Spoilers e cultura pop: uma outra visão sobre o tema

Tiago Ramos
Revista Salsaparrilha
6 min readMay 23, 2016

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Por Tiago Ramos

Se o leitor já conhece o nosso site, é provável que você tenha nos descoberto por meio de um de nossos textos mais populares, Todos os spoilers do mundo — e eles não fazem diferença alguma. Em conversas com seu autor Maurício Sellmann, também editor do blog, por diversas vezes disse-lhe que era nosso melhor artigo (ao menos até ele superá-lo com o ensaio Os anjos maus de nossa natureza), ainda que pessoalmente discordasse da posição por ele defendida. Longe de mim querer contradizê-lo, ainda mais considerando seus ótimos argumentos a favor da revelação prematura das reviravoltas das narrativas. Ainda assim, principalmente no tocante às histórias serializadas que dominam a cultura pop, acredito ser igualmente defensável a preservação dos segredos das histórias.

Apenas como ponto de partida, tomemos um dos pontos levantados pelo meu colega. Corretamente, diga-se, ele defende que as grandes histórias sobrevivem às intempéries do tempo e dos spoilers. Vejamos, porém, quais são as principais narrativas que embalam a imaginação do público em 2016. Star Wars. Game of Thrones. O universo cinematográfico da Marvel. The Walking Dead. Há poucos anos, acompanhamos ainda os fenômenos Jogos Vorazes e Harry Potter.

Jon Snow: jogo de Vivo ou Morto.

Agora, a parte mais delicada: objetivamente, pondo de lado os nossos corações, podemos afirmar que se tratam de grandes histórias? Spoiler: não são. Na cultura popular, as narrativas de sucesso são alçadas a esse patamar não por suas qualidades intelectuais, mas por conseguirem despertar uma resposta emocional mais primitiva do público. Graças à manipulação de sentimentos como identificação, nostalgia e idealização ou através de artifícios como espetáculo visual e a sucessão infindável de mistérios, somos frequentemente seduzidos por tramas de qualidade duvidosa (pelo menos se opostas a critérios artísticos tradicionais). Como evidência da supremacia da emoção sobre a racionalidade, observe as reações apaixonadas quando um dos exemplos acima torna-se objeto de críticas. Muitas vezes, não são apenas os fãs fervorosos que tomam análises negativas, não importa quão fundamentadas e isentas, como uma ofensa pessoal.

(Neste momento, cabe esclarecer que não escrevo do topo de qualquer pedestal. Como fã de super-heróis e ficção científica desde a infância, compartilho com o amigo leitor a afeição a histórias que provavelmente não merecem tamanha dedicação.)

Ao partirmos da premissa de que o público aborda as histórias com o coração e não com a mente, começamos a vislumbrar o dano potencial dos spoilers. No processo de criação dos laços afetivos entre audiência e narrativas em capítulos, o anseio pelo que acontecerá em seguida desempenha um papel crucial (tema melhor explorado em outro de nossos textos). A entrega antecipada de uma surpresa do enredo, ao tornar o incerto em certeza (ou pior, revelar algo que sequer era esperado), retira da história o entusiasmo e o sabor da descoberta. O spoiler, sob esta ótica, não nos priva de uma satisfação intelectual nem nos liberta para a fruição desta. Ele rouba do espectador / leitor / gamer uma oportunidade de sentir. De imediato, o prazer decorrente do testemunho da surpresa não mais é possível, ainda que a sensação seja fugaz e a reviravolta artificialmente arquitetada. No longo prazo, enfraquece-se o vínculo entre público e ficção, na medida em que esta última torna-se emocionalmente um pouco mais rasa.

Mundo on demand.

E não é fácil nos surpreender. Vivemos em um mundo on demand, onde temos acesso a livros, quadrinhos, séries, filmes e jogos com menos esforço do que pedir uma pizza. Consumimos ficção o tempo inteiro, em todos os lugares (prometo, esta é a última vez em que farei referência a outro artigo nosso). A audiência moderna, ainda que inconscientemente, familiarizou-se com as ferramentas empregadas pelas narrativas populares para provocar surpresa. De certa forma, até mesmo os sustos são esperados. (Perceba como, ao longo do tempo, as mortes de personagens vêm se tornando cada vez mais súbitas, em uma tentativa de driblar a experiência e as previsões do público.) Por um lado, isso alimenta a inserção de reviravoltas cada vez mais absurdas nas tramas. Por outro, o talento e o esforço necessários para a construção de boas surpresas tornam-se cada vez maiores. Ainda que raros — ou talvez por isso mesmo — , tais casos merecem ser vivenciados como seus autores idealizaram: no contato sem intermediários entre espectador e história.

Questionável também é a crença de que a familiaridade do público com os elementos da ficção é mais importante do que o conteúdo dos spoilers. Tomada em seu sentido mais estrito, não há muita margem para discordar dela. Mas a afirmação menospreza a força motriz do primeiro contato com qualquer experiência narrativa: a curiosidade. Ela se faz presente no desejo de se deslindar o que não se conhece em uma história, certamente. Mas ela está lá também no extremo oposto, quando tudo o que se deseja é ver expectativas pessoais confirmadas. Se, como nas novelas televisivas, já se sabe o quê, passa-se a indagar o como. Se isso também é conhecido (nos grandes clássicos, por exemplo), substitui-se tal anseio pela vontade de apreciar dada interpretação, ou mergulhar no valor do texto. Nas novelas, um novo reforço de que tudo pode dar certo ao final, o beijo e o casamento daqueles personagens. Em todos os casos, lá está a inquietação da natureza humana, desbravando aquilo que é, de acordo com a perspectiva que motiva o espectador, inédito.

The Walking Dead, constantemente no centro da polêmica sobre os spoilers.

Cabe indagar, então, que benefício traz o spoiler. Ele remove as camadas mais rasas da narrativa — o impacto superficial da reviravolta — favorecendo a apreciação das reais virtudes do trabalho? Um pequeno sacrifício em prol de um bem maior, portanto? Ora, não há motivo pelo qual não se pode ter as duas coisas. A segunda leitura, a análise, o usufruto das nuances da ficção ou seus componentes está sempre disponível. Entretanto, a oportunidade da descoberta, como já dito, é única. Uma vez furtada do público, não pode ser devolvida. Para falar um pouco de cinema, filmes como Os Suspeitos (The Usual Suspects, 1995) e O Sexto Sentido (The Sixth Sense, 1999) entretêm de maneiras completamente diferentes conforme se conhece ou não os seus segredos antecipadamente. Pode-se até argumentar que assistí-los ciente das surpresas proporciona uma experiência mais satisfatória. Não deveria esta decisão, porém, caber ao espectador e não àquele que entrega — por vezes intencionalmente — as reviravoltas?

Difícil conceber, por outro lado, a atual força pervasiva da cultura pop sem a presença dos spoilers (e das redes sociais, seu principal veículo). A repercussão online das reviravoltas acaba eventualmente atraindo a atenção de segmentos do público por histórias que normalmente não os cativariam. Há casos de pessoas que, por exemplo, resolveram assistir a Star Wars: O Despertar da Força (Star Wars: The Force Awakens, 2015) somente depois de tomarem conhecimento do principal evento do seu clímax. O mesmo pode ser dito de Game of Thrones, com a morte do seu (então) protagonista ao final da primeira temporada. Em realidade, poderíamos até mesmo afirmar que nosso interesse nas histórias que consumimos geralmente nasce de alguma antecipação, em maior ou menor grau, de seus detalhes. O que são os trailers de filmes, senão spoilers razoavelmente controlados? Abre-se mão, assim, de alguns prazeres e emoções contidos na ficção para ganhar acesso a admiráveis mundos novos.

Para o bem ou para o mal, os spoilers vieram para ficar, e os debates acerca de seu mérito e consequências só não são maiores do que as discussões acaloradas deles decorrentes. Eis aqui uma singela opinião. Cabe ao leitor formar sua própria convicção sobre o tema. Por conta própria. Sozinho. Sem spoilers.

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Originally published at revistasalsaparrilha.com on May 21, 2016.

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Tiago Ramos
Revista Salsaparrilha

Não conhece ontem algum, não admite o presente e para quem o amanhã é esquecimento.