Todos os spoilers do mundo — e eles não fazem diferença alguma

A gerência
Revista Salsaparrilha
7 min readApr 26, 2015

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Por Maurício Sellmann

Este artigo está repleto de spoilers e você deveria ler todos eles.

O seriado de TV Game of Thrones é baseado na série de livros As Crônicas de Gelo e Fogo, ainda sendo escritos pelo autor, George R.R. Martin. O resultado é que os produtores da série, sabendo como Martin planeja terminar a saga no papel, anunciaram que irão se adiantar ao autor com roteiros originais. Os caminhos no papel e na tela serão diferentes, mas o ponto de chegada será o mesmo. Os fãs já inundaram a Internet com indignação. “A Internet vai estragar as surpresas dos livros, então eu estou menos inclinado a lê-los agora. Isso me chateia muito”, escreveu um deles no reddit. E outro: “Os spoilers arruinam tudo para mim”.

Em um artigo para a revista eletrônica Salon, Laura Miller questiona o motivo de toda essa irritação. “Muitos parecem encarar histórias como se elas fossem pouco mais que máquinas de produzir surpresa”, Miller escreve. “Nossa obsessão por novidade e surpresa resultou num excesso de entretenimento popular com tramas cada vez mais inverossímeis, tudo a serviço de choques vazios e forçados.”

A interessante observação de Miller ignora, porém, que o entretenimento popular serializado é justamente construído em torno do choque nos ganchos para o próximo capítulo. As telenovelas e os romances baratos ou pulp fiction, como os folhetins de jornal que os inspiraram no século XIX, são construídos com esta arquitetura da surpresa em mente. A série 24 Horas brincava com essa caraterística das histórias populares, levando seu conceito ao paroxismo: a caracterização dos personagens, a lógica da narrativa, tudo era sacrificado com gosto e intenção em troca de reviravoltas cada vez mais estratosféricas.

Depois das revelações, sobra a história. Mesmo se contaram com a dose de adrenalina rápida ao serem criadas, certas obras acabam transcendendo o truque. E acabam se tornando mais cativantes em cada revisão. Ninguém deixa de assistir à última versão de Romeu & Julieta porque sabe que os dois amantes morrem no final. (Sério que você não sabia?) Nem vai deixar de ler A Saga da Fênix Negra porque sabe o destino de Jean Grey. (M-O-R-R-E.) Nem terá menos medo ao ler as Histórias Extraordinárias de Edgar Allan Poe. Grandes bilheterias do cinema, como Avatar (2009) ou Gravidade (Gravity, 2013), devem-se a fãs que voltaram ao cinema para rever o filme com prazer redobrado. Adicione aí as narrativas baseadas em fatos reais e notórios. Os tripulantes da nave Apolo 13 chegaram à Terra sãos e salvos. Ainda assim, vai ser difícil encontrar alguém que não prenda a respiração, mesmo na segunda ou terceira vez que assiste à cena climática da entrada do módulo na atmosfera terrestre em Apolo 13 (1995), talvez o melhor filme de Ron Howard.

Se você não acredita em meus argumentos, dê uma chance a dois cientistas da Universidade da Califórnia em San Diego. Em um estudo publicado em 2011 na revista Psychological Science, Jonathan Leavitt e Nicholas Christenfeld descrevem uma série de experimentos do qual participaram centenas de voluntários. Esses participantes tiveram de ler tipos diferentes de contos, alguns com spoilers e outros não, mas todos inéditos para eles. Em seguida, deveriam avaliar as histórias. No resultado, ficou claro que esses leitores gostaram mais das histórias em que já sabiam o que iria acontecer — mesmo quando a história em questão era um conto de mistério de Agatha Christie!

Trata-se de apenas um estudo sobre a questão. Entretanto, podemos arriscar que a obsessão com spoilers dos dias de hoje tenha a ver com a ubiquidade das redes sociais. Histórias com surpresas existem há séculos, mas os mecanismos pelos quais compartilhamos nossas impressões sobre elas mudaram muito. A avalanche de informações diárias nessas comunidades amplifica as expectativas e induz a um efeito manada. Ironicamente, assim como aumentam a febre, as redes trazem cada vez mais informações que tornam impossível escapar das surpresas no seriado ou filme do momento. Sites de notícias inundam Facebook e Twitter com as últimas surpresas — e se assim o fazem, é porque o assunto gera audiência. E mais: a ascensão das redes sociais da Internet coincidiu com a explosão dos seriados novelescos na televisão, aqueles que contam arcos narrativos ao longo de toda a sua existência. Juntaram-se a fome e a vontade de comer.

O fato é que a familiaridade ainda tem a supremacia cultural. As primeiras histórias eram contadas e repetidas em grupos ao longo de gerações, que as memorizavam para oferecer a gerações seguintes. E eis o título completo de um dos primeiros romances modernos, Moll Flanders (1722), de Daniel Defoe, que ganhou recentemente nova edição em português pela Cosac Naify:

Moll Flanders: leia o título e saiba como tudo termina!

As Fortunas e Reveses da Famosa Moll Flanders, que Nasceu em Newgate, e durante Uma Vida de Contínua Variedade por Sessenta Anos, além de Sua Infância, Foi Prostituta por Doze Anos, Cinco Vezes Esposa (uma vez de seu próprio Irmão), Doze Anos Ladra, Oito Anos Uma Prisioneira Transportada para a Virginia, finalmente ficou Rica, Viveu Honestamente, e Morreu Uma Penitente. Baseado em suas memórias.

Esse comportamento está enraizado no nosso desenvolvimento: crianças se deleitam com o familiar. Quantas vezes a sua filha pediu para você tocar o DVD de Frozen (2013) esta semana? O hábito não se restringe à fase infantil. Até meados do século passado, os trailers de cinema costumavam contar praticamente todo o enredo de um filme. Veja, por exemplo, o de Fúria Sanguinária (White Heat, 1949):

Depois desses dois minutos, vai-se ao cinema já sabendo quem vai morrer, como e por quê. O trailer só não entrega a clássica cena final do filme. (Mas eu, sim.) Esta era a regra, não a exceção. Assim, quando os produtores de Velozes e Furiosos 6 (Fast and Furious 6, 2013) resolveram colocar a cena climática do filme no fim do trailer, estavam apenas honrando uma tradição. Mesmo as telenovelas, apesar das promessas de “fortes emoções para os próximos capítulos”, têm como moeda corrente a repetição de cenas e situações, com inúmeros flashbacks, personagens que são tipos consolidados de outras produções e conversas frugais à mesa do café-da-manhã para preencher suas centenas de capítulos. João Emanuel Carneiro queimou a maior revelação de sua telenovela A Favorita (2008–2009), a identidade da vilã, no terço inicial da trama, mas a audiência só fez subir. O fator-surpresa é algo superestimado e o spoiler parece não estragar nada.

Isto não quer dizer que consigamos nos curar facilmente do vício em surpresas. Elas fornecem uma onda de prazer instantânea que não se pode negar. É certo que o grande chamariz das histórias de Charles Dickens, quando saíam em partes originalmente em jornais e revistas, era a expectativa pelo capítulo seguinte na próxima semana. Uma multidão se aglomerou no porto de Nova York para aguardar a chegada do navio com exemplares do episódio em que se saberia se a pequena Nell morria em A Loja de Antiguidades (The Old Curiosity Shop, 1840–1841). Então como hoje, porém, um romance de Dickens deriva mais prazer da inventividade com que descreve os lugares e pessoas da Inglaterra vitoriana. Isto só foi amplamente reconhecido mais tarde.

Aí está o verdadeiro motor das melhores narrativas populares, a engenhosidade de seus criadores em manipular os elementos que dão carne ao esqueleto dos enredos. “É possível que os spoilers aumentem o prazer ao elevarem a tensão”, arriscam Leavitt e Christenfeld em suas conclusões. Remetem-nos à explicação de Alfred Hitchcock para preferir o suspense à surpresa usando uma situação extrema: uma bomba embaixo de uma mesa. Suspense, esclarece o diretor, é quando a plateia vê a bomba em contagem regressiva para a tragédia; a surpresa é a explosão repentina. Sempre que possível, Hitchcock preferia o suspense à surpresa. Por quê? Porque isso aumentava a empatia do espectador com os personagens na tela. É o paradoxo do suspense descrito por A.R. Duckworth: o suspense requer incerteza, mas experimentamos suspense mesmo quando sabemos o resultado. Assim, Psicose (Psycho, 1960), que nasceu como um filme de revelação-surpresa — a morte da protagonista, Marion Crane, na primeira metade do filme –, não envelheceu em seguidas revisões: o espectador, sabendo o que vai acontecer, sofre por antecedência a inevitável cena do chuveiro e ainda torce para que ela não aconteça, por mais irracional que isso pareça.

Para além disso, há o prazer em rever a engenhosidade da execução da cena, desenhada por Saul Bass e com o auxílio da música de Bernard Herrmann. São esses toques que fazem a diferença entre uma mera obra de susto e uma obra de arte em que vale a pena investir seu tempo. O professor e crítico literário Stanley Fish explicou isso sucintamente em sua coluna no New York Times. “Será que você nunca ouviu falar em alerta de spoilers?”, reclamou um leitor indignado ao ler sua resenha cheia de revelações da série de livros Jogos Vorazes, de Suzanne Collins. Fish respondeu: “Se Jogos Vorazes for tão vazio que possa ser arruinado por uma revelação do enredo, o alerta não vai poupar muita coisa. Se Jogos Vorazes for um êxito de verdade, nenhuma revelação da trama vai estragá-lo.”

Da próxima vez que um amigo seu deixar escapar quem se vai (ou quem pode voltar) em Game of Thrones, não se aborreça. Esboce apenas o seu melhor “sorriso de Lord Varys” e aceite a revelação. Seu amigo pode ter inadvertidamente aumentado a sua apreciação da série. Vá ler os livros com prazer redobrado.

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Originally published at revistasalsaparrilha.com on April 26, 2015.

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