The Book of Mormon e o manual de instruções para religiões

A gerência
Revista Salsaparrilha
8 min readOct 26, 2015

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Por Tiago Ramos

2015 tem sido um ano e tanto para a intolerância religiosa. Em agosto, a transexual Viviany Beleboni causou furor ao desfilar crucificada na 19ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. A revolta decorrente do gesto, como seria de se esperar, carregou consigo uma boa dose de homofobia. Dois meses antes, no Rio de Janeiro, uma menina de 11 anos de idade foi apedrejada na saída de um culto de candomblé. A pele escura de Kailane Campos, vítima da agressão, não é mera coincidência. Saindo de nosso quintal e retrocedendo até janeiro, o massacre ocorrido na sede do periódico Charlie Hebdo, em Paris, deixou 12 mortos e foi manchete em todo o mundo.

Todos os eventos acima, individualmente e em conjunto, remetem-nos ao espetáculo teatral The Book of Mormon (em português, O Livro de Mórmon). O musical, criado e escrito por Trey Parker e Matt Stone (da série South Park), em conjunto com Robert Lopez (co-autor das canções da animação Frozen — Uma Aventura Congelante) se tornou um dos maiores sucessos da Broadway desde sua estreia em 2011. À primeira vista uma comédia de humor pueril e repleta de blasfêmias, a peça guarda, em realidade, a aula de religião ideal para os nossos tempos. Ademais — como se houvesse sido pensada como resposta às notícias brazucas mencionadas acima –, ela tece ainda comentários mordazes sobre homossexualidade e raça.

“Hello”, número inicial de “The Book of Mormon”, na abertura do Tony Awards em 2012.

O espetáculo tem como protagonistas uma dupla de missionários mórmons — movimento religioso fundado por Joseph Smith na década de 1820 — recém-treinados para espalhar sua doutrina ao redor do mundo. O idealista Elder (título utilizado pelos missionários) Kevin Price sonha em pregar os ensinamentos do Livro de Mórmon na ensolarada Orlando, na Flórida. Ao invés disso, ele é enviado para um paupérrimo vilarejo em Uganda, África. Como desgraça pouca é bobagem, ele ainda terá que lidar com o seu parceiro de empreitada, o atrapalhado Elder Arnold Cunningham. Ao longo da jornada para superar o ceticismo dos ugandenses e convertê-los, os heróis contarão com a ajuda de outros mórmons da região, enfrentarão uma crise de fé e entrarão em conflito com o déspota local, General Butt-Fucking Naked. (Se você acha que eu vou traduzir isso, pode tirar o cavalinho da chuva).

Da esquerda para a direita: Elder Cunningham (Josh Gad), Nabulungi (Nikki M. James) e Elder Price (Andrew Ranells).

Descrita nos termos acima, a coisa até parece razoavelmente inofensiva, não? Célebres pelo humor politicamente incorreto de South Park, Parker e Stone efetivamente se mostram um tanto recatados no desenrolar dos primeiros vinte minutos do ato inicial. Tudo muda de figura quando os protagonistas chegam em Uganda, cenário do número Hasa Diga Eebowai. Neste, o chefe do vilarejo explica aos desolados missionários mórmons que, na região, todos os problemas são tratados por meio de música e dança, ambos dedicados ao Senhor. Até aí, tudo bem, mas o diabo mora nos detalhes. Na coreografia, logo chamam atenção as mãos erguidas aos céus com o dedo do meio em riste, acompanhadas pela misteriosa frase que dá nome à faixa. Indagado pelos recém-chegados quanto ao sentido da expressão, o ancião explica que Eebowai significa “Deus”. Já hasa diga… bem, digamos que o pai-de-todos levantado nos fornece uma boa dica quanto à sua tradução.

Daí por diante, a sátira religiosa só piora — ou melhora, a depender do ponto de vista. Na canção All-American Prophet, as origens do mormonismo são apresentadas como uma narrativa completamente incoerente, e seu fundador, retratado como um charlatão. Em Baptize Me, a cerimônia de batismo de Nabulungi, interesse romântico do Elder Cunningham, é comparada à perda da virgindade. Enquanto isso, um exemplar do Livro de Mórmon vai parar em uma das cavidades corporais do Elder Price (com direito a radiografia para provar). Já no número Joseph Smith, American Moses, ponto alto do espetáculo, os nativos do vilarejo preparam uma apresentação teatral para mostrar tudo o que aprenderam nas aulas de catequese de Cunningham. A peça dentro da peça inclui, dentre outros detalhes que fazem o público se perguntar se aquilo está mesmo acontecendo, um Jesus Cristo de… atributos físicos (sim, é isso mesmo que você está pensando) de fazer inveja a qualquer homem.

O elenco negro de “The Book of Mormon”, caracterizado para o número “Joseph Smith, American Moses”.

Se, como os parágrafos acima sugerem, o musical deriva seus risos da ridicularização do ato da crença, como explicar a resposta extremamente positiva do público — incluindo reações bastante contidas dos próprios mórmons — e da crítica especializada? Apenas para ilustrar, The Book of Mormon abocanhou nove de suas 14 indicações para o Tony Awards — o equivalente teatral do Oscar — da temporada 2010–2011, incluindo os cobiçados prêmios de Melhor Musical e Melhor Trilha Sonora Original. A razão por trás de tanto sucesso é simples: os autores caçoam de símbolos religiosos não como uma agressão gratuita, mas sim como uma maneira de enaltecer os valores humanos (supostamente) defendidos pelas igrejas. Ao final, Parker e Stone parecem estar mais alinhados com a ideologia das religiões do que a maioria dos seus porta-vozes oficiais.

Isso fica claro no segundo e último ato do espetáculo. Após as tentativas frustradas do Elder Price de catequizar os habitantes do vilarejo em Uganda, Elder Cunningham, agindo no improviso, começa a modificar o Livro de Mórmon. Ao substituir as escrituras (“esse troço é TÃO chato”, diz ele ao admitir nunca tê-las lido) por sua paixão por cultura geek, o missionário faz surgir trechos sagrados até então inexistentes, porém perfeitamente adequados às situações vividas pelos locais. Aos poucos, os ugandenses começam a perceber que o Livro — ao menos em sua versão revista, atualizada e não-autorizada — dialoga com eles, passando a encontrar na fé algum alento para a sua situação deplorável.

“I Believe”, uma das canções em que a lógica da fé mórmon é questionada, no Tony Awards de 2011.

Ao traçar um paralelo entre o Livro de Mórmon original e a versão alterada por Cunningham, a peça expõe a falta de lógica inerente à base narrativa de todas as religiões. Não faz diferença, argumentam os autores, se as escrituras contêm passagens que a mente racional e crítica enfrenta dificuldades em aceitar. Defende o espetáculo, particularmente em Tomorrow Is a Latter Day, seu número final, que o valor de textos e ícones divinos está no provimento de esperança em um amanhã melhor. Com este objetivo em mente, os símbolos e o conteúdo literal de passagens sagradas tornam-se irrelevantes, importando apenas a mensagem. Seja ela transmitida por meio de uma transexual crucificada ou um Jesus Cristo negro de genitália do tamanho de um braço. Apesar de todo o sacrilégio — ou talvez justamente por causa dele –, The Book of Mormon termina funcionando como um guia de uso para as religiões.

Como mencionado antes, a peça também não desperdiça oportunidades de enfiar o dedo em outras feridas. Na excelente canção Turn It Off, os missionários mórmons veteranos recebem os dois novos recrutas em sua sede em Uganda. Percebendo o abatimento dos Elders Price e Cunningham, eles ensinam que a melhor solução para os sentimentos ruins consiste em simplesmente desligá-los. O inesperado número sobre negação emocional se revela um prato cheio para Parker e Stone abordarem a repressão da homossexualidade, em especial dentro das igrejas. “Garotos devem ficar com garotas, este é o plano do Pai Celestial / Então, se você sentir que prefere estar com um homem / Apenas desligue — como um interruptor!”, afirmam os personagens, pouco antes de embarcarem no mais irônico sapateado da história do teatro.

“Turn It Off”, na versão em português dos alunos da Unirio.

Há, por fim, um sem-número de piadas sobre estereótipos de raça. A começar pelo pequeno vilarejo na África, microcosmo que coleciona todas as tragédias humanitárias que assolam o continente. Nenhum tema é considerado pesado demais para ser deixado de fora: epidemia de AIDS, mutilação genital feminina e até mesmo o estupro de bebês como suposta cura para o vírus HIV entram no espetáculo da forma mais politicamente incorreta possível. Em outro momento, cortesia dos ensinamentos do Elder Cunningham, os aldeões se convencem de que os chineses são os verdadeiros culpados pelos seus problemas. Sob a ótica do racismo, porém, nada supera a faixa I Am Africa, na qual os mórmons, todos eles rapazes norte-americanos brancos, se declaram os verdadeiros representantes da região. “Africanos são africanos, mas nós somos a África”, dizem os imigrantes. “Que nem o Bono!”, completa Cunningham. O fato de que boa parte do público da Broadway sequer percebe o sarcasmo do número só o torna ainda mais engraçado.

Imagem de “Tomorrow Is a Latter Day”, última canção do musical.

Lamentavelmente, em nosso estado laico de pedradas e facadas, a produção de uma versão em português para o grande público exigiria um autêntico milagre para acontecer. O humorista Rafinha Bastos comeu o pão que o capeta amassou por uma gracinha comparativamente muito mais leve do que boa parte do que se vê no musical. Em paralelo, a representação de alguns símbolos cristãos certamente ensejaria novos episódios de violência por parte da parcela mais radical da comunidade religiosa brasileira. Há fiapos de esperança, contudo. Em 2013, estudantes da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) organizaram uma ótima adaptação do espetáculo com fins acadêmicos, bastante fiel ao original e com tradução cuidadosa.

A religião, como instrumento de poder, possui engrenagens complexas demais para serem completamente desmontadas por uma mera peça de teatro. Entretanto, The Book of Mormon, em sua irreverente tentativa de diminuir a importância de símbolos sagrados e retomar os propósitos maiores da fé, talvez seja capaz de nos fazer compreender um pouco melhor as crenças e as aflições alheias. Se, como acreditam os mórmons do musical, amanhã será um dia melhor, podemos apenas esperar que a mensagem principal do espetáculo consiga levar seu público a rever, ainda que minimamente, suas posições ideológico-religiosas. De fato, e repetindo uma linha de Hello e Tomorrow Is a Latter Day: “este Livro irá mudar a sua vida”. Se Eebowai quiser.

The Book Of Mormon está em cartaz na Broadway. Se, por algum motivo inexplicável, você achar que a taxa de conversão do real para o dólar não anda lá muito convidativa, a Unirio disponibilizou, via YouTube, a sua versão na íntegra (primeiro ato / segundo ato).

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Originally published at revistasalsaparrilha.com on October 25, 2015.

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