a narrativa estilhaçada de

A gerência
Revista Salsaparrilha
8 min readNov 29, 2015

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Por Tiago Ramos

Aconteceu com todos nós. Um momento em que o tempo parece desacelerar enquanto vemos aquele precioso objeto — um vaso, uma taça de cristal, uma recordação de lugares ou pessoas perdidas — despencar na direção de um encontro inevitável com a sua fragilidade. Em seguida, o que era devagar torna-se frenético: a realidade engata sua sexta marcha ao apanharmos os pedaços do que era único e tentamos, em vão, reconstruir. Insistimos em encaixar as peças, como em um quebra-cabeças, procurando negar a certeza íntima de que, uma vez quebrado, aquilo jamais poderá ser plenamente recuperado.

E se o mesmo acontecesse… com uma história?

Trailer oficial de Her Story.

Essa é uma das muitas ideias presentes em Her Story, aplicativo criado por Sam Barlow (Aisle, Silent Hill: Shattered Memories) e lançado em junho de 2015. Nele, o jogador/espectador se encontra, sem maiores explicações, diante da base de dados de um distrito policial, capaz de fazer pouco mais além de digitar palavras em um mecanismo de busca. A cada nova pesquisa, o sistema retorna fragmentos em vídeo de interrogatórios realizados com uma mesma mulher (interpretada por Viva Seifert) em sete diferentes ocasiões em 1994. Por razões diversas, as entrevistas encontram-se divididas em 271 trechos distintos, cuja duração varia de alguns segundos a poucos minutos, sem a possibilidade de serem vistos na ordem cronológica correta. Seu objetivo? Juntar os pedaços da história contada pela personagem diante da câmera e encontrar a verdade por trás de sua narrativa.

A simplicidade de sua mecânica esconde as diversas camadas de complexidade em Her Story. Apesar de construído ao redor de um elemento visual — vídeos em formato analógico — o aplicativo é um atestado do poder da linguagem. Em todos os momentos, os segmentos disponíveis para serem assistidos — cinco no máximo — restringem-se àqueles em que a palavra ou expressão digitados pelo jogador são mencionados pela interrogada. Exemplificando: a pesquisa pelo termo murder (“assassinato”, expressão sugerida pelo programa ao ser iniciado) retorna quatro fragmentos, os quais podem ser vistos de imediato. Por outro lado, ainda que a busca pela palavra house (“casa”) encontre 19 resultados, somente os cinco primeiros podem ser assistidos.

Tela inicial. Sim, o reflexo das luzes é intencional.

Dessa maneira, o espectador é constantemente obrigado a refinar as suas pesquisas à medida em que descobre novos fatos ou desenvolve suas teorias, em um esforço permanente de obter os dados ocultos (intencionalmente, claro) pelo programa. Eventualmente, house é substituído por my house, e mais tarde por algo como I left the house, conforme nossos horizontes se expandem e vamos sendo envolvidos pelo mistério. O tamanho de nosso mundo, dentro do jogo como fora dele, diminui ou aumenta por meio das palavras que ouvimos e usamos, bem assim pela interpretação que fazemos delas.

A multiplicidade de histórias em uma mesma mulher.

Para um aplicativo no qual as ações possíveis resumem-se a escrever e, principalmente, observar, o grau de interatividade de Her Story representa seu aspecto mais surpreendente. Em razão de sua narrativa estilhaçada (usar o adjetivo “não-linear”, como normalmente se faria, soa aqui como uma descrição incompleta, rasa, do que é efetivamente proposto), o jogo confunde as fronteiras que separam espectador e autor. Como os vídeos podem ser assistidos em qualquer ordem, os enredos compostos por cada jogador possuem pontos de partida, desenrolar e finais distintos. Ainda que as conclusões se assemelhem, como veremos mais à frente, o processo de construção da trama torna-se uma experiência individual, repleta de confirmações, frustrações e adaptações enquanto os fragmentos vão sendo vistos. Her Story mais se assemelha a um mosaico, uma matriz de diferentes histórias, que surgem e convergem para a mulher diante dos nossos olhos.

O leitor atento talvez tenha percebido que nem mesmo o nome dela foi apresentado até o momento, ele próprio um dos elementos mais interessantes do enredo. A narrativa em pedaços, sem começo e fim bem definidos, faz com que a descrição de qualquer detalhe possa entregar reviravoltas melhor preservadas para o espectador. Com isso em mente, podemos afirmar que o crime que propulsiona a trama é apenas a porta de entrada para uma história muito mais rica, a da vida da protagonista. Há, ainda, uma canção que permanece na cabeça por dias. Rapunzel é mencionada, bem como príncipes e princesas reais e imaginários. E a dualidade de nossos sentimentos e naturezas é eviscerada de forma assombrosa.

The Dreadful Wind and Rain, a canção em Her Story. AVISO: possíveis spoilers.

Apesar de o espectador estar sempre ciente da presença dos interrogadores, os vídeos jamais registram sua participação nas entrevistas (à exceção dos aplausos no vídeo acima). Desse modo, ao longo de todo o jogo, ouvimos apenas uma voz e enxergamos uma única pessoa — a personagem de Viva Seifert. Desnecessário dizer que, diante de tal realidade, o sucesso do projeto passa a depender do talento de sua atriz. Ex-ginasta, a inglesa nascida em Londres entrou no mundo das artes por meio da música. Hoje metade do dueto Joe Gideon & the Shark, Her Story marca seu auspicioso primeiro trabalho em frente às câmeras. Não seria uma reação incomum perceber, nos primeiros minutos, certa artificialidade nos seus gestos ou estranhar algumas pausas inesperadas em seu discurso. À medida em que a trama aflora, entretanto, fica claro como os aparentes problemas de atuação fazem parte da história sendo construída/revelada, adicionando a ela novas nuances. Intencionalmente ou não, fato é que o trabalho de Seifert é como um bom uísque para quem não está acostumado com a bebida: difícil de engolir no começo, mas inebriante após poucas doses.

Viva Seifert.

Não seria absurdo afirmar que, na função de narradora, protagonista e possível vilã, Seifert interpreta múltiplos papéis ao mesmo tempo. Ela empresta seu rosto e voz a todos os envolvidos no enredo, desde os coadjuvantes de menor importância até as vítimas e algozes — quão fiéis e verdadeiras são essas representações cabe a cada espectador concluir. Existem, porém, dois outros personagens essenciais para a experiência proporcionada por Her Story. O primeiro é o do próprio criador do aplicativo e diretor, Sam Barlow, identificado dentro da história pelas suas iniciais. O jogador curioso descobrirá, sem grande esforço, que seu acesso à base de dados da polícia foi viabilizado por alguém conhecido apenas como “SB”. O Barlow fictício, tal qual o real, é o condutor à narrativa fragmentada que demanda ser reparada. Um Deus na máquina que, ao contrário do que normalmente se espera, não somente deixa de se ocultar, mas que nos força a reconhecer a sua presença, em particular no final do jogo.

O segundo é o personagem interpretado pelo jogador, talvez o detalhe mais intrigante do aplicativo. Não é difícil perceber que o individuo assistindo aos vídeos (i.e. você) não trabalha para a polícia, e que o está fazendo anos depois da realização dos interrogatórios. Qual o seu interesse na história daquela mulher, ainda mais depois de tanto tempo? Qual a sua relação com os eventos por ela descritos? Qual o seu nome? Todas essas perguntas são respondidas, algumas de forma mais definitiva do que outras, e desempenham um papel fundamental na consolidação da narrativa construída pelo espectador.

Sabemos quem está diante da câmera e atrás dela. Mas quem se esconde do outro lado da tela?

Se há uma crítica a ser feita a Her Story, ela reside justamente no fato de que a elaboração de uma narrativa personalizada é o máximo que se pode esperar do aplicativo. Para os amantes de quebra-cabeças em que todas as peças se encaixam à perfeição no final, não deixa de ser frustrante a impossibilidade de se chegar a uma versão definitiva sobre os fatos narrados pela protagonista. Duas principais teorias podem ser desenvolvidas com base nos interrogatórios, ambas minuciosamente cercadas por evidências que as sustentam e desmentem. Algo pouco surpreendente (e claramente intencional) em um enredo que, tematicamente, dedica-se ao confronto de opostos: amor e ódio, bem e mal, admiração e inveja, vida e morte. O outro lado de algo sempre como a sua imagem espelhada.

Por último, vale mencionar o tratamento dado ao aspecto visual. Como as capturas de tela e vídeos aqui reproduzidos demonstram, o jogo prefere criar uma ambientação verossímil a encher os olhos com cores fortes, imagens de impacto e design detalhado. Sua interface principal, ao emular uma base de dados policial, poderia muito bem se passar por um sistema utilizado na prática por órgãos públicos (acredite: eu sei do que estou falando). A resolução dos vídeos é péssima, com imagens trêmulas e cores foscas, como se de fato tivessem sido extraídas de fitas gravadas em câmeras portáteis de duas décadas atrás. Por sua vez, a edição e a mixagem de som complementam a sensação de imersão ao preencher as entrevistas com ruídos de fundo e ecos permanentes. O cuidado gráfico chega ao extremo de simular o acesso ao software da polícia por meio de um monitor velho de poucas polegadas, com direito a reflexos do ambiente ao redor. O que pode, inclusive, fornecer alguma pista sobre a identidade de quem se esconde do outro lado da tela.

Cena do interrogatório final.

Em uma época em que o público parece cada vez menos propenso a desligar-se do mundo por algumas horas e verter a sua atenção para histórias compostas com cuidado, nuance e esmero, Her Story toma uma contramão fascinante. Ao mesmo tempo em que pode ser jogado de uma só vez, a experiência não é significativamente prejudicada se for apreciada em pedaços breves, como no caminho para compromissos rotineiros. Ao compartilhar com o espectador o papel de autor, porém, o aplicativo certamente fará com que as tarefas do dia-a-dia terminem em segundo plano, ao menos enquanto o jogador não desvendar o que as palavras da moça diante da câmera escondem.

A certa altura dos interrogatórios, ela afirma que os detetives não possuem evidência alguma a não ser as histórias compartilhadas ao longo das entrevistas. E que elas não servem como prova de nada. Essa é, sem dúvida, uma possibilidade. Ou, quem sabe, sejamos capazes de emprestar aos estilhaços da história dela a mesma aspiração que permeia os nossos próprios fragmentos e busquemos algo mais entre eles. Talvez possamos encontrar, perdido no meio de tudo, sentido. Talvez até mesmo propósito. Talvez até mesmo redenção.

Her Story pode ser adquirido via Steam (R$ 11,99) ou através da App Store (US$ 4,99). Textos e legendas — em todos os vídeos — em inglês.

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Originally published at revistasalsaparrilha.com on November 29, 2015.

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