Sobre Homens-Morcego e Super-Homens

Tiago Ramos
Revista Salsaparrilha
12 min readMar 28, 2016

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Por Tiago Ramos

Mais ou menos na metade dos dez minutos em que os personagens-título se enfrentam em Batman vs Superman: A Origem da Justiça (Batman v Superman: Dawn of Justice, 2016), encontramos sua cena mais memorável. Após atravessarem o teto de um prédio e caírem no que mais parece um banheiro imundo de rodoviária, o Homem-Morcego resolve usar o ambiente para desferir um poderoso golpe no seu atordoado adversário. Ele lentamente anda até uma pia de porcelana, a arranca da parede e caminha de volta. Na trilha sonora, um coral canta como se estivesse se afogando em lava, e as batidas da orquestra fazem parecer que os portões de Tróia estão prestes a se abrir. O Batman levanta o objeto sobre o Homem de Aço, caído ao chão, pausa por um segundo — esse é um filme sério, afinal, e toda a carga dramática do momento precisa ser devidamente apreciada — e sapeca a pia na cabeça do Superman.

Nas duas horas e meia de um filme praticamente desprovido de humor, a cena acima é a única oportunidade em que o espectador consegue soltar uma boa risada. Não que a graça seja intencional. Mas você sabe como é: quando se está na merda, a gente arruma os nossos prazeres do jeito que pode.

Não é minha intenção, entretanto, escrever uma resenha sobre BvS. A internet está repleta delas, e você facilmente encontrará uma que corrobore a sua opinião. Pessoalmente, fico com o trabalho do excelente A.O. Scott, do The New York Times. Dedicado como sempre, o Sr. Scott consegue até mesmo encontrar temas no filme, debruçando-se sobre eles nos últimos parágrafos do seu texto. Neste artigo, seguirei uma outra linha de raciocínio. Afinal, se Batman vs Superman possui alguma virtude, ela está em como o longa proporciona um ótimo ponto de partida para explorarmos o que de pior as histórias de super-heróis têm a oferecer.

Why so serious?

Baseado nos quadrinhos da DC Comics, alguns dos principais problemas em BvS ironicamente decorrem de uma ousada iniciativa da editora 30 anos atrás. Com a publicação de Batman: o Cavaleiro das Trevas (Batman: The Dark Knight Returns, 1986) e Watchmen (1986–1987), a DC apresentou, pelo menos aos leitores de HQs mainstream, uma versão mais séria, supostamente mais adulta, dos super-heróis que dominam o mercado. No lugar de cores primárias berrantes, tons pastéis, muita escuridão e chuva (estes últimos utilizados à exaustão em Batman vs Superman). Em vez de super-heróis reunidos em quartéis-generais de arquitetura impossível, tentativas de estupro em encontros clandestinos de vigilantes.

Batman vs. Superman, em The Dark Knight Returns # 4 (1986).

Inegavelmente excelentes, os dois trabalhos marcam o início de uma guinada dos quadrinhos do gênero em direção a narrativas mais sombrias, recheadas de sofrimento e, no mínimo, com sugestões de violência extrema. (Naquele momento, a censura não permitia a sua retratação visual plena. Isso seria superado mais tarde, como veremos.) Os editores só esqueceram de observar que poucos criadores possuíam o talento de Frank Miller, Alan Moore e Dave Gibbons, principais responsáveis pelas obras mencionadas acima. Ainda que o fenômeno não tenha se restringido à DC Comics, a editora produziu algumas das mais marcantes — e lastimáveis — evidências desta tendência durante os anos noventa: A Morte do Super-Homem (The Death of Superman, 1992); A Queda do Morcego (Knightfall, 1993–1994), na qual o Batman tem sua coluna quebrada por um vilão; Crepúsculo Esmeralda (Emerald Twilight, 1994), arco em que o Lanterna Verde torna-se um maníaco homicida.

Em paralelo, a trajetória da DC Comics rumo à escuridão progredia também nos cinemas. Em 1978, com Super-Homem(Superman), o Homem de Aço estreava nos longa-metragens com luz, leveza e o encantamento do público em ver um homem voar. No entanto, após três sequências — a última em 1987 — e diante de um personagem desgastado, era hora de mudar de direção. Em 1989, com Batman, Tim Burton provou a viabilidade de se trazer para a tela grande uma versão mais sisuda dos super-heróis da DC. O enorme sucesso do filme, sua continuação em 1992 e as mudanças de tom nas HQs solidificariam a imagem do Homem-Morcego como um herói atormentado, irremediavelmente associado a ambientes escuros. Essa visão tornou-se tão prevalente que, depois de atiçar espectadores com Batman Eternamente (Batman Forever, 1995) o diretor Joel Schumacher só faltou ser queimado em praça pública ao descambar de vez para o camp em Batman & Robin (1997).

Imagem promocional de Batman & Robin, provando que marqueteiro deveria ir preso muito antes de fazer campanha para o PT.

Mas é somente em 2008 que os filmes de super-heróis da Warner Bros. — divisão audiovisual do conglomerado Time Warner que também é dona da DC Comics — passam a associar ambientes sombrios com pretensões dramáticas reais. Diante da estrondosa repercussão, crítica e financeira, de Batman: O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008) o estúdio começa a olhar para os personagens da DC Comics com um pouco mais de ambição artística. Outros fatores contribuem para isso. O idealismo nostálgico de Supeman — O Retorno (Superman Returns, 2006) foi recebido sem empolgação pelo público. O péssimo Lanterna Verde (Green Lantern, 2011), com seu tom mais cômico, foi um fracasso vergonhoso. E quanto menos falarmos sobre Mulher-Gato (Catwoman, 2004), melhor.

Com mais um sucesso nas mãos graças a Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (The Dark Knight Rises, 2012), ficava claro, aos olhos da Warner, que o melhor caminho para os personagens da DC no cinema seria mesmo tratá-los como Épicos Dramáticos da Maior Importância. Porém, repetindo o erro do mercado de HQs do final dos anos oitenta e noventa, só faltou lembrar que o problema não estava na abordagem, mas sim no talento para executá-la. Um atributo muito distante do diretor Zack Snyder (300, Sucker Punch — Mundo Surreal). Se o seu Homem de Aço (Man of Steel, 2013) já se considera um filme muito mais maduro e poético do que de fato é, Batman vs Superman: A Origem da Justiça é uma verdadeira aula de pretensão descabida.

A única luz na escuridão.

Os diálogos são repletos de divagações sobre o papel de deuses e homens, muitos cortesia do vilão Lex Luthor (Jesse Eisenberg, esforçando-se para entregar a pior atuação do longa). Os compositores Hans Zimmer e Junkie XL tratam todas as cenas como fossem o clímax do enredo — eu poderia transpor a minha brincadeira inicial sobre o coral e a orquestra para praticamente qualquer momento, relevante ou não, da trama. A ambientação é pesada e cansativa, reforçada pela cara de choro permanente de Lois Lane (Amy Adams) e o olhar de peixe morto de Bruce Wayne (Ben Affleck e a sua única expressão facial). E a ação, executada sem uma gota de imaginação ou personalidade — marca registrada do diretor — assegura que o espectador permaneça emocionalmente alheio a tudo o que se passa na tela. Quando a Mulher Maravilha (Gal Gadot) finalmente surge como a única luz na escuridão que domina o filme, você se sente como se pudesse respirar novamente depois de um longo mergulho em uma piscina de piche.

Dando a mão e querendo o braço

Adjacente à evolução das ambições dramáticas das narrativas de super-heróis, está o aumento da violência gráfica. Em 2000, uma profunda mudança editorial na Marvel Comics fez com que, no ano seguinte, ela abandonasse o Comics Code Authority, mecanismo de auto-regulação de conteúdo do mercado de HQs norte-americano. Apesar de a DC ter se desligado formalmente do selo apenas em 2011 (levando, com isso, à extinção do órgão), o gesto da concorrente abriu as portas para que a editora investisse pesado em uma de suas atividades favoritas: desmembramento.

Enquanto a DC arranca, a gente coloca tudo junto. Montagem por Maurício Sellmann.

(Não que a Marvel tenha ficado muito atrás:)

O Sentinela rasga Ares ao meio em Siege # 2 (2010).

Novamente, não demorou muito para que as versões cinematográficas da editora adotassem uma postura similar à das HQs. É bem verdade que personagens foram feridos ou mortos em praticamente todos os filmes da DC — o Batman não combate o crime fazendo cafuné nos marginais, afinal. Mas, até poucos anos atrás, raros foram os eventos — mostrados em cena ou apenas sugeridos — realmente chocantes. Como um sinal do que estaria por vir, uma rara exceção pode ser vista no longa anterior de Zack Snyder, Homem de Aço, quando o personagem-título quebra o pescoço do vilão do longa com as próprias mãos. Entretanto, nenhuma das adaptações da DC Comics é tão violenta quanto BvS.

A certa altura, um Superman enraivecido desintegra pessoas com a sua visão de calor (o fato de se tratar de um sonho não releva o absurdo da cena). Já o Homem-Morcego, aparentemente com cabeça de fazendeiro, queima seu logotipo na carne de suas presas, ciente de que seu gesto condenará o criminoso à morte na prisão. Isso sem falar na sua tentativa de assassinar o Homem de Aço. (Trata-se do seu legado para a raça humana, defende.) A Mulher Maravilha, por sua vez, mantém a tradição da editora ao cortar fora o braço de um dos antagonistas com a sua espada.

Deuses e homens

Curiosamente, a própria DC Comics e suas adaptações nos fornecem inúmeros exemplos de como contar histórias de super-heróis adultas, dotadas de impacto emocional, sem torturar público ou personagens e preservando a essência idealista do gênero (sem falar nos braços das pessoas). Atualmente, a mais clara evidência disso se encontra na série de televisão Flash (2014 — ).

Por um lado, o programa é repleto de vilões propositadamente caricatos, que mais parecem saídos do seriado clássico do Batman (1966–1968). Atores como Wentworth Miller (Capitão Frio), ou Mark Hamill (Trapaceiro) fazem sorrir com sua mera aparição em cena, tamanha sua dedicação ao ridículo dos personagens. Isso sem falar nos gorilas telepatas ou tubarões criminosos. Porém, a âncora emocional da série — especialmente em seu ano de estreia — está no emaranhado de sentimentos do herói-título para com suas três figuras paternas, uma das quais o possível assassino de sua mãe quando ele ainda era criança. Quando, no último episódio da primeira temporada, o Flash se vê diante da oportunidade de encontrar a sua mãe uma última vez, é impossível não se comover. No centro do empolgante embate final com o antagonista da trama, os roteiristas encontram espaço para tocar nos sentimentos de perda do público com profunda ternura.

Existem outros excelentes exemplos nos próprios quadrinhos da DC. Em A Busca (The Archer’s Quest, 2002–2003), de Brad Meltzer e Phil Hester, o Arqueiro Verde embarca em uma road trip à procura de cinco objetos desaparecidos que definem o homem por trás da máscara, Oliver Queen. O tom leve da aventura esconde, em realidade, a história de um indivíduo tentando reconstruir laços familiares há muito neglicenciados. No final, quando o herói reúne todos os itens e sua real motivação é revelada, o leitor descobre que a verdadeira busca do personagem é muito próxima à dele próprio: a de uma pessoa pequena lutando para tornar-se mais do que a sua natureza covarde permite. Um lembrete do potencial inspirador que os super-heróis possuem mas é tão frequentemente ignorado pelos criadores.

Mantendo esse viés inspirador, All-Star Superman (2005–2008) imediatamente vem à mente. Nesta série em doze partes, o herói é acometido por um câncer e tem apenas um ano restante de vida. O que poderia ser um dramalhão sem precedentes torna-se, nas mãos do escritor Grant Morrison e do artista Frank Quitely, uma belíssima celebração dos ideais que o Homem de Aço melhor representa. Enquanto Batman vs Superman: A Origem da Justiça incessantemente defende o conceito de deuses como adversários do homem, aqui encontramos uma figura divina condenada ao mesmo destino de todos nós, esforçando-se para deixar o melhor legado ao seu alcance para aqueles que permanecerão.

“Você é muio mais forte do que pensa”, diz o Homem de Aço a uma garota à beira do suicídio, em All-Star Superman # 10 (2008).

Mesmo a violência gráfica pode ser empregada de maneira inteligente ou, no mínimo, pertinente, nas histórias tradicionais de super-heróis. Na fase inicial de The Authority (1999–2000), por Warren Ellis e Bryan Hitch, a premissa de um grupo de heróis agindo como a última linha de defesa do planeta demandava cenas de ação com alto impacto visual. Assim como filmes épicos exigem uma metragem longa para evocar a sensação de importância, esta HQ da linha Wildstorm da DC Comics (hoje incorporada ao universo principal da editora), precisava retratar mortes e destruição em larga escala para comunicar ao leitor a gravidade das ameaças do título.

A ótima capa de The Authority # 1 (1999).

Já na subversiva série animada Teen Titans Go (2013 — ), baseada nos Novos Titãs da DC Comics, os protagonistas são constantemente mortos ou seriamente feridos, apenas para reaparecer como se nada houvesse acontecido no episódio seguinte. Não há aqui, entretanto, o menor traço de sadismo, com a violência sendo abordada no melhor estilo Looney Tunes. Voltada para um público no início da adolescência, o desenho frequentemente traz um toque a mais de ironia, apreciado somente pelos fãs mais velhos.

Como em Super Robin, um dos melhores episódios do programa, no qual o Robin realiza seu sonho de adquirir superpoderes. Acontece que, depois de resolver todos os problemas do mundo, o garoto inadvertidamente faz com que todos os heróis deixem de ser necessários. Desempregado, ele então termina condenado a uma carreira entediante dentro de um escritório para o resto da vida. E se você está achando o enredo ácido, espere só até ver a piada do final. Perceba como, apesar da profusão de cores e da violência de faz-de-conta, o humor mordaz da curta animação consegue dialogar com o público adulto de maneira muito mais eficaz do que os prepotentes 151 minutos de BvS:

Dias mais claros, noites mais densas

Desde a década de oitenta, quando as principais editoras de quadrinhos de super-heróis descobriram a possibilidade de serem respeitadas como literatura “de verdade”, muito esforço foi investido na tentativa de amadurecer suas tramas. Se, ao longo dos anos e apesar de uma série de equívocos, houve um inegável ganho intelectual na complexidade narrativa das HQs do gênero, isso veio às custas da inocência inerente aos personagens. Recentemente, em parte graças ao sucesso de seu estúdio cinematográfico, a Marvel parece ter redescoberto boa parcela desta ingenuidade. A DC Comics, por outro lado, ainda apresenta sérias dificuldades em se desvencilhar de sua abordagem pesada e “realista”.

Nos quadrinhos, a recente inciativa DC You, visando maior diversidade em sua linha editorial, foi considerada um fracasso. Em seu lugar, mais um relançamento em massa de seus títulos está agendado para junho — o último aconteceu em 2011 — , voltado para o feijão-com-arroz pasteurizado da companhia dos últimos anos. No cinema, os defeitos de Batman vs Superman prometem fazer carreira. Os longas Esquadrão Suicida (Suicide Squad), programado para agosto, e Liga da Justiça (Justice League, 2017) — este pelo mesmo Zack Snyder de BvS — não inspiram muito otimismo.

O elenco de Esquadrão Suicida parece não tomar banho desde a publicação do primeiro número da HQ, em 1987.

Não se pretende, aqui, afirmar que as narrativas de super-heróis precisam ser invariavelmente leves, coloridas e despretensiosas para funcionarem. Mas é preciso, sim, mesmo nas histórias mais sombrias, encontrar nelas alguma imaginação, algum fascínio. Algum prazer. Autores e editores parecem esquecer que esses personagens são capazes de realizar aquilo com que nós apenas podemos sonhar, a cada dia com dificuldade crescente, em um mundo repleto de violência e cinismo. Nos quadrinhos, na televisão ou no cinema, em dias claros ou noites densas, eles deveriam nos oferecer alguma esperança. De que, um dia, poderemos erguer os nossos olhos, encontrar algo inesperado atravessando as nuvens e nos perguntar se aquilo é um pássaro ou um avião. Apenas para concluir, ao final, de que estamos diante de uma versão melhor de nós mesmos, cruzando os céus em direção ao amanhã.

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Originally published at revistasalsaparrilha.com on March 27, 2016.

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Tiago Ramos
Revista Salsaparrilha

Não conhece ontem algum, não admite o presente e para quem o amanhã é esquecimento.