mesmo, como na arte acima, criar o universo em seu vácuo. Simplesmente espetacular.
The Flintstones Volume 5 #1 (DC Comics)
Arte por Ivan Reis e Marcelo Maiolo, originalmente publicada em setembro de 2016
Se há alguma chance de uma linha de quadrinhos baseada nas séries animadas de Hanna-Barbera funcionar em 2016, ela está no alinhamento do seu conteúdo aos interesses, sensibilidades e comportamento do público atual. Foi assim que a DC Comics pensou quando decidiu publicar sua recente leva de HQs inspirada nos personagens do estúdio. Ainda é muito cedo para saber se a ideia dará certo, mas esta capa alternativa da primeira edição de Os Flintstones traduz sucintamente a interessante abordagem da editora. Nela, a dupla brazuca Ivan Reis (desenhos) e Marcelo Maiolo (cores) abraçou a premissa e partiu direto para uma das maiores obsessões dos dias de hoje: a selfie. E sem perder de vista a origem dos personagens, faz-lhe uma homenagem ao mesmo tempo em que cria um interessante contraste entre o visual clássico e a versão atualizada. Impossível olhar para a “foto” acima e não procurar o botão “Curtir” mais próximo.
Por falar nisso, se gostou do artigo, agradecemos o clique no coração logo abaixo. Isso faz com que ele seja descoberto por mais pessoas. E para você? Quais outras capas deveriam ter entrado em nossa lista de “mais com menos”? Deixe seu comentário logo abaixo ou compartilhe sua opinião conosco através do e-mail revistasalsaparrilha@gmail.com. Por fim, não deixe de seguir a Revista Salsaparrilha aqui mesmo no Medium, no Twitter e no Facebook.
Originally published at revistasalsaparrilha.com on September 10, 2016.